13 de junho de 2025. Fortaleza, CE.
Ao ver a vampira se inclinar sobre a mesa à sua frente e sussurrar algo no ouvido do garçom, Damiano pensou que ter paciência era um péssimo hábito adquirido. Paciência era para os santos, ele estava longe demais de ser qualquer coisa do tipo.
O vestido rosa choque abraçava as curvas fartas e à luz fraca da boate ela quase parecia só mais outra mulher dentro do lugar abarrotado de gente. Ao lado dela, outro vampiro fingia estar imerso no som alto. O necromante não sabia como alguém com sentidos tão aguçados suportava o barulho, a música já tinha lhe dado nos nervos uma hora atrás, mas Irene continuava contornando a borda do copo de martini com o indicador como se estivesse de fato ponderando sua proposta, o brilho em seu olhar, entretanto, contava outra história, uma que Damiano não estava interessado em ouvir.
Ele virou o uísque antes que ela falasse e estava prestes a se erguer quando ouviu a voz cadenciada e grave:
— E o que, exatamente, você ganha com esse projeto?
Damiano inclinou o corpo para trás e por hábito tocou o anel em seu anelar esquerdo. O único puramente estético em suas mãos. O que poderia dizer? Várias vidas atrás Isabel recomendaria a verdade, mas ele era péssimo com isso e ela não estava ali para recriminá-lo.
— Tenho contas para acertar com a Central tanto quanto qualquer criatura da noite — respondeu. Verdadeiro o suficiente.
— Só um caçador chama aquela organização patética de “central” — o guarda-costas sibilou a resposta, se aproximando dele.
Damiano quis revirar os olhos. Por isso que os mais novos eram sempre fáceis de localizar e matar. Pelo amor de Deus, eles estavam em um lugar lotado de humanos ignorantes e o vampiro queria medir forças?
— Odisseu precisou mandar um falso presente à Tróia para derrubar a cidade — disse quando Irene não fez menção de repreender o garoto. — Eu sou da opinião que a melhor forma de ter um trabalho bem feito é fazê-lo você mesmo.
— Se quer o apoio da minha família, vai precisar de mais que somente palavras, rapaz — a vampira comentou.
Família. Que conceito mais peculiar para um grupo de vampiros. Por norma, ele ouviria clã, assembleia ou até tribo, mas o grupo liderado por Irene era inusitado em sua natureza, todos transformados por diferentes criadores, foragidos de outros clãs que decidiram se unir para sobreviver, liderados por uma vampira antiga e sem prole. Soava propício que se denominassem de forma igualmente inusitada. Se não fossem tão difíceis, ele simpatizaria com o grupo. Damiano se ergueu e pegou o casaco sobre o espaldar da cadeira, aproximou-se da matriarca e tirou um papel dobrado do bolso interno. Uma cortesia.
— Há uma ordem para emitir um aviso ao seu grupo, a essa altura já deve ter alguém a caminho.
Irene desdobrou o papel devagar. Damiano desviou o olhar para a pista de dança. Desde que havia se sentado naquela mesa esperava o instante que a vampira iria reconhecê-lo, mas talvez aquela fosse sua noite de sorte.
Seus negócios com ela tinham sido décadas atrás, de qualquer forma, e naquela época ele usava máscaras e gorros e atendia apenas pela alcunha de Necromante. Um nome que significava muito e muito pouco. Às vezes, ele se sentia um fantasma naquele submundo, um caminhante sem pátria ou lei, uma espécie de entidade, mas estava longe de ser um deus e, se Deus existia, que Ele o livrasse do papel de juiz.
Desprezava a CEBRACON por colocá-lo como executor anos antes. Na verdade, desprezava a Central Brasileira de Controle da Noite por vários outros motivos além daquele. Mas não os subestimava.
Voltou o olhar para Irene e engoliu a vontade que tinha de explodir até o último tijolo daquele lugar. Paciência. Precisava planejar antes, conhecia o modus operandi da CEBRACON, sabia como eles podiam ser organizados em seus ataques. Era uma questão de sobrevivência, afinal. Na maior parte do tempo, a única forma que os humanos tinham de vencer era por ataques coordenados. Raríssimos caçadores eram habilidosos o suficiente para matar um vampiro em um combate individual. Irene analisou o pequeno mapa com as rotas de alimentação da sua família destacadas. Ruas, bares, hotéis. O homem sempre se impressionava como, mesmo tendo uma nova vida, os mortos-vivos mantinham vícios de sua existência mortal.
Homens e vampiros, ambos criaturas de hábito.
— Não precisa devolver — ele disse quando ela lhe estendeu o papel entre os dedos. — Eu mandaria o arquivo digital, mas essas coisas são terrivelmente rastreáveis esses dias.
— Dois dias, você diz. Ficará na cidade tempo o suficiente para ver a traição seus aliados?
— Eles não são meus aliados — disse entredentes, respirou fundo e ajeitou o casaco sobre os ombros.
Irene arqueou uma sobrancelha em sua direção, mas não disse mais nada. Damiano despediu-se com um aceno rígido de cabeça e esbarrou com o ombro do guarda-costas a caminho da saída. Apenas quando seus sapatos tocaram a calçada irregular das ruas de Fortaleza, ele sentiu a pressão em sua cabeça diminuir. Um relógio digital embaixo da propaganda de uma hamburgueria marcava a hora. Duas da manhã. Checou no GPS do celular a farmácia mais próxima do caminho até a rua Almirante Rubim e tentou lembrar a hora que era servido o café-da-manhã da pousada onde estava.
Sentiria falta da cama ao amanhecer, seria uma longa noite.
Pediu um motorista por aplicativo. O rapaz que o atendeu tinha um carro rebaixado e durante a viagem perguntou sobre o destino, sobre o tempo, se ele era da região e o que fazia em Fortaleza até perceber que Damiano não estava interessado na conversa. O necromante massageou as têmporas durante os vinte minutos de translado e respondeu com uma brevidade ríspida. Era pedir demais por um pouco de silêncio?
Quando chegou à farmácia não sabia se estava agradecendo por educação e hábito ou por finalmente ter um pouco de paz. Pagou o motorista em dinheiro e deixou que ficasse com o troco, as moedas já não valiam quase nada de qualquer jeito e ele preferia não esperar até o outro cara fazer as contas.
Soube que tinha companhia antes mesmo de ir para o caixa com uma cartela de aspirina e uma garrafa d’água em mãos. Podia sentir sua presença, um ímã para a escuridão latente em suas veias, gelando seus dedos, fazendo carne arder embaixo da pele.
— O troco, senhor — a caixa chamou sua atenção e Damiano tentou esboçar um meio-sorriso sem graça ao pegar a sacola.
Engoliu um comprimido e socou o resto da cartela no bolso da calça ao ir para a rua. A presença continuava lhe seguindo a cada passo, mas ele se recusava a olhar por cima do ombro, ou a buscar abrigo, apenas mudou sua rota original; queria qualquer morto-vivo longe da casa abandonada que tinha arrumado no Montese. Não por medo, sabia que em algum momento seu perseguidor sairia da penumbra, e então o quê? Tentaria matá-lo? A ideia era risível. A noite e suas criaturas não o assustavam há mais de um século, não começaria a ser diferente agora.
As ruas vazias o saudaram como um velho amigo. Seus passos ecoavam na escuridão até que ele parou abruptamente, sorrindo ao olhar para a própria mão e os seus vários anéis, cada um com uma inscrição diferente. Anos de conhecimento adquirido bem debaixo do nariz da Central.
A lufada de vento indicou a movimentação do vampiro e Damiano ergueu a mão direita, o rubi no seu dedo médio emitiu um brilho fraco e o morto-vivo parou em meio ao movimento. Os olhos gritando uma fúria mal contida. O necromante percebeu que seu atacante era o guarda-costas de Irene, um vampiro novo, transformado há no máximo trinta anos, alguém que claramente não sabia que sua raça não eram os únicos predadores à espreita.
— Sua matriarca não ensinou que atacar os outros pelas costas é falta de educação?
O vampiro grunhiu e o rubi brilhou outra vez. Damiano suspirou, se aproximando calmamente do homem que parecia tentar escapar de seu controle.
— Não quando foi ela que ordenou que fosse seguido — a voz cadenciada de Irene encontrou os ouvidos de Damiano e ele girou sobre seus calcanhares. A vampira estava encostada em um muro com um sorriso no rosto e os braços cruzados. — Eu ficaria encantada se soltasse Fernando.
Damiano arqueou uma sobrancelha e contemplou a ideia, girando o pulso e fazendo com que o seu atacante rosnasse outra vez. A ponta de seus dedos começava a escurecer, suas veias adquiriam lentamente um tom de cinza esverdeado doentio, a pele secava e se partia como se suas mãos fossem brasas do próprio inferno. Ainda recordava a primeira vez que havia visto tal transformação, o pânico de sentir a morte o tocar, agora a imagem sequer o intrigava. Tinha encontrado demônios demais no meio do caminho — a maioria deles, humanos.
— E por que eu faria isso?
Irene suspirou e no instante seguinte colocou a mão em seu ombro.
— Peço perdão, mas eu não iria arriscar minha família sem saber o que você queria. Agora sei que a Central também está atrás de você, necromante, você terá nossa ajuda para derrubar aquele lugar.
Ele bufou puxando o próprio corpo para longe das unhas afiadas dela. Com um aceno, soltou o vampiro, que emendou uma sequência de palavrões em voz baixa, mas Damiano preferiu ignorá-lo.
— Um sussurro sobre a minha presença aqui e nossa conversa e sua família irá desejar que a Central extermine todos vocês. — Passou a mão pelo cabelo e foi na direção contrária de onde tinha vindo. — Não tente a sorte de me seguir outra vez.
Antes de sair ele puxou o celular que tinha roubado do vampiro ainda na boate do bolso.
— Acredito que isso é seu.
Então jogou o aparelho em sua direção e saiu daquela rua ouvindo um distinto “filho da puta” na voz de Fernando. Demorou alguns minutos até retomar o seu trajeto original, apesar de acreditar que seu recado estava dado, cautela não iria matá-lo.
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