15 de junho de 2025. Santa Madalena do Norte, PB.
Isabel soube que estava lascada no momento em que sentiu a língua pesar na boca e a dormência tomar conta do seu rosto, mas ela só foi compreender a real dimensão daquilo ao ver Damiano horas depois.
Sentia-se embriagada, caminhando entre os dois homens para longe da parte urbana da cidade. Às vezes, um deles a segurava quando tropeçava no chão, impedindo que caísse, noutras ela conseguia se manter em pé no último instante. Sua consciência retornava aos poucos. Um despertar lento. E, desde que deixaram a pousada, o necromante não tinha dito uma palavra para ela, mas seus olhos falavam mais do que sua boca podia. Ela sentia o desapontamento e a fúria e a preocupação marejando seu olhar e quase se sentiu culpada pela aventura imposta. Quase. A parte mais sincera de si estava extasiada como há muito não se sentia. Eufórica.
Os três seguiram por uma estrada de barro coberta por mato. Na direção oeste, passando por um pequeno trecho que a Mata Atlântica tinha tomado de volta para si. Isabel sabia que ainda estava em Santa Madalena, pois conhecia a sensação que lhe atravessava caso tentasse sair, uma espécie de tontura, um solavanco na boca do estômago, mas a cada passo se sentia mais e mais em outra cidade, longe dos coqueiros e do som do mar.
A terra era úmida e pedregosa e os sapatos começaram a lhe incomodar, mas ela não ousou dizer nada. O incômodo era irrelevante em meio ao som de novos insetos. Sentia-se uma criança, abrindo os olhos para o mundo pela primeira vez, vendo mais que as paredes gastas de seu túmulo e as ruas de paralelepípedo.
— Fico feliz de ter uma lanterna nesse escuro — Gregório murmurou, roubando sua atenção. Ele havia deixado o celular para trás, perto do cemitério, a pedido de Damiano e desde então ficava mais taciturno a cada passo.
— Já estamos chegando — o necromante retrucou e não pela primeira vez a vampira quis entender qual o problema entre eles, mesmo que as palavras não fossem hostis, o tom ríspido não deixava dúvidas.
Homens, pensou. Era a única explicação razoável. Ela era incapaz de entendê-los.
— Amém — o caçador resmungou. — O sol vai sair logo.
Logo não era a palavra que ela usaria, apesar de sentir que o nascer do sol estava pouco mais de uma hora à frente. Havia tempo o suficiente para encontrar abrigo da luz.
Damiano lançou um olhar rápido na direção de Isabel e ela quis que ele falasse algo de uma vez, qualquer coisa, o silêncio a estava envenenando, mas sabia que era um desejo tolo. Ele não era de desperdiçar palavras.
A estrada acabou e eles se viram diante de um cercado baixo, improvisado, feito de pedaços de pau e arame farpado e tomado pela vegetação local. Damiano os guiou até um portão e o empurrou. As dobradiças protestaram e cederam em seguida, deixando-os passar e seguir por um caminho irregular coberto de seixos. A propriedade era cheia de árvores frutíferas: jambeiros, mangueiras, cajueiros. Isabel parou por um momento para sentir o aroma das flores e das frutas. Fechou os olhos e os sonhos encheram a sua mente.
Corria entre árvores iguais àquelas, ou parecidas o suficiente para se confundir, e um garoto chamava a sua voz, sua risada se misturando a dela enquanto ela erguia a saia do vestido para ir mais rápido. O sol estava à pino, e apesar do calor sua pele não queimava, era apenas quente. Quente e comum. Quente e suportável.
Quando abriu os olhos novamente, piscou diversas vezes até se certificar que era noite. A luz do sol não existia em seu mundo há mais de um século.
— Isabel? — Damiano perguntou. Os braços erguidos em sua direção como se desejasse abraçá-la, mas não soubesse como.
— Você tá bem? — Gregório emendou em seguida.
O caçador tinha apenas erguido uma sobrancelha. Ela sacudiu a cabeça em negativa.
— Não foi nada, só… imagens? Lembranças?
— Você está lembrando? — Cada palavra foi dita devagar, como se Damiano perguntar em voz alta tornasse a esperança real e ele temesse ser destroçado por ela.
A vampira suspirou. Agora ele se demonstrava interessado nela, depois de mal dirigir-lhe duas palavras durante o caminho todo. Ela tocou a têmpora, fingindo massagear a cabeça com os dedos, e voltou a caminhar. Isabel entendia a esperança bem camuflada em sua voz. Ela ainda recordava as primeiras visitas, o modo como ele beijava sua testa sempre que ela ficava frustrada por não lembrar e lhe assegurava que um dia iria. Ainda podia ver a tristeza escondida em seus olhos com uma máscara de indiferença.
Mas, por Deus, era essa a única forma de ter algo além de sua reprovação naquela noite?
— Vixe — Gregório murmurou, em um tom zombeteiro. Provocando o outro homem. — Problemas no paraíso?
Damiano não respondeu. Isabel duvidava que o fizesse. Algo lhe dizia que o necromante era mais propício a pequenas vinganças ao invés de palavras em situações como aquelas.
Passaram pela frente da escada para a entrada principal, obstruída com pedaços de madeira e pedras, e foram em direção aos fundos. Outrora, a pintura do lugar parecia ter sido rosa, ou amarela, não dava para dizer ao certo à luz da lanterna, e os pedaços do reboco caíam pelo chão, entretanto, os anjos na platibanda acima, em relevo, continuavam intactos.
— Tem certeza de que é aqui? — Gregório perguntou.
Não era o que tinha em mente de um local confortável. Apenas de ver o exterior imaginava as plantas tomando de conta do térreo, a poeira no chão e nenhum móvel. Mas Damiano crispou os lábios em um sorriso minúsculo e ela pensou que talvez fosse esse o objetivo.
Quando entraram, entendeu o porquê.
De fato, havia plantas tomando de conta das portas e algumas janelas, e o chão de madeira tinha visto dias melhores, mas o sofá estava intacto, assim como o telhado e as vigas que o sustentavam. Um tapete se estendia junto a um centro e quando Damiano descobriu a mobília, ela notou que apesar do tempo, tudo estava bem conservado.
— Não é um hotel — o necromante explicou. — E não é um lugar que eu ficaria mais de dois dias, mas é o que temos por enquanto. Qualquer pousada na cidade tem algum contato com a Central.
— Todas elas? — Gregório sequer disfarçou o tom de descrença em sua voz. — Tem certeza?
Damiano suspirou.
— Se quiser colocar a sua cabeça a prêmio, fique à vontade para testar.
Os dois homens se encararam, andando devagar em direção um ao outro com expressões semelhantes de fúria. Pareciam dois galos com o peito estufado.
— Será que vocês podem parar com isso por um minuto? — Isabel ralhou. Estava cansada. Sua cabeça continuava nebulosa e ela sentia como se fosse explodir a qualquer segundo. — O sol entra aqui?
— Não — Damiano respondeu, se afastando de Gregório e caminhando em direção a um armário. — As janelas estão todas vedadas. Ninguém mora nesse lugar há muito tempo.
— Deu pra notar — Gregório resmungou.
— Amanhã eu posso ir na cidade comprar uns colchões infláveis e comida. — O necromante encarou o caçador por um longo momento até perguntar: — Você come algo além de sangue, não é?
— Eu não tomo sangue.
A vampira se perguntou se não havia mais na resposta que a recusa ríspida. Mas preferiu não comentar. Damiano deu de ombros e disse:
— Isabel fica com o sofá, espero que não tenha problemas em dormir no chão hoje.
— Eu não sou uma boneca de porcelana! — ela reclamou.
— Se é assim, eu gostaria de descansar no sofá — Gregório zombou.
Abriu a boca para retrucar, até ver o sorriso nos lábios do caçador. Do outro lado, Damiano cruzou os braços à frente do corpo e ela pôde notar que ele também lutava contra um crispar de lábios.
— Tá. Eu aceito o sofá.
— Um grande sacrifício de sua parte, tenho certeza — Gregório murmurou revirando os olhos, mas o sorriso permanecia.
Ela se percebeu sorrindo também.
Quando já estava deitada, e sentia a letargia do sol pesar em suas pálpebras, Isabel achou ter visto o rosto de seu irmão a observá-la e sentiu seu peito apertar.
A casa cheirava a açúcar queimado, vindo direto da cozinha, ela ouvia sua mãe cantarolar enquanto preparava algum doce nas panelas de barro. Escondida entre as roupas do armário, observava pelas brechas quadriculadas o seu irmão passar de um lado para outro, às vezes gritando que iria encontrá-la, noutras provocando para que saísse de onde estava. Abafou a risada com a mão. Não iria perder. Quando Herbert passou para a cozinha, ela abriu o armário devagar, evitando o ranger das dobradiças com a maestria de quem já tinha repetido o gesto vezes demais e correu.
Benedito a puxou pela cintura quando estava na porta.
— Onde pensa que vai nessa pressa toda?
— Rá! Encontrei você! — Herbert gritou.
— Não é justo! O papai interferiu!
— Eu ganhei!
— Vocês dois, sem briga — Francisca disse ao se aproximar, retirando o avental sobre o seu vestido. A mulher se aproximou do marido e ofereceu a mão que ele beijou antes de entregar sua casaca e o chápeu. — Voltou mais cedo.
— O serviço era pouco — Benedito respondeu. Mesmo de onde estava, e Isabel passava apenas dois palmos da cintura de seu pai, ela podia ver a tensão em seu rosto, o sorriso forçado no canto de seus lábios. — Eles querem que Herbert comece a treinar o quanto antes.
— Ele é um menino! Um menino que vive doente! Eles estão loucos?
De relance, Isabel olhou para onde estava seu irmão, e se deparou com o vazio. A discussão entre seus pais não era novidade pela casa, sempre que Benedito voltava da Central ela se repetia. Seu irmão era um garoto franzino e a menina lembrava do próprio pânico em sempre vê-lo de cama. Brincadeiras como as daquela tarde eram raras. Tão raras que apesar do espírito competitivo, Isabel deixava que ele ganhasse os jogos que faziam para alegrá-lo.
Ela o encontrou sentado na cama de seu próprio quarto, com as pernas cruzadas à frente do peito. Isabel notou que Herbert estava tentando segurar o choro pela forma como seu lábio tremia e sabia que era por causa de alguma bobagem sobre garotos não poderem chorar que tinha escutado de um dos meninos da escola. Quando ouviu aquilo pela primeira vez, ela perguntou à sua mãe se os olhos dos meninos eram diferentes, Francisca riu e a dúvida ficou, até Isabel descobrir que era tudo bobagem.
— Eu não quero ir — Herbert soluçou.
— Mainha não quer que você vá, ela não vai deixar.
— Promete?
A luz fazia os olhos de Herbert parecerem feitos de mel, grandes e impossíveis de se recusar. Isabel levantou a mão e ofereceu o mindinho.
— Prometo. Se ela deixar, eu não deixo.
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