Uma pressão no coração o fez parar, levando a mão ao peito. A dor se tornou mais violenta.
— Yuu-chan? Tudo bem?
Por que estou lembrando disso agora? Yusuke mordeu a língua e o gosto ácido da saliva o trouxe de volta para o momento. Subindo a Akayama, ao invés de descer. Arriscando sua vida por Tetsurou ao invés de ir ver a mãe antes de morrer. Quão tolo ele conseguia ser? Tinha que se apressar para mudar o foco dos pensamentos. A mancha se espalhando pelo corpo fazia a dor ficar ainda mais intensa.
— Ei Seki, você falou que não estávamos longe, mas estamos há mais de uma hora andando! — reclamou Yusuke, ficar perto do curandeiro o adoecia.
— Estamos? — Tetsurou parou para olhar para trás, a respiração controlada. — Eu devo ter me perdido um pouco… mas estamos perto agora, eu tenho certeza.
— Não me diga — Yuu reclamou, de mau humor. — Como você pode ter certeza de algo, se não sabe nem onde fica esse templo onde disse que está a maldita planta?
Yusuke esperou por uma resposta que demorava demais para vir, até que Tetsurou voltou a olhar para frente.
— Ei, Seki! Não me igno…
— Shhh, Yuu-chan. — Encostou o dedo no lábio. — Você ouviu?
— Ouvi o quê?
Yuu procurou o que quer que fosse e sentiu.
Florestas eram como tumbas de silêncio, um samurai treinado ouviria a cobra mais sorrateira. Mas Akayama era o oposto. De algum jeito, a montanha era anormalmente inquieta, barulhenta, feita para o trabalho de caça e caçador. Mas até mesmo ali, o som de passos humanos seria reconhecível. Nítido. Passos invisíveis, como se o dono daqueles pés estivesse flutuando acima das folhagens.
Os ruídos os cercavam, a inquietante sensação de serem espreitados não passava. Yusuke se posicionou para protegê-lo, não importava o seu orgulho ou o quanto seus músculos pediam por socorro. Iria cumprir a sua missão e mesmo que acabasse morrendo, morreria com honra.
— Fica perto de mim, Seki! — O grito saiu entredentes.
Esperou que ele corresse para trás de si de imediato, mas sua voz estava tão distante… As árvores balançando com o vento berravam mais alto. Tetsurou se afastava cada vez mais, mesmo que não movimentasse um músculo. A luz serena do luar se tornou mais densa. Yusuke deixou a lanterna cair, seus olhos se tornaram pontos minúsculos. Onde estava o Seki? Quase sem enxergar, sentiu o ambiente ser tomado por um tom púrpura puro, como se a lua tivesse sido tingida pela cor. Yusuke segurou forte na Verdadeira Lâmina da Serpente, prestes a mostrar seu aço azul da pior forma para o inimigo.
Mas que inimigo?
Mordeu o lábio para segurar um gemido, a dor da mancha se estendendo ainda mais e mais e mais. Não precisou verificar para ter certeza de que ela já havia se espalhado para além de seu quadril. Procurou a ajuda de Tetsurou à frente, mas não havia ninguém. Buscou em volta, mas seus movimentos eram lentos, líquidos, limitados. Forçou-se a se virar para trás, sentindo uma pontada mortal atingi-lo no coração ao pisar para voltar. Não havia volta. Um arrepio o nocauteou quando o roxo iluminando o ambiente se transformou em escarlate.
Escarlate, igual ao sangue que manchava as roupas de um corpo estirado mais à frente. Yusuke hesitou, o medo vencendo o cabo de guerra em sua garganta, formando um nó difícil. Por fim, andou até o corpo inerte e identificou marcas de mordida no pescoço, como se… como se…
A ânsia de vômito fez suas mãos voarem até a boca. Fraco, sem ar. Não. Não queria olhar de volta, não queria se aproximar, não queria acreditar. A imagem vívida dos rasgos na roupa banhada de vermelho, da pele fatiada em fendas compridas. O corpo torto, a cabeça virada na sua direção e os olhos, com um tom de mel muito claro, opacos.
Tetsurou estava morto.
Não tinha forças para sustentar a espada, sequer o próprio corpo. As pernas amoleceram. Caiu de joelhos. Ele tremia tanto, os olhos piscavam para evitar a torrente de lágrimas. O grito de desespero não conseguiu passar do nó na garganta.
Uma risada grossa e cínica ecoou.
De repente não havia mais a luz vermelha, o sangue, o ex-amigo retalhado. Virou o rosto devagar, levando aqueles segundos para controlar a respiração e se acostumar à clareza dos pensamentos, ao pulso voltando ao normal e à saliva molhando a boca. O mundo tinha se transformado num piscar de olhos. Tetsurou apareceu ao seu lado, a pálida mão trêmula para o além.
Yusuke buscou em sua memória, mas não encontrou nada que justificasse Tetsurou estar tão descompassado quanto ele, a não ser que fosse uma ilusão real. Estava no ar que respirava, alguma toxina liberada pela floresta, ou então…
— Magia de raposa… — o sussurro de Tetsurou acompanhou o medo em seus olhos.
Yusuke não teve tempo de se deixar paralisar. A cabeça deles virou rápido ao menor barulho. Os arbustos se moveram ao uivo do vento, dançando e farfalhando ao seu redor. O tom vermelho cobriu a montanha novamente. O estômago borbulhou, a cabeça doía, mas nada era tão forte quanto a tortura se alastrando por seu abdômen. Ele já não sabia diferenciar o que era dor e o que era medo.
— Yusuke! A raposa! — A voz de Tetsurou pareceu vir de tão longe…
O samurai não conseguiu segui-lo, seu corpo tombou de barriga no chão. Ele mal o sustentava com o esforço dos braços, tampouco tinha força para erguer a voz.
Precisava se controlar, ele ainda tinha que proteger Tetsurou. Não deixaria a alucinação se tornar realidade. Tinha que segui-lo, mesmo que aquela mancha o possuísse por completo, pois se Tetsurou vivesse, a cura para a aldeia estaria em boas mãos.
Levantou o queixo, apertou forte a grama com as mãos cheias, terra entrou nas suas unhas. Tomou impulso para se erguer, suportando todo sofrimento que se equilibrar causava. Coração batendo rápido. Apressou o passo, largando a sua lanterna e se guiando apenas pela luz fraca de Tetsurou no meio da escuridão.
Tão escuro, tão escuro. Não só a floresta, mas a visão. Mais embaçada, mais turva, mais negra. Ele se agarrou àquele pequeno foco amarelo se movimentando entre as folhagens e pedras escorregadias.
Sua respiração já era muito alta e rouca quando a luz sumiu na neblina. Não sabia exatamente quando a fumaça branca passou a atrapalhá-lo, mas mesmo com sua cabeça latejando, tinha consciência de que algo estava errado. As flores e os troncos tinham cores diferentes, as árvores pareciam murmurar e até cantar.
Mas… a luz.
Precisava alcançar Tetsurou!
Soltou mais um grunhido de dor, apoiando as costas em um tronco para tomar fôlego. A mata fechada não o impediu de afastar as folhas, ignorar a neblina e seguir em frente. Jogar ar para os pulmões se tornou difícil demais. Não duraria mais que alguns minutos antes de perder a consciência. Andou até as folhagens acabarem e as cores sumirem. A neblina se intensificou naquele ponto, tudo o que sua visão já definhando identificou foram partes vermelhas de uma ponte, mas o outro lado estava oculto pelas nuvens brancas espessas.
Que escolha tinha? Era prosseguir ou morrer ao terceiro passo para trás.
A ponte era feita de madeira — seu primeiro passo a fez ranger, ressoar em um eco tenebroso pelas profundezas do abismo. Não tinha como saber quantos metros o separavam do chão; além do nevoeiro, era difícil se concentrar em algo que não fosse respirar. Apoiou o braço no corrimão largo e o usou para seguir daquele ponto.
— Seki! — gritou com o restante das forças. E mais alto: — Tetsu!
O som ecoou. Nenhuma resposta.
Um passo atrás do outro, ele desapareceu na imensidão branca.
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