Isabel paralisou. Ela sabia que a pergunta era questão de tempo e ainda assim não tinha resposta ao ouvi-la. Damiano nunca tinha lhe dado instruções exatas sobre o que dizer sobre as visitas feitas, porém não era como se ela tivesse com quem falar em primeiro lugar. Foram quase cem anos de reclusão, tendo naquele homem, tão gentil e devoto, seu único consolo. Gregório era chuva depois dos anos de seca, mas Damiano havia sido abrigo no meio da tempestade.
— Quem era, Isabel? — o caçador perguntou novamente, se levantando da cama e colocando as mãos em seus ombros.
A vampira sentiu os caninos se alongarem dentro da boca e as unhas de sua mão crescerem. Ele não é uma ameaça. É só uma pergunta. Repetiu na sua cabeça de novo e de novo e de novo até sentir as unhas se retraírem e seu corpo se acalmar. Porém sentia seu peito apertar. Os olhos verdes de Gregório continuavam analisando-a como um falcão, esperando uma resposta que ela não queria dar. Isabel ponderou as possibilidades. Seria mais fácil convencê-lo de que sua reação era uma falha. Era uma alteração pequena, apenas alguns minutos antes do agora, nada comparado a apagar a lembrança que Hugo tinha dela. Contudo, quando tentou tocar a mente dele foi repelida com uma força descomunal.
Tropeçou ao se afastar. Apoiando-se desajeitadamente na parede.
— O que foi isso? — o caçador rosnou, suas presas aparecendo. Ela repetia a mesma pergunta dentro de si.
Pela primeira vez em um século, Isabel se sentiu pequena e frágil. Uma presa, ao invés de predadora. Não fazia o menor sentido. À sua frente ela via um vampiro completo, com uma aura quase ancestral, sedento.
O que fora aquilo? Um erro. Um erro que podia destruí-la.
— Eu… — não entendo. Eu não sei, quis dizer, mas a voz arranhou sua garganta, incapaz de sair.
O que ela tinha feito?
Só queria evitar a pergunta, ganhar tempo para respondê-la, ou fazer com que o caçador esquecesse o assunto por alguns dias. Assistiu, petrificada, ele recobrar o controle de si, mas antes que o damphyr falasse qualquer outra coisa, ela correu.
A voz de Gregório a lhe chamar se tornou um eco, um fantasma que se misturava com outros fantasmas. Timbres indistintos. Ruídos de um rádio fora de sintonia. Ela correu e correu, se misturando aos vultos da noite, sentindo a terra e as pedras em seus pés, um incômodo que não a feria. Correu não por medo dele, parte de si ainda estava incerta se o que vira não havia sido apenas sua imaginação pregando peças, algum flash do passado que se misturava ao presente. Ele era um híbrido, era impossível que tivesse tanta força assim. Isabel se sentia mortificada. Deus, por que ela tinha tentado encantá-lo?
E mais importante: por que não tinha funcionado?
Parou em frente ao antigo cemitério. Sempre terminava encarando os muros baixos e o letreiro em arco com “Cemitério do Bom Descanso — 1867” quando tentava fugir. Ela gravitava ao redor do lugar, puxada por correntes invisíveis. Às vezes, sentia-se mais fantasma que vampira, vagando pela cidade e incapaz de deixá-la, assombrando as ruas de Santa Madalena do Norte sem saber exatamente o motivo de estar ali.
— Eu sabia que iria encontrá-la aqui — uma voz disse ao seu lado.
Isabel se virou sobressaltada para ver Joana e sua bengala caminhando em sua direção. A dona da pousada tinha um sorriso tranquilo no rosto e carregava uma saco de papel em suas mãos.
— Você não mudou nada, Isa — ela murmurou, oferecendo a sacola. A vampira aceitou com o cenho franzido e viu que se tratava de roupas. — Minha filha tinha algumas sobrando para doação, achei que poderia caber em você.
— Obrigada.
— Não precisa agradecer.
Joana colocou a mão no ombro dela e Isabel sentiu uma onda de alívio passar por seu corpo. Lembrava dela agora, reconhecia marcas de um rosto trinta anos mais velho, mas os olhos sempre gentis continuavam ali. Não eram muito próximas, a vampira não havia sido próxima de ninguém na cidade, mas o suficiente para se esbarrar nos bares locais vez por outra.
Uma gota de água tocou seu rosto e Joana suspirou.
— Vamos voltar para pousada, vai cair um toró por aqui.
Isabel a seguiu sem falar nada, encantada pelo cheiro da chuva e a brisa distante do oceano. Joana entrelaçou o braço no seu, como se fossem apenas grandes amigas se reencontrando depois de uma longa viagem.
— Aceita um cházinho? Temos muito a conversar.
Comments (2)
See all