15 de junho de 2025. Santa Madalena do Norte, PB.
A nova definição de injustiça no dicionário de Gregório era o cara que ele tinha que capturar ser tão bonito. Não uma beleza de revista e proporções faciais e padrões inalcançáveis, mas aquele tipo de beleza que o deixava intrigado, que o fazia olhar para o necromante e suas roupas saídas direto do camarim de um rockstar e pensar: se mau, por que tão irresistível?
Era patético. O cara tinha conseguido controlá-lo por um segundo, socado a sua cara, roubado sua arma, convocado um cemitério inteiro de fantasmas e ele estava pensando em como o feiticeiro era um belo pedaço de mal caminho.
Eu tenho mesmo um dedo podre, pensou.
Respirou fundo. Por Deus, ele tinha mais de seis décadas de idade, não era um menino para ficar admirando o outro homem daquele jeito, especialmente um que podia valer sua liberdade, se o bônus por capturá-lo ainda estivesse valendo. Além do mais, o sumiço de Isabel era mais importante. A imagem dela não saía de sua cabeça. Os olhos vermelhos, arregalados, a postura de bicho acuado, o jeito como tinha saído de seu quarto após… ele nem sabia direito o que tinha acontecido. Em um momento, era como se estivesse mergulhando no mar após um dia de verão e sua consciência fosse uma voz distante na praia, pedindo para que não se deixasse levar pela maré. No outro, parecia se afogar.
O necromante o encarou e Gregório se concentrou. Era difícil rastrear aromas quando a ventania os carregava. Ele não era um vampiro completo, muito menos um lobisomem, para ser capaz de farejar alguém, porém acreditava que podia ao menos apontar uma direção.
— Eu não tenho a noite toda — o feiticeiro resmungou ao seu lado.
— E você acha que eu tenho? — retrucou. Inalou uma segunda vez, mais devagar, tentando separar os cheiros de uma forma que fizesse sentido. O aroma doce e quase intoxicante da vampira se fez presente primeiro, mas em sequência ele sentiu outro acompanhá-lo. — Olha, não sou um cachorro, mas acho que peguei algo.
— Você que se ofereceu.
E eu já estou me arrependendo, retrucou em pensamento, mas não disse nada. Focou no que podia sentir e em seus instintos, evitando pensar no necromante e nas ordens da Central. Hugo estava na pousada, ignorante ao que Gregório estava fazendo, falando com o pai ou atualizando suas redes sociais. Sem o garoto ao seu lado, o damphyr se sentia mais livre. A parte de sua natureza, sempre trancafiada e escondida e mantida sob sigilo, podia vir à tona. O necromante o encarava, tinha um olhar intrigado e distante, quase analítico, ainda que seu rosto fosse de poucas expressões.
— Tem cheiro de capim-santo e alguém tá usando uma colônia que passou pelo menos vinte anos no armário… ah, puta merda.
— Que foi agora?
— É a velha da pousada — resmungou. — A dona do lugar. Ela tava aqui.
O necromante olhou para ele com uma sobrancelha erguida, balançando a cabeça devagar.
— E o que estamos esperando? — perguntou ele depois de um momento de silêncio constrangedor.
Meu Deus, o que ele tem de bonito, tem de irritante.
Gregório revirou os olhos, abrindo caminho em direção à pousada. As ruas estavam vazias e as janelas das casas fechadas. À noite, a vida era diferente, ele imaginava, mas não sabia dizer com certeza. Já não lembrava a última vez que tinha frequentado locais à luz do dia, mas supunha que fora em sua infância, aos doze ou treze anos, quando seu pai adotivo o levava em mercados apesar de seus protestos, e sempre que tentava argumentar, o homem que o tinha ensinado a ser um caçador dizia que ele devia demonstrar gratidão pela adoção de alguma forma. Garotos como ele não costumavam deixar o orfanato antes dos dezoito.
— Damiano. — Gregório quase pulou no meio da rua quando viu o fantasma se materializar na frente do necromante. Agradeceu por ninguém da Central estar por perto, sua fama de caçador destemido iria pelo ralo se soubessem. — Encontrei algo.
— O quê?
O fantasma revirou os olhos com a rispidez no tom do feiticeiro, mas não comentou.
— A mulher tinha um irmão. — Damiano gesticulou com uma das mãos como se o ordenasse a prosseguir. — Lembra o rapaz que entrou no túmulo de Isabel uns anos atrás?
— Como eu poderia esquecer. Não me diga que a mulher é irmã dele… — O fantasma fez uma careta e Gregório ouviu o necromante soltar um palavrão em voz baixa. — Nós temos de nos apressar.
— Por quê?
Damiano rolou os ombros para trás, como se consertasse a postura de forma inconsciente, e suspirou. Gregório retomou o passo apressado, não esperando uma resposta do necromante até que ouviu as palavras, praticamente um rosnado de início:
— Algumas décadas atrás um idiota achou que poderia absorver a força vital de um vampiro. Isabel o matou quando ele invadiu o mausoléu. — Ele parou de falar por um instante. — Eu devia saber que ele tinha uma irmã.
Absorver a força vital de um vampiro parecia uma história que apenas desesperados acreditariam, mas ele entendia o quanto podia ser tentador. Apesar de seu conhecimento em necromancia ser limitado na melhor das hipóteses, e o assunto ser praticamente proibido dentro da Central, Gregório não era burro. Ou preferia pensar que não era burro. Quando a caça ao Necromante começou, ele procurou saber mais sobre o assunto, tão discretamente quanto podia. Porém, considerando o seu histórico e a própria desconfiança dentro da organização, o máximo que sabia é que além de levantar os mortos, alguns necromantes podiam absorver a força vital de criaturas vivas.
Vampiros não eram seres vivos. Eram zumbis sencientes e às vezes nem tanto assim.
Mas devia ter algo de vivo neles, ele se contrapôs. Sua existência era prova o suficiente. Como um damphyr podia sequer ser concebido se um vampiro fosse apenas um corpo reanimado?
Agradeceu quando a pousada Recanto do Sol apareceu em sua vista, pensar em sua própria concepção era o tipo de buraco-de-minhoca que ele queria evitar para sempre se possível. Gregório nunca conheceu seus pais biológicos e a palavra damphyr só entrou em seu vocabulário quando foi adotado por um caçador, um tal de Humberto Ferraz, que exigia ser chamado de tenente mesmo fora de trabalho e que fora durante sua adolescência e parte da vida adulta a própria definição de demônio.
Isto, é claro, até o próprio damphyr matá-lo e então a Central assumir o lugar do pai-adotivo como inferno pessoa.
Damiano ergueu uma mão e Gregório sentiu um puxão na boca do estômago o obrigando a parar. Abriu a boca, mas antes que pudesse xingar o necromante, um vulto passou diante de seus olhos e ele engoliu as palavras. O outro homem colocou o indicador nos lábios, um dos anéis em seus dedos emitia um brilho pálido e pulsante, sutil demais para olhos humanos.
— Ela já sabe que estamos aqui — ele sussurrou. — Mas nós vamos entrar de todo jeito.
— Alguma ideia brilhante?
Os olhos do necromante o percorreram e se estreitaram. Então Gregório o viu pegar a glock roubada dele mais cedo e hesitar por um momento antes de suspirar e devolver a arma.
— Eu não sei o que nos espera, mas você vai ajudar — Damiano disse e o caçador ergueu uma sobrancelha. Quando a puxou para si, entretanto, o aperto do necromante continuou firme. — Não pense que confio em você por isso.
— Tá, tá. Não precisa perder tempo ameaçando, eu já sei.
Gregório o viu crispar os lábios no que poderia ser um sorriso e tomar à frente. Por hábito, conferiu a lua no céu, a sede começava a deixá-lo inquieto, arranhando sua garganta e carregando pedaço a pedaço sua sanidade. Esperava que a Central o contatasse em breve, acabando com a sua agonia de estar tão próximo de uma cidade com corações pulsando e veias abertas esperando suas presas.
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