Já passava de três da madrugada quando ele retirou o cadeado da porta de aço da casa de esquina e a rolou para cima. A parte debaixo da casa mais parecia um galpão pixado, ou algo que tinha sido um bar vários anos antes, empurrou o metal para cima, se resignando ao barulho alto. O térreo tinha um piso de cimento queimado e a fiação elétrica parecia uma armadilha acima de sua cabeça. Ele caminhou até a escada no escuro e estalou os dedos ao subir para o primeiro andar.
Tinha prendido o caçador em um dos quartos mais longes da rua e conferido as casas vizinhas, todas vazias. Damiano encheu um balde com a água suja da tubulação e jogou no homem descalço amarrado numa cadeira velha de madeira junto à parede. Seu prisioneiro arfou e sacudiu a cabeça, tentando identificar onde estava até seus olhos encontrarem os do necromante.
— Eu só quero ter de perguntar isso uma vez, quem foi mandado para o cemitério?
O caçador rangeu dentes, parte frio e parte teimosia. Seria admirável se não fosse tão patético.
— Eu não sei do que está falando.
Damiano suspirou. Se esse era o caminho que seu prisioneiro tinha decidido seguir, ele não poderia ser culpado por um grito ou outro. Se aproximou devagar, pegando a mão do caçador entre as suas e apertando a palma com o anel em forma de garra no seu dedo médio, então ele virou a falange do mindinho para trás. O caçador gritou.
— Eu acho que sabe — ele falou metodicamente. — Como também acho que sabe quem sou e o que posso fazer com você.
—…se foder, filho da puta — o caçador grunhiu, cuspindo em direção ao seu rosto.
Damiano puxou a aliança do anelar esquerdo do outro homem e sorriu antes de quebrar o dedo e ouvir o urro dele.
— Quem a Central mandou para o cemitério? — Ele girou a aliança do caçador entre os dedos.
— Você vai ter que me matar pra eu te dizer.
O necromante gargalhou. Por que de todos os caçadores daquele lugar ele tinha de capturar justamente um que era fiel aos ideais de lá?
— Ah, eu certamente posso. Matá-lo e trazer seu espírito de volta, prendê-lo a essa casa para que nunca tenha descanso. — Damiano colocou o anel de ouro sobre a pequena mesa ao lado e estalou a língua. — O que sua esposa diria, Alberto?
O caçador rosnou alguma frase ininteligível e virou a cara.
— Fale pra fora — Damiano resmungou.
— Eu disse para você ir chupar um canavial de rola.
Em um movimento rápido, Damiano retirou uma faca da bota e arrancou o topo do dedo médio do homem, que gritou outra vez. Então ele pressionou a lâmina no rosto do caçador e disse devagar, admirando o filete de sangue escorrendo pela pele enquanto girava a faca:
— Ou posso te enviar em pedaços para a sua mulher, depois levantar o seu cadáver e fazer você matá-la, que tal?
O necromante viu o lampejo de medo passar pelos olhos do outro homem e esperou por uma resposta, e ouviu apenas o ranger teimoso de dentes. Irredutível, mas previsível. Alberto era o mais próximo que ele tinha chegado de capturar um dos líderes da Central de Controle da Noite, uma espécie de tenente de operações, alguém com ligação direta com os Palomo. Tinha conseguido o arquivo do ataque ao clã de Irene no celular daquele homem, em pastas que sequer estavam criptografadas. Era ridículo, Damiano pensou, mas gente no governo federal já tinha feito pior. Era o poder que tornava aqueles homens descuidados ou a certeza de que nada era capaz de atingi-los?
Além do plano de ataque, o necromante encontrou uma ordem de investigação. O alvo: cemitério do Bom Descanso, em Santa Madalena do Norte.
Esforçou-se para controlar a raiva. Ele morreria e levaria consigo para o inferno todo caçador em solo brasileiro antes de deixar a Central chegar perto de Isabel outra vez. Aquela organização já lhe tinha roubado demais.
Inspirou devagar.
Pois bem, pensou ao fechar os dedos ao redor do pescoço de Alberto. Eu tentei não recorrer a isso.
O ar ficou rarefeito. Damiano sentiu a energia zunindo embaixo de sua pele. A mão erguendo o caçador adquiriu novamente o mesmo aspecto de quando controlara o vampiro mais cedo. O necromante sentia sua própria energia devorando a do outro homem enquanto o caçador envelhecia anos em questão de minutos sob o seu toque. Não se importava em roubar a vida de seres como aquele, em estender a própria existência como uma espécie de vampiro que ao invés do sangue se alimentava daquela força que movia os homens comuns.
Alguns chamariam aquilo de aura, mas Damiano sabia que era diferente. Aura estava mais próxima do espírito, da alma, o que ele sugava era a perspectiva de vida, as possibilidades, o futuro caso sua vítima não sofresse uma morte acidental. Se quisesse, podia se conter, e já tinha feito isso antes, porém era o destino de Alberto morrer sob o seu toque, tentando se debater enquanto sua pele ficava flácida e frágil e seu coração falhava até parar. A carne se despedaçou, os pedaços virando pó mesmo quando o necromante soltou o corpo.
Damiano apontou para o chão e o seu anel de esmeralda emitiu um brilho fraco, ele ergueu a mão como se brindasse. Alguns segundos depois, a forma translúcida de Alberto apareceu entre seus dedos, vestindo as mesmas roupas que estava vestindo em vida.
— Quem foi enviado para o cemitério de Santa Madalena? — exigiu.
O contorno do fantasma brilhou e se debateu, tentando resistir à ordem direta, mas incapaz de fazê-lo.
— Gregório Ferraz — gaguejou Alberto. — É um agente mais velho, mas ninguém sabe muita coisa sobre ele. E o guri foi junto.
— Que guri?
— Hugo. Hugo Palomo.
Merda.
Damiano sentiu a ira borbulhando em seu interior e fechou a mão atravessando a figura translúcida de Alberto. O fantasma emitiu um grito doloroso de ouvir, uma nota de lamúria longa e aguda, mas o necromante desceu as escadas indiferente ao som. O caçador devia ter falado o que queria antes que cumprisse sua ameaça.
— Aproveite a estadia, Alberto — disse ao abrir a porta de enrolar. — Ela será bastante longa.
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