Havia um casebre no fundo da pousada, era uma construção mais antiga que o resto, com dois andares e nenhuma varanda, cercada por um muro com meio metro de altura e um jardim de suculentas espinhosas. Parecia algo feito em partes, com o terraço com azulejos pintados nas paredes e pedras cor de ferrugem no chão. Os dois portões estavam destrancados e ao passar por eles Gregório sentiu uma mudança no ar, sutil e desconcertante. Um arrepio na nuca, um silvo baixo em seu ouvido. Apertou o cabo da arma e a apontou em direção ao escuro no fim do terraço. Ao seu lado, Damiano tinha erguido uma de suas mãos à frente, mas a postura dele era indecifrável.
O caçador pensou em seguir para um corredor na lateral de onde uma luz fraca e amarelada brilhava por debaixo de uma porta, porém Damiano o segurou, balançando a cabeça em negativa.
Qualquer que fosse o instinto do necromante, era melhor que não fosse perda de tempo.
Gregório o seguiu do terraço a uma cozinha com um design moderno e panelas e ervas penduradas em um suporte de metal preso no teto, e então para uma espécie de área de serviço, cheia de lençóis estendidos e um chão de cimento queimado. Sussurros sobrepostos chegaram até os seus ouvidos, pedidos que não conseguia discernir. Ele sentiu o cheiro de cinzas, sálvia e ferro misturados à colônia forte de antes.
Então, ouviu um grunhido feminino, correntes puxadas e um grito. Isabel.
Ao seu lado, Damiano se moveu em direção à grade trancada que os separava do quintal, suas mãos tremiam ao pegar o cadeado que ele puxou várias vezes até Gregório se aproximar e forçar a abertura.
— Você me drogou — Isabel soava aturdida. — E me prendeu.
— Não soe tão ofendida — eles ouviram Joana murmurar de volta. — Você matou meu irmão.
— Eu não sei nem quem é seu irmão!
A velha bufou e Gregório ouviu Damiano sussurrar:
— Você consegue tocar prata?
O caçador ergueu uma sobrancelha.
— Óbvio. Como você pensa que eu carrego a arma?
— Então tire Isabel daquelas correntes, eu lido com ela.
Se fosse mais nobre e heróico, Gregório teria questionado o que o necromante pretendia fazer, tentaria bancar o advogado do diabo e alegado que matar a dona da pousada não era a solução. Em sua mente, ele até tinha bons argumentos: a violência daquela noite apenas geraria outra, havia um outro agente da Central no lugar e explicar aquilo seria no mínimo complicado, em tese a senhora não tinha feito nada de errado. Bastou um olhar em direção a Damiano para entender que não existia um único argumento capaz de dissuadi-lo e Gregório não era nobre ou heróico o suficiente para tentar.
Antes ela do que eu, pensou, se afastando de um necromante que irradiava fúria por cada poro. Ele não precisava olhar a luta para saber o final dela. Naquele momento, ele entendeu por que a CEBRACON não conseguia capturar o homem. A escassez de pistas era apenas uma desculpa, Gregório não conseguia pensar em um caçador capaz de vencer Damiano. Todos eram humanos demais.
O damphyr correu até o fundo do quintal, onde Isabel estava amarrada com correntes de prata no tronco de um jambeiro. Damiano usou o mesmo instante para atacar, vultos saíam do chão e voavam em direção a outra mulher, gritos ecoavam pela noite. Gregório quebrou as correntes, sentindo suas mãos coçarem ao tocar no metal, e a vampira olhou para o seu rosto, procurando por algo.
Porém, ela não pode encontrar nada. À frente, Joana gritou, rouca e delirante:
— Não, eu não vou deixar que estraguem tudo de novo!
Gregório não conseguia ver além do círculo de fantasmas, que como uma fumaça amarela e venenosa cercavam os dois necromantes à frente, mas ele podia ouvir a risada seca e sem nenhum humor de Damiano. Um arrepio percorreu o seu corpo e ao seu lado, Isabel se inclinou em direção aos dois, tal qual uma mariposa atraída pelas chamas. O caçador a puxou para perto de si e viu os olhos castanhos piscarem, afastando o torpor que ameaçava levá-los à ruína.
Quando a voz do Necromante ecoou pela noite, soava como um deus dos mortos, um demônio que havia rastejado do inferno até aquela cidade amaldiçoada.
— Criança tola, o livro que você leu, eu escrevi.
A sensação atingiu Gregório outra vez, a voz que falava em sua cabeça para que ele apenas se deixasse levar pela maré, um puxão magnético, como se ele fosse arrastado em direção ao oceano fantasmagórico à sua frente. Entretanto, seu corpo recusava se mover um centímetro sequer. Era puro instinto gritando no canto de sua mente: não vá. Fique onde está. Ele fincou os pés no chão e apertou as correntes de prata ainda ao redor da árvore, o incômodo da prata entre os seus dedos o fez recobrar o resto de sua consciência e ele procurou Isabel.
Era a ligação com a morte que os puxava para os necromantes?
Ele esperou ver a vampira longe de si, correndo em direção à Damiano, ou pior, ao lado de Joana, mas ela continuava no mesmo lugar. Demorou apenas um segundo para Gregório perceber que ela tremia, os olhos fixados no vazio, a cabeça sacudindo de um lado para outro abruptamente. A vampira levou as mãos aos ouvidos e se agachou no chão, ela não dizia uma palavra sequer, mas o caçador quase podia ouvir as palavras em seus gestos.
Faça parar.
Gregório não sabia o que fazer. Ele poderia acabar com todos os espíritos naquele quintal, a velha e até se arriscar a lutar contra o Necromante sozinho, mas não tinha a menor capacidade para lidar com uma vampira desmoronando daquela forma.
Era culpa dele? Da luta? Da magia? Ela estava lembrando de algo ou era sua mente lutando contra aquela força que também ameaçava carregá-lo?
Ele tirou o casaco e o colocou sobre os ombros pequenos e os olhos vermelhos, completamente vermelhos, encararam os seus, mas havia uma vulnerabilidade neles que o fazia engolir em seco e ficar. Estava perdendo a cabeça, era a única explicação. Isabel segurou o casaco ao seu redor, puxando-o sobre a blusa de renda recém-adquirida.
Gregório sentiu como se pudesse respirar outra vez e, um a um, os fantasmas desapareceram do quintal. O caçador não se surpreendeu ao ver Joana cair no chão, segurando o peito e respirando com dificuldade. Damiano se aproximou dela devagar, ajoelhando-se à frente da mulher de cabelos grisalhos com uma expressão indecifrável.
— Não devia ter se esforçado tanto, Joana… — seu tom era quase condescendente. — Você consegue sentir, não é? Ela chegando.
A dona da pousada tossiu e Gregório quis acabar com a sua miséria no mesmo instante. Uma bala e ela não ficaria agonizando como um animal moribundo. Ele não conseguia entender por que Damiano sentava ao lado da mulher, como se estivesse preocupado com seu bem estar, ou por que ele sequer tinha olhado em sua direção. O rosto do necromante tinha uma máscara serena, distante, como se a preocupação exibida fosse uma falha na imagem que ele havia construído.
— Eu vou perguntar apenas uma vez e espero que considere bem as palavras, dona Joana. Foi você que informou à Central sobre Isabel? Não minta.
Joana tossiu uma resposta, mas Gregório não soube discernir as palavras. Damiano colocou a mão no ombro da mulher e após um instante que se estendeu por uma eternidade, o corpo dela parou de se mover. Só então o necromante se ergueu, bateu as mãos e olhou para Isabel. Ele colocou as mãos em seu rosto e a examinou com tanta cautela que o caçador pensou em se retirar. A vampira piscou, letárgica, devia ter sido envenenada com alguma coisa, alho provavelmente, mas haviam outras misturas. Ele sabia que hibisco e gengibre podiam ser um sonífero na dose certa e dente-de-leão também lhe causava reações alérgicas. Não era um conhecimento comum, mesmo entre os vampiros, mas era possível.
— Nós precisamos sair daqui — Damiano murmurou, sem tirar os olhos de Isabel. — Joana deve ter informado a Central sobre Isabel e com certeza o Palomo no comando enviará uma equipe.
Gregório puxou o celular do bolso para conferir as chamadas e percebeu que estava sem sinal. Franziu o cenho. Estranho. Desligou o celular e esperou até ligar de novo, após alguns instantes conseguiu se conectar à internet da pousada.
— Não tem nenhuma notificação. Nada. Se eles quisessem ativar outra equipe teriam mandado algo.
A atenção do necromante, entretanto, estava na vampira. O rubi em seus dedos pulsava e ele sussurrava pedidos de desculpas contra seu cabelo. Apenas de vê-los, ele se sentia intrometendo um momento particular. Aos poucos, entretanto, Isabel recobrou os sentidos, olhando de Damiano para Gregório e de volta a Damiano.
— Consegue andar? — o outro perguntou.
— Claro. Por quê? — ela perguntou.
— Precisamos sair daqui — o necromante respondeu. Só então ele olhou para Gregório e disse: — Provavelmente você já foi cortado do sistema.
— Ah ótimo, tudo o que eu precisava — Gregório reclamou. Enquanto os três saíam do quintal, então resmungou, mais para si mesmo que para os demais. — Ótimo. Passei anos pra conseguir tirar o Palomo-pai das minhas costas, aí agora coloco tudo a perder e pra quê? Pra passar mais sabe-se-lá quantos anos tentando limpar a minha barra. De novo.
— Já acabou de se lamuriar? — Damiano perguntou ao seu lado. — Se serve de consolo, eles nunca iriam permitir que se desvinculasse. — Suspirou. — Não se vê um meio-vampiro todo dia, é um instrumento poderoso demais para se arriscar.
O caçador quis perguntar como ele tinha tanta certeza daquilo, então as palavras do cemitério voltaram à sua mente. Fazia sentido demais que o necromante tivesse servido à central sabe-se-lá quantos anos atrás, às vezes, pelo que ouvia, Gregório tinha a impressão que o outro homem sabia o modo como agiam como se os tivesse orquestrado.
— A gente precisa sair da cidade então — o caçador respondeu.
Ouviu a risada ainda embriagada de Isabel por resposta, a vampira se inclinava sobre o ombro de Damiano.
— Eu absolutamente amo essa lógica, vamos sair daqui! — A vampira jogou as mãos para cima, cambaleando perto do terraço e Gregório a segurou antes que caísse no chão. — Mas você não está esquecendo um pequeno problema?
A realização o atingiu como uma bala. Claro. Ela não conseguia sair de Santa Madalena.
Estava prestes a responder quando Damiano sinalizou para que fizessem silêncio. Na meia-luz da casa vazia, atravessaram os portões abertos e o jardim de suculentas. A madrugada silenciosa os ajudou a sair despercebidos da casa e a atravessar a pousada pelas sombras. Mesmo assim, Gregório não conseguia se desfazer da sensação de que encontraria Hugo no próximo passo, com as adagas em punho e prestes a derrubá-lo. O garoto não era páreo em uma luta mesmo que houvesse apenas um deles, mas o caçador mais velho não desejava ter de feri-lo.
O buraco onde tinha se metido já era fundo demais para ele ainda cavar mais.
— Sei onde podemos ficar — Damiano interrompeu seus pensamentos. — Ainda é em Santa Madalena, mas vai nos dar alguns dias de vantagem.
— Não sendo outro mausoléu — Isabel murmurou.
Damiano o encarou e Gregório percebeu que o necromante estava lhe dando uma escolha. Ele podia tentar mentir para seus chefes e ficar na pousada e torcer para dar certo, ou podia arriscar tudo por uma fuga improvável, junto a um homem que tinha conseguido despistar os melhores agentes da CEBRACON durante décadas, talvez mais.
Demorou apenas um instante para decidir. A alternativa parecia óbvia.
Gregório sequer pensou no bracelete em seu pulso, a adrenalina corria pelo seu corpo, uma injeção de ar fresco no seu mundo mofado. Nunca tinha sido um covarde.
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