Acordou arfando e olhou ao redor. Aquela era a casa. A mesma casa do seu sonho, com as janelas cobertas com tapumes e a vegetação tomando conta de tudo. Ela tinha vivido ali ou sua mente estava apenas usando o lugar para preencher lacunas? Levantou-se. Sentia o sol da tarde ordenando que voltasse a dormir, mas ignorou a sonolência.
Aos seus pés, Gregório roncava baixo, escorado no sofá em uma posição que parecia ser tudo menos confortável. Ela não fez barulho ao caminhar pela sala. As coisas eram menores do que em seu sonho, sorriu para si. Não. As coisas eram exatamente como antes, ela que tinha crescido. Procurou o armário de sua memória, mas havia apenas um amontoado de pedras em seu lugar.
Cem anos, Isabel. Você passou cem anos longe daqui, o espaço vazio parecia lhe dizer.
Será que ainda tinha família? Algum sobrinho-bisneto perdido pelo mundo, sem conhecimento da ligação dos Montalverne com a Central e seus caçadores. Ou todos os seus descendentes estavam amaldiçoados a servir as outras famílias de caçadores?
Caminhou pela passagem que terminava na cozinha, seus dedos tocavam a parede no lado direito e ela fechou os olhos, pensando no caminho para o próprio quarto, no cheiro do açúcar e o sorriso de sua mãe. Na forma como seu pai a tinha abraçado e na promessa a seu irmão. O que tinha acontecido com Herbert? Ela apertou a têmpora desejando lembrar.
Ouviu o vento uivar e girou sobre os calcanhares, com a sensação de estar sendo observada. Entretanto, não havia nada atrás de si além dos destroços de seu passado. O vento continuava uivando, lembrando-lhe do calor abafado do casarão, tão diferente do frio úmido do mausoléu. Ergueu o cabelo com as mãos e a brisa fria tocou sua nuca.
Uma voz a chamou. Baixa e irreconhecível. Por um momento, Isabel pensou que a havia imaginado, mas a voz repetiu seu nome. Isa...bel.
A vampira correu, contra o bom senso, em direção a voz. Entre a saia recém-adquirida e o próprio peito emitindo o eco de um batimento, era desajeitada em seus passos. Quando empurrou a porta do quarto de Herbert, viu seus dedos tremerem.
O fantasma estava sentado na cama, com o rosto voltado para os livros jogados pelo chão. Exemplares irreconhecíveis, sem capas, com espinhas expostas, páginas faltando e verbetes de uma era que não era mais aquela. Um pouco como eles dois, ela pensou. Uma grande história sem sentido.
Reconhecer Herbert era fácil, apesar de sua aparência ectoplasmática e azulada. Era como ver a foto em preto e branco de alguém que ela conhecera em cores.
Isabel pigarreou e o fantasma a encarou por um longo instante, como se esperasse que ela olhasse para outro lado e ignorasse sua presença. Quando ela continuou o encarando, Isabel notou a expressão de descrença e surpresa no rosto translúcido.
— Você consegue me ver.
— Eu não devia?
Herbert a encarou e Isabel não sabia o que fazer. Devia se aproximar? Aquele era o seu irmão e, ao mesmo tempo, não era. Ela tinha apenas poucas memórias da infância, eram como fotografias perto de vídeo, representando apenas um momento e deixando todo o resto de fora.
— Você lembra… — ele começou, o rosto voltado para o amontoado de livros. — Lembra da nossa promessa?
A vampira olhou para a janela fechada e os feixes de luz que entravam pelas frestas, alguns atravessavam a figura fantasmagórica, provocando estranhos buracos em sua forma. O sonho veio à sua mente de imediato. Os dedos suados de seu irmão enlaçando os seus, o sorriso trocado. Uma parte de si dizia que também houveram brigas, provocações, desentendimentos, mas como sua mãe gostava de lembrar, um vínculo forte como o deles não se quebrava facilmente em vida.
Pelo visto, não havia quebrado nem com a morte.
— Lembro — disse sem hesitar, a palavra era estranha de se pronunciar após um século longe de sua própria memória.
— Eu só queria dizer que sinto muito, Isa — Herbert murmurou. — Você não deveria ter tido que assumir meu lugar e se envolver com a Central.
— Eu fui parte da Central?
— Papai dizia que nossa família tinha sido recrutada ainda no porto quando nosso bisavô pisou no Brasil. — Isabel percebeu que havia um certo desdém nas palavras e a aura ao redor do espectro respingava no ar como veneno tocando a água. Estranhamente, ela quis se aproximar, colocar a mão sobre a sua, acalmá-lo, mas permaneceu junto à porta, vendo-o se flutuar no ar em sua direção e parar à sua frente, com as mãos a centímetros do seu rosto e um olhar de adoração. — Eu fico feliz de ver o seu rosto de novo. De ver você e não o que foi deixado naquele cemitério por todo esse tempo.
— O que quer dizer com isso? Parece que está se despedindo.
As palavras saíram de seus lábios com esforço, mal acima de um sussurro. Ela sequer piscava. Aquele era o rosto de seu irmão; de seu pai, com o nariz de sua mãe. Era um rosto que ela não sabia que tinha sentido falta até reencontrar. Como ela tinha passado tanto tempo ignorante?
— Eu... — ele começou, abriu a boca e fechou novamente. — Eu acho que estou.
— Mas…
— Eu já cumpri o meu propósito aqui, Isa. Ninguém me prendeu a esse plano, eu quis ficar, quis protegê-la pelo que você me protegeu.
— Herbert — clamou baixinho. — Por favor, eu acabo de me lembrar de você.
As mãos dele repousaram sobre as suas e ela não sentiu nada além de um formigamento suave.
— Diga a Damiano que um século é tempo demais para viver de vingança. Eu te espero na próxima vida, irmã.
Herbert desapareceu aos poucos à sua frente, se transformando em poeira luminosa que se acendeu por um único momento antes de desaparecer. Isabel quis ser capaz de chorar, de soluçar por uma perda que mal começava a fazer sentido. Nunca tinha encarado a imortalidade como algo além da vida que tinha a seu alcance, de uma espécie de bênção curiosa, agora ela via a maldição. Quantos minutos tinha tido com Herbert? Quantos minutos compensavam uma vida inteira que jamais recuperaria?
Ela quis amaldiçoar quem a pôs naquele estado. Quis gritar até suas vísceras saírem pela boca e não sobrasse nada além de sua voz rouca ecoando pelo tempo.
Como podia ser tão ingênua, como podia ter achado que a imortalidade era outra coisa além de maldição?
Então ela sentiu uma mão em seu ombro e se virou para Damiano, o homem vestia a sua típica máscara de indiferença, mas ela via a preocupação em seus olhos. Sempre havia uma rachadura.
— Herbert… — ela tentou explicar, mas não conseguiu. Não conseguia dizer que o espírito de seu irmão tinha partido.
Era tolo, enlutar-se por alguém que estava morto há pelo menos um século?
— Não precisa explicar — o homem murmurou, passando as mãos em seus ombros. Ela o abraçou, colocando a cabeça no peito dele e ouvindo a batida de seu coração. Vivo. Damiano estava vivo. Talvez, naquela casa, fosse o único a estar. O necromante acariciou o seu cabelo devagar, então se afastou e seus olhos se encontraram. Havia uma convicção impertubável no olhar dele quando murmurou: — Ele ficará bem.
Aquelas não eram palavras vazias de consolo. Isabel acreditou nelas. Acreditou nele. E as palavras de Herbert vieram à sua mente outra vez.
Um século é tempo demais para viver em vingança.
Até então nunca tinha lhe ocorrido que Damiano tinha quase a mesma idade que ela e que seu coração batia, pulsava e galopava como o de qualquer ser vivo. Ele devia estar morto, mas estava ali, respirando por necessidade e não só aparência.
Um século.
Ele estava vivo e permanecia jovem há um século.
Como?
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