Tetsurou tomou cuidado ao sair do quarto. Assim que fechou o shōji atrás de si, deparou-se com Kiri o esperando no corredor.
— Você não escuta, não é? Naruko-san já te disse para não a levar mais lá. E eu também não quero a Mirai andando com você para fora daqui — exigiu em um tom estridente. — Nem aqui, na realidade.
— Não precisa mais se preocupar. Não farei de novo.
— É mesmo? Eu me lembro de ter escutado isso da última vez. — Kiri já não sussurrava, sem se importar se a irmã dormia. — Ela está doente, Tetsurou, precisa ficar em repouso absoluto. Você se diz um curandeiro, mas é irresponsável. Não pensa nas consequências dos seus atos.
Tetsurou suspirou da forma mais silenciosa que conseguiu, abstraindo as críticas, ignorando as feridas que a dureza de Kiri formavam. Depois de tanto apanhar, não deixavam as mesmas marcas como antes — elas já eram profundas demais.
E não queria sair de lá brigado com ela, de qualquer forma.
— Mirai-chan gosta de ir comigo até lá, ajuda a deixa-la feliz. Mesmo doente, não é bom ela ficar pres…
— Não é você quem decide o que é bom para ela. — Kiri cortou ríspida.
Tetsurou já sabia o rumo daquela conversa, por todas as anteriores que teve com ela, com Chiyo, Naruko e Kaori, que já havia se casado. Em outro momento, concordaria ou viraria as costas para evitar conflito, mas na situação em que estava…
— Eu vou embora por um tempo, Kiri-onee-sama — disse ele. — Não faço ideia de por quanto tempo, mas sei o que preciso fazer para que Mirai melhore.
Kiri ergueu uma sobrancelha.
— Você fala como se eu me importasse. — Ela estalou a língua, indiferente. — Vai ser ótimo, na verdade. Assim pelo menos Mirai ficará segura em casa e sem sua má influência a rondando.
Quando criança, Tetsurou ficava afetado com os insultos das irmãs, escutando calado e sempre se perguntando o que fez de tão ruim para elas. Só entendeu anos mais tarde, e mesmo assim ainda doía. E quando a dor é muita, é natural que se acostume com ela. Fisicamente. Mentalmente. A ponto de ele chegar a ter empatia pela mágoa delas, mesmo que elas fossem capazes de jogá-lo aos cachorros, se tivessem a chance. Então era mais fácil ignorar, relevar. Perto da dor de ter perdido Yusuke e ser chamado de mentiroso por ele, e com razão, o que era aquilo?
— Não me importo com o que pensa, apenas avise nossos pais depois que eu vou partir. — Tetsurou desdobrou um papel guardado em meio aos tecidos de sua hakama e entregou. — Tudo o que está escrito aqui é como eu preparo as ervas para o chá da Mirai, para os sintomas retrocederem e ela não sofrer com a dor. Ela aprendeu a fazer, mas seria bom se alguma de vocês também aprendesse.
Kiri pegou o papel amassado e passou os olhos sem o menor interesse pelo conteúdo, mas assim que prestou atenção em como estava escrito, sua expressão mudou radicalmente, distorcendo-se pela cólera.
— Você está debochando de mim? — Kiri o olhou com o mais profundo desprezo. — Quer zombar de nós? Seu papel cheio de kanji sofisticados é inútil. Não serve pra nada, assim como você!
E em um movimento, Kiri rasgou o papel em várias partes, deixando que o irmão contemplasse enquanto os pedaços flutuavam pelo ar, o “não!” que exclamou deslizando e sumindo. Algo novo borbulhou em seu peito.
Já bastava.
— Qual é o seu problema, Kiri? Isso era a receita do chá que ajuda Mirai a melhorar! — gritou frustrado, sem realmente elevar a voz. — Era só dar ao nosso pai que ele lia! Ou… ou pedir e eu escrevia em hiragana!
— Que bondoso! Você iria traduzir esses kanji para eu compreender o que você escreveu!
— O quê? — Sua voz suavizou, mas ainda era indignada. — Você entendeu errado, eu não quis… Nunca foi minha intenção te subestimar!
Estava tão angustiado pela situação de Mirai enquanto escrevia que não havia pensado naquele detalhe. Mesmo assim…
— Eu só estou te pedindo um favor, Kiri. Apenas um, em minha vida toda! Eu não…
Ele não tinha forças para continuar.
Convencê-la do contrário não valia a pena. Falar que havia abdicado da herança da família, que sequer se casaria ou que achava igualmente injusto uma delas não ser escolhida para se tornar matriarca, era inútil. Kiri não acreditaria. Nenhuma de suas irmãs jamais escutou, não seria agora que iriam confiar em qualquer palavra que saísse de sua boca.
Ao invés disso, ele respirou fundo e tentou se acalmar. Detestava ficar alterado, e ainda corria o risco de acordar a irmã.
— Eu não vou mais incomodar nenhuma de vocês. — E se curvou, despedindo-se.
— Pode ir — disse ela. — Não temos mais nada para conversar. Viaje para onde bem entender e, se quiser fazer um favor a todos, fique por lá mesmo.
Kiri bateu os pés na madeira até sumir corredor adentro.
Tetsurou se agachou para juntar os papéis, aliviado pela discussão ter acabado. Não havia tempo de escrever a receita outra vez. Preocupava-se com Mirai; será que conseguiria tomar conta de si mesma? Tinha ensinado tudo o que podia a ela, precisava confiar em sua aprendizagem. Em todo caso, suas irmãs podiam até desprezá-lo, mas se importavam com a mais nova. Não a deixariam sofrer. Se fosse necessário colar sua carta e mandar alguém ler, elas assim fariam.
A trouxa de roupas, utensílios e comida que levaria estava preparada em um canto de seu quarto. Já havia se despedido da única que o importava naquela casa, só precisava se lembrar exatamente do caminho que o levaria até Akayama.
E foi-se, à luz da lua, determinado demais para perceber os olhos que o espreitavam.
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