Suas mãos secas pegaram o machado do seu oponente e o testou batendo-o naquilo que sobrou da cabeça dele. Ela correu pelo corredor sem olhar para trás. Seu único pensamento era encontrar a menina e sair dali com vida.
— Ji Young, será que você simplesmente não morre? — sussurrou a voz no ouvido dela — estou perdendo a minha paciência com você.
— Essa casa é maior que parece, parabéns pelo truque de mágica que a fez parecer pequena do lado de fora.
— Está julgando que uso truques baratos?
— Baratos? Estou dizendo que você usa truques ultrapassados. Tudo que você fez até agora não é nada comparado com o que as bruxas iniciantes fazem no seu primeiro ano de aula.
— Quem é você para dizer algo sobre a escola de bruxas?
— Pensei que você lesse pensamentos.
— Leio pensamentos, não memórias — confessou a bruxa tola.
— Como disse, truques ultrapassados — disse Ji Young.
Ji Young se deparou com uma porta bizarramente elaborada com pele de veado e pintada com sangue verde de um troll. Ela não esperou para saber do que se tratava, somente usou o seu machado para parti-la ao meio. Diante dela, uma sala cheia de quadros surgiu. Todas as pinturas eram rostos de mulheres jovens de todas as raças e nacionalidades. Por um segundo, Ji Young jurou ter visto uma imagem de sua irmã, mas logo retomou o juízo. Aquelas pinturas foram criadas estrategicamente para invocar memórias nas pessoas.
— Receio que você encontrou a minha sala favorita de todo esse lugar — disse uma mulher à sua direita.
— É só o que me faltava. Até mesmo as pinturas você pode controlar! Será que tudo aqui é controlável?
— Ji Young, pare de fugir de mim e tente me escutar — falou outra mulher.
— Escutar a mesma abobrinha sobre matar uma menina inocente?
— Yumiko não é inocente. Você já ouviu a história sobre ela e sua rebeldia contra a sua mãe, a grande Taiyokoshinjo?
— Isso é só uma lenda…
— Essa lenda é verdadeira. A deusa fugiu do reino de cristal e veio para Miragem com uma fórmula mágica que pode fundir três criaturas numa quimera.
— Se isso for verdade, você é uma hipócrita, visto que o urso era uma criança humana transformada em fera por tuas mãos. Qual a diferença da Yumiko com você?
— Estúpida, isso é muito diferente de colocar uma alma num outro corpo. Yumiko fundirá duas mentes em uma, criando uma mente com a personalidade de um e as lembranças de outro. Isso é uma blasfêmia contra as criadoras de todas as coisas!
— Acredito que você tem que rever os seus conceitos sobre blasfêmia.
Todas as mulheres das pinturas, ao mesmo tempo, vomitaram um líquido verde como se fosse uma cachoeira. Ji Young tentou fugir, mas por ser uma mulher esguia, as águas começaram a dificultar o andar das suas pernas.
— Desta casa, sou a deusa! — sussurrou a voz. Pobre Ji Young! Quem poderá salvar nossa guerreira?
Ela começou a ficar em desespero conforme buscava uma saída daquele que parecia ser o fim da sua jornada. Ji Young parou de tentar escapar da morte e simplesmente fechou os olhos. Sua mente encheu-se com lembranças do passado, fazendo ela questionar se valeu a pena sua vida de guerreira errante. “Que os deuses tenham misericórdia da minha alma” pensou Ji Young já sentindo sua vida deixar o seu corpo. De repente, uma explosão fez a parede a sua direita se partir ao meio. Toda a água foi diminuindo, levando os quadros consigo. O Urso, saindo do buraco, saltou ao lado dela. Ele esticou sua pata e ajudou Ji Young a se levantar do chão. Ela não conseguia acreditar no que acabou de passar. Todas aquelas lembranças e medo foram uma sensação dolorosa que ela pretende nunca mais experimentar novamente.
— Procurei você até agora, perdi as esperanças de te encontrar com vida.
— Pensei que você foi embora.
— Não posso sair dessa casa, o feitiço da bruxa me impediu de cruzar a porta.
— Acredito que se a gente matar a bruxa, você é liberto dessa pele de urso — afirmou Ji Young.
— O que você está buscando? — Perguntou o Urso.
— Uma criança inocente que está prestes a ser morta por essa louca.
— Estranho, não me lembro de ter ouvido gritos de criança. Será que ela está dormindo ou, talvez, já veio morta para cá?
— Não importa, temos que procurar ela e dar o fora daqui o mais rápido possível.
Ji Young apanhou o machado do chão e caminhou com o urso pelo corredor que parecia não ter fim. Na sua frente, silhuetas de estátuas começaram a ganhar forma. Os dois pararam de andar. Se os homens empalhados fizeram tudo aquilo, o que dizer de estátuas feitas de ferro?
— Consigo ver uma porta à frente, porém, a estátua que a guarda é muito grande — afirmou o Urso.
— Não podemos arriscar o pescoço com aquela coisa — disse Ji Young preparando o marchado para a batalha.
— Não podemos voltar para trás, já que não sabemos o que nos espera.
— A bruxa não disse nada até agora, talvez ela tenha aprendido a lição.
— Você acredita que uma louca como ela aprendeu algo? — zombou o urso, esboçando um sorriso assustador no seu rosto peludo.
— Provavelmente não.
— Me promete que não vai me deixar morrer? — disse o Urso com os olhos lacrimejando.
— Pequeno, já fiz promessas demais por hoje. Vamos até lá com a certeza que sairemos vivos desse lugar maldito.
— Tem razão. Meu pai sempre dizia que os bons garotos não têm medo do bicho-papão. Honrarei o meu pai com a mesma coragem que você está tendo nesse momento.
— Agora levanta essa bunda do chão e, juntos, arrancaremos a cabeça dela.
Ji Young correu ao lado do urso rumo a única porta de todo aquele corredor sinistro. As estátuas ganharam vida conforme eles corriam. Suas espadas gigantes batiam no chão, mas não eram rápidas o suficiente para parar os nossos heróis.
Os arqueiros de chumbo desprenderam-se dos pedestais e atiraram suas setas, mas Ji Young foi rápido o suficiente para se proteger com o seu machado. Ela correu na direção deles e os despedaçou. O urso saltou sobre as outras esculturas vivas e as transformou em pedaços com sua força sobre-humana. O chão tremeu.
A estátua que guardava a porta ganhou vida. O rosto dela se despedaçava conforme as pernas gigantes se locomoviam. Em questão de segundos a estátua ganhou a face da Bruxa. Ji Young sentiu que aquele seria o seu maior desafio. A criatura, portando um martelo de guerra, bateu no chão com tamanha força que uma cratera se abriu. Ji Young correu na direção da cratera e saltou com o machado erguido. Antes que ela pudesse tocá-la, a estatueta acertou nela um golpe da sua mão como se estivesse batendo num inseto.
A guerreira colidiu com a parede, destruindo-a. O urso, percebendo que a sua amiga estava machucada, dirigiu-se rumo ao gigante de pedra. Usando suas garras, ele perfurou a pele dura da estátua e escalou feito um gato rumo ao rosto da bruxa. Os olhos dela brilharam como uma lâmpada. O urso fez uma expressão de medo diante do que estava para acontecer.
Raios saíram dos olhos da figura de pedra, acertando-o bem no seu peito. O urso caiu numa estaca de madeira quebrada. Ele sentiu o objeto perfurar sua carne e adentrar suas entranhas. Sangue manchou o tapete. Os gritos de agonia do jovem que fora um urso fizeram Ji Young urrar de raiva.
Ela se levantou do chão gritando seu grito de guerra. Com o machado nas mãos, Ji Young pulou igual a um sapo e, com a força de um gorila, acertou a ponta da sua arma no braço da estátua, quebrando ao meio. Ela pousou no chão e com um giro perfeito, destruiu a perna direita do gigante. A estátua começou a cair. Nossa guerreira acertou o machado na última perna intacta. O gigante caiu como uma árvore pesada que acaba de ser acertada por um raio. Ji Young, com um último golpe, destruiu a cabeça da bruxa, esparramando pedaços de mármore para toda a extremidade do corredor.
— Moça, por favor… — disse o jovem com uma expressão de medo.
— Pelos deuses, pobre moço, você está morrendo graças a minha estupidez — lamentou a mulher segurando a cabeça do jovem nos seus braços finos.
— Não chore. Você não podia fazer nada por mim. Estava condenado desde o momento em que fui sequestrado por essa bruxa.
— Meu jovem, me peça qualquer coisa e farei por você.
— Vingue minha morte… Arranque a cabeça dessa assassina e a enterre debaixo dos meus pés…
— Juro por todos os deuses que assim o farei.
— Que os mortos me recebam com glória! — clamou o jovem antes de morrer.
— Pelo contrário, que os heróis vivos te recebam na Terra Pura — lamentou Ji Young.
Ji Young, abandonando o corpo do seu companheiro, caminhou em direção à porta com a sua face expressando fúria. Com um golpe certeiro, a porta foi feita em pedaços. A guerreira entrou no cômodo e foi de encontro com um trono feito de ossos. Nele estava a Bruxa maligna esperando por sua convidada importuna.
— Perfurarei sua testa com o meu machado — afirmou Ji Young.
— Você ainda insiste em viver? — sorriu a mulher com uma expressão de ódio e desprezo — estava prestes a matar a deusa Yumiko quando você chegou. Será que você não entende o perigo que a humanidade está passando?
— Bruxa… por tudo que é sagrado nesse mundo, me entregue essa menina e prometo que sua morte será menos lenta.
— Olhe para trás — disse a bruxa apontando o seu dedo para uma pequena silhueta.
A jovem menina surgiu diante dos olhos de Ji Young amarrada em um poste de madeira. Nossa guerreira andou até a garota com a intenção de libertá-la, mas uma energia vermelha a impediu de se aproximar.
— Por favor, me ajuda! — clamou a garotinha.
— Não confie nessa voz — gritou a bruxa do seu trono — ela mente para você poder acreditar no que vê.
— Os homens mataram vocês no mesmo poste que essa criança está amarrada. Sua hipócrita! Você vai queimá-la como eles fizeram com vocês?
— Se for para libertar a humanidade dos crimes de Yumiko, farei com prazer.
— Eu não sou Yumiko! — Gritou a pequena — você me chama disso, mas não sou essa deusa!
Ji Young se cansou do falatório da sua inimiga. Com o machado em mãos, ela correu na direção do trono, pronta para cortar a garganta da sua inimiga. A bruxa percebeu o movimento da guerreira e lançou um raio sobre ela, porém, Ji Young desviou a tempo. Ela, com um salto perfeito, acertou seu machado na cabeça da bruxa, fazendo a infeliz se transformar em cinzas.
— Que a sua alma queime no inferno! — gritou Ji Young.
Ela caminhou até a criança, que gritava de medo com aquela cena perturbadora. Suas mãos desamarraram a pequena do poste e, com um abraço acolhedor, Ji Young a beijou na testa.
— Muito obrigada — disse a Menina chorando de alegria — pensei que seria morta e nunca mais veria o meu paizinho.
— Seu paizinho? — perguntou Ji Young com uma expressão curiosa.
— Sim, meu pai. Ele estava trabalhando no campo quando minha mãe foi morta pela bruxa…
— Espera um pouco — disse Ji Young soltando a garota — o seu pai deixou bem claro que morreu quando você foi sequestrada pela bruxa… você o viu morrer, não tem como não ter visto.
Um sorriso macabro estampou o rosto da menina. Ji Young a soltou dos seus braços. A criança, com um golpe de suas mãozinhas, arremessou Ji Young no trono da bruxa como se fosse uma laranja.
— Saturnina me prendeu aqui com um feitiço muito poderoso que inibia os meus poderes. Contudo, eu consegui projetar uma centelha da minha consciência na forma do fantasma que você viu no lado de fora. Graças a você, estou livre para continuar os meus planos.
A menina se aproximou do trono. Ji Young estava deitada nos destroços. Os olhos inocentes da miúda criança analisaram o corpo da guerreira em busca de ossos quebrados.
— Me desculpa, não devia ter usado minha força contra você. Sua coluna está quebrada e os seus dois joelhos estourados, mas não se preocupe, consigo quebrar e colocar de volta no lugar.
As pequenas mãozinhas da deusa fizeram uma energia rosa percorrer todo o corpo de Ji Young. Conforme a magia divina passeava pelo corpo, os ossos se reintegravam
— Não vou te matar, uma vez que você foi muito útil para mim.
— Eu não ligo para quem você seja, só quero saber o caminho que me leva a caverna do ogro — afirmou Ji Young com uma expressão séria.
— Você não se importa em ter sido enganada por mim?
— Eu não vim aqui por você, mas pela localização da caverna do ogro. Não dou a mínima para deuses, heróis e suas brigas estúpidas. Só quero o meu dinheiro…
— Gostei de você, uma humana que não desvia do seu propósito por nada — disse a menina com um sorriso no rosto — pisque os olhos três vezes e você surgirá na caverna e quando chegar lá nunca mais se lembrará do que aconteceu.
FIM
Ji Young não questionou a ordem da deusa. Ela piscou os olhos três vezes e, num passe de mágica, nunca mais se lembrou do que acontecera. Você deve estar se perguntando, se ela esqueceu de tudo que sucedeu, como você pode ter certeza que tudo isso de fato aconteceu? Oras, eu não posso dizer se tudo isso aconteceu ou não, mas garanto diante dos deuses que essa história é verdadeira! Ji Young matou o ogro, conseguiu salvar a princesa e voltou a viver sua vida de orgias, matanças, guerras e ódio e quanto a deusa… bem, essa é outra história.
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