Damiano acordou sobressaltado, com uma aeromoça inclinada sobre sua poltrona e o caderno de anotações entreaberto no colo, na página onde havia rabiscado possíveis rituais e poções para recuperar a memória de Isabel. Nunca tinha chegado a uma solução, apesar de jamais deixar de procurar.
As imagens do sonho ainda serpenteavam em sua cabeça, nebulosas, e ele desejou segurá-la entre seus dedos por outro segundo. Sempre que fechava os olhos, via as mesmas imagens, os dias felizes antes do caos, as promessas sussurradas longe dos curiosos. Às vezes, quando se sentia particularmente pessimista, convencia-se que só em sua imaginação poderia ter tudo o que desejava.
Mas se ele não podia ter felicidade, iria se contentar com vingança.
— Senhor, o avião está iniciando o procedimento de pouso — a aeromoça chamou, com a pretensa cordialidade que sempre tinham. — Peço que retorne sua poltrona à posição original.
Acenou em afirmativa e obedeceu um segundo depois. As luzes do avião acenderam, uma criança chorou ao fundo enquanto uma mulher tentava acalmá-la e alguém grunhiu, provavelmente despertando com a chamada do piloto, eram quase quatro horas da manhã e o céu escuro do lado de fora estava estranhamente límpido para o mês de junho. Damiano tocou a aliança em sua mão, estava inquieto. Sentia-se como se algum desafortunado fosse atacá-lo ainda na pista do aeroporto Castro Pinto, mas ninguém estava olhando em sua direção, tampouco havia algum morto-vivo entre os passageiros. Ele conferiu duas vezes, por garantia.
Jogou a mochila sobre os ombros assim que a saída foi autorizada e desceu do avião. Desde que o governo tinha autorizado a cobrança pela bagagem, ele carregava consigo no máximo uma muda de roupas e um caderno surrado com anotações em todas as páginas. Eram receitas, datas, frases soltas, recortes de jornais. Àquela altura, era mais hábito que qualquer outra coisa. Tinha memorizado o que era necessário para o seu dia-a-dia, as fórmulas por detrás das proteções nos cristais, os símbolos para encantamentos, os ingredientes para banir, evocar e envenenar, mas ainda tomava precauções. Já que não podia carregar armas, fazia do caderno seu trunfo, uma forma de lutar contra vivos e amaldiçoados.
Pagou por um táxi até Santa Madalena do Norte e demorou mais uma hora e meia até avistar as primeiras casas da cidade. Eram construções quadradas, iguais, simples, que na luz do sol quase feriam os olhos com seus tons vibrantes. Na entrada, uma escultura da santa dava boas-vindas, mas Damiano não estava interessado em suas bênçãos. O lugar era uma contradição. Parte paraíso, parte inferno, construída nos escombros de seus melhores sonhos e erguida em cima de seus pesadelos. Damiano detestava visitá-la, mas era incapaz de ficar afastado. Como um vício, a cidade parecia sempre atraí-lo.
O taxista o deixou na rua principal, perto da velha igreja, e ele sentiu o anel com a pedra verde esfriar em sua mão assim que desceu do carro.
— Ela não está no cemitério. — Herbert apareceu ao seu lado com uma expressão cansada em sua forma quase translúcida. Mas não foi sua voz baixa que o gelou e sim as palavras.
— Onde?
— Eu não sei, não consegui me aproximar com dois caçadores por perto. — Ao ver a expressão soturna no rosto do necromante, ele acrescentou: — Mas eu a vi sair do mausoléu, viva. Quer dizer, viva o suficiente, considerando o que ela é.
Damiano respirou devagar, repetindo para si qualquer frase que pudesse acalmá-lo. Isabel estava viva, tinha de estar. Ele apertou o topo do nariz com os dedos e ponderou o que podia fazer. Santa Madalena não era uma cidade como Pipa, com intenso fluxo de turistas, mas tinha pousadas o suficiente para que ele perdesse tempo buscando entre elas. Uma praia no Nordeste sempre era ponto turístico de alguma forma.
— Alguém deve saber onde os caçadores estão — pensou alto, caminhando em direção ao antigo cemitério. Em seu caso, alguém sempre era sinônimo de alguma alma penada.
Toda cidade era cheia delas, vagando invisíveis para a maioria dos vivos. Ele não sabia se havia vida além daquela, mas os espíritos que vagavam no mundo também costumavam ser os melhores informantes; parecia não haver muito além de fofoca no pós-morte.
Herbert flutuava ao seu lado, uma presença que apenas Damiano podia enxergar. Seu corpo translúcido e ligeiramente azulado pela luz da lua trazia um pouco de familiaridade no lugar que havia mudado tanto desde o final do século dezenove. Várias vidas atrás, os dois caminhavam naquelas ruas com corações pulsando durante o dia, cada um com seus próprios devaneios.
Os pés de Damiano mal tocaram o solo úmido do velho cemitério quando outro fantasma apareceu à sua frente. Uma menina, ele supôs pela aparência, mas não descartou a possibilidade de estar enganado.
— Moço do cabelo comprido, você voltou bem a tempo! — cantarolou, fazendo com que ele arqueasse uma sobrancelha. Não se lembrava daquele fantasma, para ser tratado de forma tão íntima, porém deixou-a falar, era seu objetivo puxar algum espectro de qualquer forma. — A noiva está em perigo!
A noiva. Isabel era sempre a noiva, a dama da noite, o fantasma local.
— Você sabe onde Isabel está?
— A noiva foi com ela. — A imagens translúcida oscilou, sua cabeça se movendo em ângulos impossíveis de se reproduzir tão rápido que era impossível acompanhar com os olhos. — A irmã, é a irmã.
Então a figura desapareceu. Damiano encarou Herbert, procurando por uma resposta à pergunta não dita, porém o fantasma de seu amigo estava tão confuso quanto ele. Entretanto, antes que pudesse verbalizar suas dúvidas, Herbert também sumiu no ar quando ouviram passos se aproximando. O necromante sentiu um de seus anéis queimar e a associação foi imediata: vampiro.
— Quem está aí? — disparou assim que a sombra se tornou nítida na meia-luz artificial do cemitério.
Enquanto o outro buscou uma arma no coldre, Damiano ergueu a mão e tentou paralisá-lo, apenas para sentir a mão queimar. Grunhiu, mas o comando foi o suficiente para aturdir o caçador. Aproveitando o segundo de vantagem, ele se lançou contra o homem, derrubando-se no chão junto a ele e jogando a arma para fora do alcance. Com a mão no pescoço dele, o necromante sentiu o ardor diminuir, mas não cessou.
— Quem é você? — rosnou.
— Necromante — o caçador cuspiu a palavra. Seus olhos adquiriram um tom rubro e o rubi na mão de Damiano emitiu um brilho fraco.
O necromante sentiu o frio da morte flagelando sua carne, seus dedos perdiam a noção do tato, porém ele se recusava a soltar o meio-vampiro.
— Damphyr — devolveu, apertando o pescoço do outro. — Onde está Isabel?
O caçador esmurrou suas costelas, seus ombros, porém quando ficou claro que não seria capaz de se soltar, esbravejou:
— Eu não sei! — Damiano estreitou o olhar e o damphyr ergueu as duas mãos em um gesto derrotado. — Puta merda, eu não sei, tá bom? Eu tava procurando por ela também.
Foi a surpresa que o fez largar o caçador e se erguer, pegando a arma largada no chão e a analisando em suas mãos. Um meio-vampiro sob o comando da Central, ele devia saber que enviariam alguém assim.
— Você não é o garoto Palomo — analisou por fim, observando as reações do homem. Apesar da aparência jovem, havia um ar de irremediavelmente exausto no damphyr. — Gregório então.
— Também lê mentes agora?
— Não — retrucou sucinto. — Isabel?
Gregório grunhiu ao ver a arma nas mãos de Damiano, ainda que o necromante não a tivesse apontado em sua direção.
— Sumiu, tá bem? Eu não sei pra onde ela foi, mas eu não a vi depois que ela saiu do meu quarto na pousada. — O necromante ergueu uma sobrancelha, sem olhar para nenhuma direção em particular, e o caçador emendou: — Merda, não desse jeito.
— Não me interessa — Damiano interrompeu, apesar do gosto amargo em sua boca ao pronunciar as palavras. Então, passou a caminhar pelo cemitério, ignorando a presença do caçador. Ali, sentindo o sal nos ventos vindos da falésia à frente e o frio em sua carne, se sentia estranhamente em seu domínio.
Fechou os olhos, deixando a energia crepitar sob seu comando silencioso. Como se uma grande neblina invisível se dispersasse, os fantasmas do cemitério apareceram. Ele olhou ao redor, procurando quem o tinha procurado mais cedo, mas a garota não estava presente. Herbert, entretanto, flutuava ao seu lado outra vez.
— Alguém viu a mulher que levou Isabel?
Os espíritos se entreolharam, ele conhecera alguns em vida, outros ele sabia os nomes, eram os Joãos de fulano, as Marias de cicrano, estranhos familiares.
— Alguém levou Isabel? — a voz de Gregório cortou o ar.
O caçador se aproximou, desviando dos corpos etéreos a flutuar em meio ao cemitério. Damiano não respondeu em um primeiro instante, ligeiramente irritado com o outro homem, mas talvez o caçador pudesse ajudá-lo e talvez sua preocupação fosse genuína… Por Deus e todos os santos, ele iria se arrepender se não aceitasse ajuda.
— Ela nos proibiu de dizer seu nome — algum fantasma falou, mas ele não sabia dizer quem. — Mas ela é igual a tu, trazendo a gente de volta quando bem entende.
Damiano ignorou a repreensão e focou nas palavras. Igual a ele. Uma necromante em Santa Madalena do Norte, alguém que tinha estudado para ser mais que um médium. Respirou fundo. Precisava ser racional, esquecer a inquietação em seu peito, a vontade de esmurrar algo, de gritar até não ter mais ar em seus pulmões. Céus, que Isabel estivesse bem. Ele não saberia o que fazer se ela não estivesse.
— Eu ouvi que ela era irmã de alguém, quem? — ele esperou por uma resposta, mas tudo o que viu foi Gregório cruzando os braços à frente do corpo. A fúria pulsou em seu peito e Damiano rosnou as palavras: — Quem é ela?
Porém, o silêncio continuou. E os fantasmas foram se desfazendo em nuvens de poeira translúcida, levados pela brisa do mar, ele ouviu o damphyr abafar uma risada e teve vontade de socá-lo outra vez.
— Confesso que quando ouvi histórias sobre você, achei que era mais… intimidador.
Damiano trincou os dentes, mas o ignorou, sabia reconhecer uma provocação sem sentido quando ouvia. Colocou a arma de Gregório na cintura e deu passos para fora do cemitério, o caçador entretanto moveu-se em um piscar de olhos, se colocando à frente dele.
— Aonde você tá indo?
— Procurar Isabel. Saia da minha frente.
— Eu vou ajudá-lo — ele anunciou, fazendo Damiano encará-lo com o cenho franzido.
— Para matá-la depois ou pior, colocá-la nas mãos da Central? Não, obrigado.
Tentou seguir seu caminho, mas o caçador o segurou pelo braço. Quando seus olhares se cruzaram, entretanto, ele o soltou.
— Eu prometi a Isabel que a ajudaria a sair da cidade e eu pretendo cumprir — Gregório resmungou devagar, como se escolhesse com cuidado as palavras. — Agora eu posso ajudar a encontrá-la e podemos fazer isso juntos, ou você pode passar o resto da noite rodando esse fim de mundo atrás de onde ela se meteu.
E como pretende fazer isso? Damiano quase perguntou, até ver o brilho fraco em seu anel. Claro. Um damphyr.
— Está bem — concordou, então tocou a arma em sua cintura e deu um sorriso minúsculo. — Mas por acaso a Central te avisou que eu costumava ser um dos melhores caçadores no meu tempo?
Gregório deixou escapar um palavrão.
— Eu não sou pago o suficiente pra isso — ele resmungou.
Pela primeira vez em dias, Damiano riu. Um riso breve e ríspido, que mais parecia uma tosse, com uma sádica satisfação em saber que o recado estava dado. Mas um riso ainda assim. Se o caçador desejava ajudá-lo, ele permitiria e quando o damphyr se tornasse uma ameaça, ele iria eliminá-lo. Era um plano simples, direto, sem rodeios.
Comments (0)
See all