Não conseguia acreditar que havia encontrado Tetsurou.
Ou melhor, não podia acreditar que foi Tetsurou quem o encontrou — era a primeira vez que acontecia.
Um milagre. Um que não estava alcançando seus pulmões, tão fracos quanto poderiam. Yusuke sentia que um ataque do coração era iminente, mas ao menos a tempestade lá fora, que havia se amenizado para uma chuva sem trégua, não o prejudicava mais. Estava sob um teto de folhas secas com vários buracos, uma estrutura duvidosa, cheirando a pó e sem nenhum conforto. Abandonada. Mas não fosse por essa choupana construída no meio do nada, o protegendo ao menos dos males externos, como estaria conseguindo disfarçar as pontadas sentidas no peito até agora? Ele até mesmo teve que ajudar a carregar aqueles dois desertores até onde Tetsurou havia indicado: um foco de luz amarelo distante, onde havia deixado a lanterna como guia de direção — não que tenha funcionado apropriadamente. Segundos de distração e Tetsurou se perdia em outros caminhos. Se Yusuke não estivesse lá, estirado no chão… o que teria acontecido?
Tetsurou iria encontrar aqueles rōnin ou então se perder num labirinto de perigos, digerido pela montanha. Em qualquer opção, teria seu premeditado fim. Sem conseguir salvar ninguém — nem ele mesmo.
Os olhos pousaram nos outros dois corpos deitados no chão de madeira do abrigo provisório, mais perto de si do que gostaria.
Ele tinha que salvá-los? Yusuke protestou, estalando a língua. Na parca iluminação da lanterna, tinha uma visão de seus rostos e eram como imaginara: um realmente mais jovem, deveria ser um aprendiz; o outro na segunda idade, mais pelos no bigode do que no cabelo. Tetsurou já havia dado um jeito no ferimento feito pela wakizashi e no galo proeminente na testa, e terminava de usar o dedo indicador e médio em riste, pressionando pontos específicos no peito de cada um. Yusuke se pegou preso àquelas mãos, lembrando-se de quando elas o tocavam assim após cair de uma árvore ou se ralar nas pedreiras, quando eram melhores amigos. Desde criança Tetsurou possuía uma sensibilidade diferente nas palmas. Ele era tão bom em massagens terapêuticas quanto era para criar sombras de bichinhos na parede.
Uma pontada aguda o acertou quando respirou, fazendo-o grunhir. Isso chamou a atenção de Tetsurou, que se apressou em ir até ele.
— Yuu, você também está machucado? Deixa eu dar uma olhada.
— Não toque em mim. — Yusuke se esquivou antes que Tetsurou o alcançasse, sem querer olhá-lo nem por mais um segundo. — Eu estou bem.
Tetsurou franziu as sobrancelhas. Yusuke estava pálido, com a respiração descompassada e uma constante expressão de sofrimento. Ele não era um bom mentiroso, nem um leigo acreditaria em suas palavras. Yusuke estava sofrendo, mas seu orgulho era duro como diamante. Ainda assim, mesmo diante da recusa, Tetsurou avançou novamente, dessa vez mais devagar.
— Não seja tão orgulhoso, Yuu. — A voz dele era macia. — Eu vou cuidar de voc…
A paciência de Yusuke se esgotou. Não poderia deixar Tetsurou se aproximar mais, ninguém podia saber que ele estava tal qual um moribundo à beira da morte. Os samurais ainda estavam ali; e se estivessem fingindo dormir, esperando uma brecha para atacar? Colocaria Tetsurou em um perigo ainda maior. Quando sentiu as mãos mornas tocando o seu braço, prontas para levantar as mangas do kimono, o pânico se apoderou da sua razão.
— Já disse para tirar as mãos de mim! — Yusuke empurrou o corpo para trás, a voz tão alta que fez Tetsurou se afastar mais, não ousando se aproximar de novo.
A distância que separava os olhos cravados um no outro era preenchida por rancor, a saudade e os anos que foram perdidos. Yusuke espremeu as sobrancelhas, tentando engolir o gemido causado pelo aperto no coração. A mancha estava ficando mais forte, devorando seu corpo. Tetsurou percebeu, mas não iria mais insistir. Ao invés disso, retomou o lugar onde antes estava e sentou-se, suspirando no final.
Se não podia agir diretamente, iria entrar no rio pelo raso.
— Pelo menos coma, você fica com essa expressão carrancuda quando está com fome.
Yusuke mal havia comido após um dia inteiro de viagem — ele estava faminto. Mesmo que já houvesse sobrevivido sem comida em outras situações, não seria boa ideia recusá-la agora. Ele ficou ainda mais irritado, e se havia uma expressão ruim em seu rosto, piorou com a observação de Tetsurou. Como o curandeiro já esperava por aquilo, empurrou o pote de madeira com arroz para perto de Yusuke e sorriu ao encher as bochechas com a própria comida.
— Termine logo de comer para descermos, quero voltar antes do amanhecer — reclamou o samurai, ignorando o pote ao seu lado.
— Sei que não quer ficar muito tempo perto de mim. Então se você me ajudar e comer também, podemos partir daqui uns instantes…
Antes que Tetsurou terminasse a frase, Yusuke já estava com o maldito pote em mãos, devorando o arroz. Em uma situação normal, jamais encostaria em algo feito por um Seki, ainda mais aquele Seki.
Mas não era uma situação normal.
Se fosse, não estaria sentindo a vitalidade retornar ao corpo conforme levava o hashi até a boca e engolia a refeição simplória, mas deliciosa. Comeu sem vergonha, até esquecendo-se de que tinha companhia. A cor bronzeada voltava à pele, e Yusuke podia sentir a mancha desabrochando, retrocedendo até o ponto inicial no peito. Então ele entendeu: que forma mais simples de fazer magia curativa que cozinhar?
Quando virou-se perplexo para Tetsurou, ele estava sorrindo.
Mas não pelo motivo que imaginou.
— Então você ainda usa isso… — divagou o curandeiro, olhando fixo para um ponto em Yusuke.
Acompanhou a direção do olhar: a pulseira que o acompanhava desde que acordou no vilarejo, há vinte anos. Feita de uma palha resistente, nunca se rompeu ou deu sinal de deterioração. Era trançada em três cordas finas e terminava em um laço preso com uma conta preta.
Nunca havia tido coragem de se livrar da única parte de seu passado, antes mesmo de ser deixado em Ise, imune ao desgaste do tempo. Já havia perdido muito na vida, não queria abandonar o único elo com o que ele era antes de chegar naquele lugar.
Como não poderia deixar de ser, Seki Tetsurou tinha a mesma pulseira também no pulso esquerdo.
Não foi preciso mais de um segundo para Yusuke entender o que ele queria dizer. Puxou a barra da manga do kimono para baixo, escondendo-a de vista.
— Isso não tem nada a ver com você — falou arisco. — É a única coisa que sobrou da vida que não conhecemos. Não vou me desfazer dela só porque você também tem uma.
Tetsurou tomou o seu arroz de volta em silêncio e Yuu se questionou se havia alguma resposta que ele desejava dar. Seja qual fosse, ela não veio. Ao invés disso, a boca dele foi tomada pelo restante da comida, deixando o pote de madeira limpo. Nesse meio tempo, Yusuke o viu com um olhar vago incomum. Não soube distinguir se estava com medo, chateado ou apenas pensativo.
Não importava. Devia aproveitar a repentina melhora para concentrar as forças no que precisava fazer: levá-lo de volta para o vilarejo. De volta… para um ambiente impregnado por doença. Por morte. Se o curandeiro mais famoso dentre os vivos de todos os clãs não conseguiu encontrar a cura, se não havia mesmo uma solução, qual era a diferença entre subir ou descer a montanha? Para cima, ao menos, teria uma chance de reverter a situação. Mas para acreditar nisso, também teria que crer na versão dos fatos fantasiada por Tetsurou. Para Yusuke, tal diferença tinha se tornado meramente uma linha tênue marcada pelo rosto da mãe. Precisava voltar por ela.
Ao lembrar-se de Akane, o papel no meio das suas vestes pesou. Limpando a garganta uma vez após comer, Yusuke parou, refletindo sobre as palavras da senhora Kou antes de sair de casa. Ele tinha o poder de decidir se compartilhava ou não o conteúdo do papel — mais que isso, tinha o poder de deixar Tetsurou tomar conhecimento de algo que aparentemente o envolvia. Deveria ser tão bondoso, depois de tudo? Poderia guardar para si, deixá-lo na ignorância até o fim dos tempos. Seria um castigo apropriado.
É você quem deve decidir isso? Sua própria voz contestou mentalmente. Ele nem reparou em como estava de olhos fechados, puxando as contas de madeira do seu japamala, que usava nas meditações devotadas à Inari.
O conflito interno do antigo amigo roubou a atenção de Tetsurou, que abriu a boca para informar que não desistiria àquele ponto. Ele iria arriscar mais um convite para Yusuke acompanhá-lo até o topo — era a única chance de salvá-las: Hana. Mirai. Akane…
— Tetsurou — chamou Yusuke, mergulhando a mão mais fundo nas dobras do vestuário azul. Seu rosto ainda trazia a sombra do conflito, como se agindo contra sua vontade. A ponta do papel velho podia ser vista entre os dedos. — Estou com algo que minha mãe me deu. Isso… ela me falou para abrir com…
Um som o fez se calar, virando-se para os dois homens deitados. O sopro de uma flauta atravessou e contornou o medo de ambos: onde deveria haver dois homens deitados.
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