Ele fechou os olhos com mais força dessa vez, alfinetando os lábios com os dentes. Não queria ter que falar, mas não conseguia mentir para a mãe. Respirou fundo, se preparando para a tempestade a caminho.
— É o Tetsurou, mãe.
Seguiu-se um silêncio longo e perturbador. Akane deu um passo para trás, suas feições se transmutando de tristeza para cólera.
— Você está me dizendo que irá sair no meio da noite até a Akayama para ir atrás daquele garoto? — Havia tanto rancor em cada uma daquelas palavras que Yusuke sentiu o seu peito doer, como se queimasse. — Logo ele! Filho daquela família! Não acredito, Yusuke, por acaso vocês dois voltaram a ser…
— Não, mãe, nunca! — exaltou-se. — Eu jamais voltaria a ser amigo dele, sabe disso! Eu odeio ele e os Seki tanto quanto você!
— Então por que ir?!
— Eu preciso! O que farei com minha consciência se ele morrer?
A mulher parou, ponderando em silêncio. Aproximou-se novamente do filho, seu rosto se transformando de novo. Yusuke conseguia vê-lo melhor agora, repleto de linhas fechadas. Quando voltou a falar, foi assertiva no tom:
— Você não vai, Yusuke.
— Mãe…
— Eu não vou permitir que meu filho se arrisque para salvar o herdeiro da família inimiga. Aquela… — Seu tom se tornou agudo, cheio de ódio. — Aquela família que tanto te maltratou e que nos fez perder tudo! Deixemos que ele morra sozinho, que seja responsável pelas suas próprias ações, que os Deuses o punam!
Fitando-a em seu estado alterado, Yusuke cuidou em como iria falar para rebater — algo atípico de sua personalidade, mas necessário quando a mãe se descontrolava. Não eram muitas as vezes que acontecia, mas os Seki mexiam com ela de uma forma especial. Por isso, ele precisava fazer algo raro: pensar antes de agir. Não seria fácil. Ela não aceitaria. Mas tinha que tentar amenizar, fazê-la entender que não era por Tetsurou. Afinal, salvando-o ou não, não traria suas riquezas de volta, nem livraria ela do homem que a surrava, muito menos apagaria as coisas que ele fez no passado, mesmo que Yuu quisesse muito esquecer.
Ele tocou o rosto dela e acariciou levemente, como se tocasse a joia mais delicada do mundo. Akane estava encolhida, mirando baixo com os ombros estreitos. Era terrível vê-la daquela forma, impotente e querendo protegê-lo a todo custo.
Mas ela não precisava mais fazer isso.
— Mãe, eu sou um samurai — disse, fazendo-a levantar o rosto. — Não posso deixar de cumprir um dos meus deveres, que é proteger as pessoas daqui, só porque a senhora não permite.
— Mas Yusuke…!
— Isso está além da nossa relação de mãe e filho, se trata da minha honra. Minha obrigação como o guerreiro que escolhi ser.
A mãe soluçou, soltando um suspiro melancólico. Yusuke sentiu o fogo queimando seu coração aumentar ao vê-la chorando, ao mesmo tempo em que o relógio da travessia de Tetsurou batia mais rápido em sua cabeça. Precisava sair agora. Inclinou-se, encostando os lábios na testa da mãe, que fechou os olhos cheios d'água.
— Eu não posso mesmo te impedir, não é? — Ela fungou contra o peito dele, a voz embargada. — Nunca pude te impedir, na verdade…
Ela o empurrou devagar, se livrando de seu toque. Então finalmente o encarou, e Yusuke enxergou a curva triste em seus lábios ressecados, a impotência dominando sua expressão. Assistiu ela limpar o rosto com a barra do yukata que vestia, inspirando fundo. Quando se sentiu pronta, lançou-lhe um olhar já sem lágrimas.
— Creio que a única coisa que posso fazer por você nessa situação… é rezar para que Inari-sama te proteja, meu filho.
Yusuke dobrou-se inteiro quando se curvou, deixando a sua nuca à mostra.
— Não irei te desonrar, mãe, estou indo porque é a minha obrigação. — E se ergueu. O fogo no peito não passava de uma brasa agora, estava tranquilo para partir. O senhor do tempo estalou em sua mente. — Eu devo ir agora.
Fez uma última reverência e passou por ela correndo, mas uma mão agarrou seu kimono. Yusuke virou-se para encontrar Akane novamente o impedindo.
— Eu devo te dar algo antes de ir.
Ela sumiu pela abertura da porta, sendo engolida pelas trevas da casa. Yusuke arrastou a mão pelo cabelo, suspirando impaciente, mas decidiu esperar. E ainda bem que esperou. Não demorou e Akane retornou com algo amassado entre os dedos. Em sua inocência, Yuu pensou se tratar de um amuleto de boa sorte e proteção.
— Yuu-kun, leve isso com você. — O tom dela era decidido, muito diferente do choroso de antes. O samurai franziu o cenho quando lhe foi estendido um pergaminho dobrado, rasgado em várias partes de tão velho.
Ele a encarou sem entender.
— Desde a primeira vez que você partiu para a guerra… eu prometi a mim mesma que te entregaria isso assim que você voltasse para casa, pois me arrependi de ter te deixado ir sem saber a verdade. Mas eu nunca consegui. — Akane curvou-se respeitosamente. — Leve-a com você, meu filho, para que entenda melhor o seu passado.
— O meu passado? — Ele refletiu, franzindo a testa. — O que há no meu passado?
— Como você chegou até nós.
A cabeça de Yusuke rodou, sentindo uma pontada no peito. Não sabia de nada de sua história além dos lapsos que tinha, vez ou outra, de quando era pequeno demais para guardar lembranças. Sempre foi muito bem tratado por Akane, jamais teve vontade de ir atrás do seu passado perdido.
— Eu não te contei, mesmo sendo seu direito saber. Eu posterguei, e quando me dei conta… você já tinha ido embora de novo e de novo. — Seu semblante entristeceu para em seguida endurecer, repleto de rugas. — Mesmo que eu não goste da ideia… é direito do garoto Seki saber também.
Yusuke arregalou os olhos; o nome daquela família saiu pela primeira vez sem rancor da boca de sua mãe.
— Está me dizendo para ler com ele?
Era visível a relutância dela em responder.
— Sim.
— Como… por quê?
— Por favor, não me pergunte mais nada. Entenderá quando ler.
O samurai ficou durante um longo tempo fitando o pergaminho em sua posse. A ansiedade o implorava para ler, mas os ponteiros mentais já haviam soado a última badalada. Precisava se apressar para que fosse possível compartilhar daquele novo segredo com Tetsurou.
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