- "Meu maior sonho é ser um bicho de estimação. Ter a vida fácil, curta, aproveitar a minha comida de graça, meus banhos semanais cheios de bagunça, dormir quando eu quiser... É, deixo de fora a parte de cagar no chão, na real"
Pensei, como se estivesse comentando com alguém. Acreditei que fosse difícil que alguém pudesse escutar a minha reclamação, visto que o meu quarto andava escuro e solitário, recentemente.
"Petiscos, voltinhas na praça, latir quando tô bravo com alguém e não ser julgado por isso... não ter ansiedade com o que estão pensando sobre mim. Porra, que vida foda."
- Você tem certeza de que é assim que eles vivem?
Uma voz doce ressoou da minha janela. Acho que eu pensei alto demais.
Confuso, mas não assustado, eu respondi.
- Tenho. Vivo com o gatinho mais lindo da face da terra, e minha alegria diária é tentar fazer ele perceber o quanto é amado. Meu maior medo, quando nossos olhares se encontram, é pensar que ele pode ir embora a qualquer momento, e a maior felicidade dele talvez seja o fato de que nunca vai saber disso.
- Você é doido. Acha mesmo que os bichinhos não sentem nada? A voz me perguntou, num tom desafiador. Não conseguia distinguir se era um menino ou uma menina falando comigo, mas isso parecia não me importar agora.
- Claro que não! - Confirmei, mesmo sem ter tanta certeza. Me senti desafiado, e preparado para afirmar tudo o que eu, na verdade, não sei.
- Eles não têm tempo pra isso, ficam ocupados demais pensando em qual monte de roupa vão fazer xixi dessa vez. - Completei, me esforçando para que a risada interna não transparecesse.
- E eu acho o contrário, na verdade. Talvez a maior semelhança dos nossos bichos pra gente é que eles sentem demais. Eles cometem erros todos os dias, e aprendem com a maioria. Demonstram o amor por nós sempre que possível, nos dão o conforto e o carinho que muita gente não consegue mostrar de volta... - E cagam no chão - Interrompi, gargalhando de leve. O momento era oportuno demais para perder uma piada assim.
- Me escuta! - A voz exclamou, com uma urgência que me parecia genuína, e não nervosa. Como a voz de alguém que tenta ser compreendida por um coração, mas não consegue. As piadas podem esperar um pouco, agora.
- Meu ponto é que eu acho que eles sentem até mais do que a gente. O defeito tá nas pessoas, por não verem isso, e não neles, por não conseguirem falar tudo o que querem. A gente pode, e não faz. Eu queria ser um bichinho também, mas pra que eu pudesse gritar que amo as minhas pessoas favoritas, e não me frustrar com a resposta, porque sei que pra eles eu tô só ronronando...
Enquanto a voz falava, eu sorrateiramente me aproximava da janela. Gostava cada vez mais da conversa, mas ainda assim a curiosidade em descobrir como alguém se pendurou no segundo andar falava mais forte.
- E qual a diferença deles pra gente, então? - Sussurrei enquanto, da janela, eu tentava olhar pra noite lá fora. Precisava dar um rosto a quem conversava comigo.
Ao longe, pude ver que uma figura com olhos verdes, reluzentes como as estrelas, observava os meus movimentos calmamente, e sorria em meio ao vento que cortava a longa madrugada.
- Acho que eles são melhores em dizer adeus - A figura respondeu com o olhar, sem que dissesse uma palavra.
- A lua tá linda hoje - Tentei continuar a conversa, me esforçando para que a frase que eu ouvi não significasse que tudo acabaria ali. Antes que eu pudesse me dar conta, a figura esboçou o seu primeiro sorriso, e desapareceu. Como o frio desaparece com os primeiros raios de sol da manhã, que lutam para cumprir a sua função de anunciar mais um dia. Como uma memória distante, do que não posso mais viver. Como algo querido, que se foi sem avisar, tudo se foi. Não mais haviam olhos verdes, não mais haviam bichinhos, não houve um adeus... Mas a lua estava linda.
Dizem que conversas entre bêbados são as mais sinceras. Sinceramente, não acredito que estão certos. Ditados não são o suficiente quando se trata de Sol e meu azar pra escolher o que falar.
Comments (0)
See all