Gregório então caminhou para seu próprio quarto com Isabel em seus calcanhares, observando cada movimento ao ponto de deixá-lo desconfortável. Ele abriu a boca para comentar várias vezes e desistiu em cada uma delas. Vampira ou não, ela era uma mulher estranha. Contemplou a ideia de deixar os revólveres para trás, poderia inclusive tirar o casaco e amenizar um pouco do calor, mas a ideia de sair à noite sem elas o deixava inquieto. Suspirou. Trocou o casaco por uma camisa de botões e pegou a carteira sobressalente. A Central sempre fornecia identidades falsas, e perfeitas, da polícia militar e algumas ligações para os números certos comprovavam a história, Ricardo Palomo garantia isso com suas conexões políticas e, para o azar de todos sob seu reinado, isso também funcionava quando o pai do pirralho queria instituir uma caça a alguém.
Se fosse só a Central na sua cola, ele podia lidar. Mas ter a mídia divulgando sua foto como procurado em todo território brasileiro era algo que Gregório preferia evitar.
Aproveitou a internet da pousada para mandar uma mensagem para Valentina com o nome Montalverne e torceu para que ela encontrasse algo no banco de dados da Central.
— Tá, vamos — disse mais para si que para a vampira fechando o quarto.
O silêncio os acompanhou até o bar, inquieto. Isabel acompanhava com o olhar cada pessoa por quem eles passavam, às vezes chegando a andar de costas só para observar mais um pouco, como se cada ser humano fosse intrigante apenas existindo em suas vidas mundanas. Talvez, para ela, fossem. Ele não fazia ideia do que se passava em sua cabeça. A iluminação amarelada das ruas de Santa Madalena a fazia parecer uma fada se equilibrando sobre o meio-fio, a pele pálida refletindo a cor quente da luz, o cabelo castanho e desgrenhado, até as roupas velhas parecendo um pouco menos de vó, um pouco mais a cara do que pessoas comprariam em brechó caro para postar com alguma legenda cliché.
Se elas não cheirassem a mofo, claro.
O bar do Tico ainda estava cheio de gente apesar da hora. Uma pisadinha tocava no interior, onde tinha uma mesa de sinuca e meia dúzia de pessoas, e as mesas de plástico tomavam conta da rua. O dono do bar estava sentado em uma das mesas, conversando com outro homem com uma garrafa de cerveja e dois copos americanos entre eles.
— Tá aí, bar do Tico. Agora eu vou indo...
— Gregório! — gritou o dono do bar. — Se perdeu no caminho hoje?
— Trabalho — o caçador resmungou.
O caçador gostava do dono daquele boteco, Tico tinha um jeito admirável de lidar com todos que passavam ali com um sorriso cordial e um tapinha no ombro. Gregório e Hugo tinham feito um reconhecimento da área antes de se aventurar no cemitério e nos dois dias que estiveram na cidade, aquele lugar simples, com ar improvisado, havia sido a forma perfeita de relaxar em um lugar sem muitas opções.
— Trabalho numa sexta à noite?
— Meu chefe é um corno — explicou Gregório.
Antes que falasse qualquer outra coisa, Tico abriu um sorriso largo e se levantou, colocando a mão no ombro do caçador em seguida.
— E quem é essa? — perguntou o dono do bar indicando Isabel.
— Helena Montes — Isabel se apresentou após apenas um segundo quase imperceptível de hesitação. Gregório olhou para ela com o cenho franzido, mas a expressão se foi tão rápida quanto apareceu, substituída por um sorriso.
A vampira estendeu a mão e apertou a do dono do bar — o caçador explicou.
— Helena chegou hoje na pousada e decidiu me acompanhar.
— Oxe, pois pode puxar uma cadeira junto da gente. Como diz a história, a noite é uma criança e o bar só fecha quando amanhecer.
Gregório pediu licença e puxou uma cadeira à frente do outro homem que falava com Tico. O caçador tinha poucas regras em sua vida e uma delas era não recusar bebida de graça. O dono do bar voltou com dois copos e outra cerveja, Isabel sentou-se ao lado, entre ele e o homem mais velho, vestido com uma camisa pólo e um sorriso forçado no rosto. Não era quem ele pretendia apontar para a vampira, mas um olhar foi o suficiente para que Gregório não se importasse se ao fim da noite o homem terminasse alguns reais mais pobre e alguns litros de sangue mais leve.
Ao contrário do que o caçador esperava, a conversa seguiu fluída entre eles, como se fosse normal dois humanos discutirem com uma vampira e um meio-vampiro sobre tudo e nada. Isabel tinha praticamente vestido uma personalidade diferente, rindo e tocando vez por outra a mão do homem — que ele descobriu se chamar Manuel e que em aparência poderia ser o pai dela. Uma cerveja virou duas, três e na metade da quarta seu celular vibrou. Nem precisou tirar do bolso pra saber que era Valentina com as informações que ele tinha pedido.
— Sem celular na mesa! — Tico repreendeu com uma gargalhada.
Gregório riu junto, mas se levantou da mesa virando o copo da cerveja em um gole e fingiu procurar a carteira no bolso.
— Quanto que eu devo?
— Nada não, duas cervejas na minha conta não vão me matar — Manuel respondeu com um sorriso para Isabel. — Você também vai?
— Não — ela respondeu com ternura —, eu pretendia ficar mais um tempo, se não for incomodo, claro.
— Uma companhia bonita dessas é sempre bem-vinda.
Gregório despediu-se e voltou para o hotel, direto para o seu quarto. Após um banho curto, ele vestiu uma calça e se sentou na cama com o celular em mãos, analisando os documentos que Valentina havia mandado. Ela mandara uma nota dizendo que tinha feito uma triagem básica em cima do nome, analisando a cidade de Santa Madalena do Norte, uma vez que era o local do túmulo, e também havia procurado pelos nomes que Hugo fotografara.
O resultado foram três registros de nascimento e óbito na Paraíba, uma fotografia em péssimo estado do início do século XX, alguns recortes de jornais, menções mais recentes da família no Ceará e até um escândalo envolvendo algum figurão corporativo.
Nenhuma menção de Isabel.
Talvez na manhã seguinte ele devesse falar com Hugo e pedir ajuda. Admitia, ainda que com certa relutância, que o garoto era melhor nesse tipo de função. O mais novo dos Palomo era um covarde com delírios de grandeza e uma família de sacanas, mas quando se tratava de um quebra-cabeças, um mistério? Era provável que ele fosse o melhor para aquele tipo de serviço.
Gregório bufou, deitou-se e fechou os olhos. Podia ouvir os insetos do lado de fora e a respiração do rapaz no quarto ao lado, sentir o cheiro do sangue pulsando nas veias dele. Sua boca salivava e ele voltava seus pensamentos para outro lugar. Aquela sede não podia ser saciada hoje, talvez nunca. Quem sabe por isso ele se jogasse de uma missão para outra, buscando na adrenalina um substituto para aquela necessidade, aquela inquietude… Evitou pensar no assunto. Detestava que quando o mundo se tornava quieto ao seu redor, sua mente começasse a gritar dúvidas que não tinham nenhum outro objetivo além de paralisá-lo.
Apertou os olhos com força, cobriu a cabeça com o lençol e tentou focar no som da eletricidade passando pelos cabos. Mas Gregório sabia reconhecer uma batalha perdida, e o sono não viria àquela noite.
Comments (0)
See all