15 de junho de 2025. Santa Madalena do Norte, PB.
— Eu vou fazer a passagem — Herbert anunciou com a naturalidade de quem diz as horas assim que Damiano abriu os olhos.
O necromante piscou, afastando o sono. Dormia pouco, hábito adquirido dos primeiros anos em fuga e perpetuado pelas décadas seguintes. Devia ser perto das onze horas, mas ele tinha ficado acordado até praticamente o sol nascer e tido um sono vigilante depois disso, movendo-se ao menor barulho.
Entretanto, não estava surpreso com a presença ou as palavras do fantasma.
— Hoje?
— Não vejo por que continuar aqui.
— Hum… — Damiano grunhiu enquanto se erguia, tentando ajeitar as roupas amassadas, e checou as notas em seu bolso. Supunha que parecia desinteressado, fazendo contas e evitando olhar na direção do espírito de seu amigo, mas a verdade era justamente o contrário. Ele queria convencer Herbert a ficar, por mais alguns dias, ou mais alguns anos. — Isabel iria gostar de vê-lo.
— Ela não se lembra de mim.
— Ela está lembrando — Damiano olhou para Isabel ainda dormindo no sofá —, ou foi o que o caçador disse.
— E você acredita nele?
— Não, eu acredito nela.
Herbert arqueou uma sobrancelha e o encarou enquanto ele buscava uma camisa limpa na mochila que carregava consigo. A que estava usando tinha as costas marcadas pelo suor.
— É tão difícil se despedir como uma pessoa normal, Dami?
O apelido infantil ardeu em seus ouvidos e um meio sorriso traiçoeiro brotou em seu rosto.
— Você é um fantasma, Herbert. Eu sou um necromante. Normal está muito aquém de nós — Damiano retrucou, trocando-se.
— Por Deus, eu não vou sentir falta do seu humor.
Mas até que eu vou sentir a sua, pensou.
— Dê uma chance à Isabel — disse.
Não sabia o que mais dizer. “Até a próxima e boa morte” soava ridículo demais na sua cabeça. Sequer sabia se haveria uma próxima, ou o que os esperava depois do apagar das luzes. Para alguém tão conectado à morte, Damiano não costumava pensar sobre o depois dela. Se existia, o paraíso parecia irreal, com suas tantas bênçãos prometidas; reencarnar era gentil demais para almas como a dele. O pessimismo dizia que talvez apenas o inferno existisse e Herbert merecia mais que a danação eterna. Um século de penitência era mais que suficiente para alguém tão bondoso.
Herbert se cansou de seu silêncio sombrio e desapareceu nas paredes do casarão. Damiano suspirou, lembrando-se de quando se conheceram, logo após um caçador aparecer no orfanato, recrutar uma meia dúzia de garotos e selecioná-lo pessoalmente. Quando ambos foram levados para a Central, para treinar antes de serem assinalados como aprendizes de alguém. Damiano encontrou no garoto franzino e de saúde frágil um amigo, a palavra ainda soava estranha até em seu pensamento.
O mais novo dos Montalverne, entretanto, passou apenas alguns meses no lugar e logo foi substituído por sua irmã.
O necromante encarou a parede por onde o fantasma havia passado, calçou os sapatos, sentiu a garganta se fechar e permaneceu em silêncio.
Passou o resto do dia pensando no não-dito.
Santa Madalena do Norte era uma cidade estranhamente viva durante o dia. Vendedores nas ruas, mesas abertas nas calçadas, crianças correndo em direção à praia com algum adulto gritando para tomarem cuidado, gritos de promoções tentando se sobressair. Um perpétuo cheiro de suor. Devia ser dia de feira, ou talvez ele estivesse acostumado demais à noite e seus mortos.
Apenas uma das portas metálicas do mercado estava aberta quando chegou e a pessoa no caixa digitava animadamente no celular. Colocou um cesto no braço e encheu com pão, queijo, algumas frutas e um suco de caixa, torcendo para que o meio-vampiro não fosse cheio de frescura ou com um apetite insaciável.
Colocou o cesto sobre o caixa, fazendo a atendente largar o celular e lhe lançar um sorriso educado.
— De férias pela cidade? — ela perguntou passando as coisas pela máquina.
— Acampando por perto — murmurou de volta, por educação.
— Ah. — Ela puxou um panfleto da mesa e colocou junto das compras. — A pousada Recanto do Sol tá com desconto se você e seus amigos quiserem passar a noite.
— Obrigado — murmurou com um sorriso sem graça.
O nome da pousada não escapou sua mente. Era o mesmo lugar da mulher que tentara sugar a vida imortal de Isabel, ele desconfiava que a feiticeira estava ligada à Central de alguma forma, talvez uma pária como ele, ou uma informante, alguém que tinha tido o direito a se aposentar daquele lugar de tão pouca sobrevivência.
Entretanto, achava estranho que em uma cidade como Santa Madalena a notícia da morte de Joana não tivesse se espalhado.
Podia ser sua paranoia também, fazendo-o enxergar teorias onde não havia nada além de silêncio e fumaça. No caminho, comprou algumas roupas para Isabel, sabendo que ela precisaria de mais do que tinha se quisessem seguir com a ideia de deixar a cidade. Entretanto, ainda precisava pensar no como. Anos atrás, ele conseguira levantar parte da maldição que a prendia ao mausoléu de sua família, a maldição que era culpa sua em primeiro lugar. Mas não sabia como prosseguir, talvez a memória recuperada fosse um sinal. Quase riu consigo, nenhuma divindade lhe garantiria um sinal.
Quando chegou às ruínas do casarão, o céu estava pintado de laranja e púrpura e ele se pegou contemplando a imagem por alguns minutos. O calor do sol confortável sobre a pele, despedindo-se antes de dar lugar à noite.
Ao entrar, viu Gregório ainda deitado no chão, mas Isabel não estava no sofá e ele franziu o cenho, lutando contra a própria mente que já desenhava cenários sobre cenários de onde ela poderia ter ido. Trincou os dentes e se forçou a respirar, colocando as compras sobre a mesa de centro e caminhando em direção ao corredor.
— Diga a Damiano que um século é tempo demais para viver de vingança. — Ouviu Herbert dizer, distante, e o necromante se perguntou se o fantasma não o tinha sentido se aproximar, mesmo que o pensamento não fizesse sentido algum.
Parou no corredor, assistindo a cena diante de si como se presenciasse um filme sem áudio. Sentia dentro de si a conexão de Herbert se desfazer, lentamente. Era uma corda que arrebentava um fio por vez. Por instinto, Damiano sentia-se tentado a conectar os fios, impedir a corda de partir, fechou as mãos em punhos, as unhas ferindo sua palma até que ele ouviu Isabel soluçar, sem nenhuma lágrima.
Engoliu a própria dor e o gosto ácido rasgou a garganta.
Quando envolveu Isabel entre seus braços, pensou vagamente em quem tinha escrito que desejava consolar um amigo, não por bondade, mas pelo gesto evitar pensar em sua própria dor.
Ele era um hipócrita.
As últimas palavras de Herbert aumentaram o gosto amargo na boca de Damiano. Cem anos era, de fato, tempo demais para viver de vingança. A maior parte dos homens sequer vivia tanto tempo e, se não fosse um ladrão de vidas, ele tampouco viveria. Mas largar seus planos agora lhe deixava com a sensação de desperdício, de ter jogado fora o que se passou quando estava tão perto. As peças estavam em seu lugar, esperando o primeiro movimento.
Uma questão de oportunidade.
Uma ideia lhe acertou, abrupta, e ele se afastou de Isabel, apenas o suficiente para ver o seu rosto.
— Está melhor? — perguntou.
A vampira o encarou por um instante e então acenou com a cabeça afirmativamente, mas não rompeu o abraço.
— Eu comprei algumas roupas para você. Não é muito, mas...
— Nós vamos sair da cidade?
— Não hoje, talvez nem sequer essa semana, mas você não pode voltar para o mausoléu. A Central sabe sobre você agora, Isa.
— E o que faremos?
— Eu tenho um plano — ele respondeu. — Mais de um, na verdade.
Ela o analisou, esperando para que continuasse, mordendo o lábio inferior para evitar as perguntas de escaparem. Não pela primeira vez no último século, ele quis beijar sua boca até se perder de si mesmo, mas havia prometido que não o faria até que ela tivesse recuperado as memórias.
Suspirou. Ele só precisava ser um pouco mais paciente.
— Primeiro precisamos te livrar dessa cidade. Depois… — ponderou. Depois o quê? Ela o ajudaria a destruir a Central? — Depois nós vemos o que fazer.
— Você falou que tinha mais de um plano.
— Sim. Tudo depende do caçador na sala.
— Acha que ele pode nos fazer mal?
— Honestamente? — Ele respirou fundo. Queria acreditar que o meio-vampiro viria com eles tão e somente por ser um pária, mas devia haver um motivo para Gregório trabalhar para aquele lugar. — Eu não sei. Quero dizer que não, Isa, mas você não lembra da Central como eu lembro.
— Eu não sei se quero — ele a ouviu sussurrar, quase como se o pensamento não fosse para ser dito.
A dor que as palavras provocaram era pior do que qualquer surra que ele já tivesse tomado, qualquer facada ou ferimento. Seu corpo inteiro ficou tenso, petrificado. Ela não queria lembrar? Inalou. Tentando empurrar para longe aquela sensação de ser partido em vários e incapaz de se recompor.
— Desculpe — ela murmurou, ao perceber a forma errática como seu coração batia. — Eu imagino o quanto isso significa para você, é só que…
Damiano tentou abrir a boca e dizer que não importava. Porém, ele não conseguia formular as palavras, sua voz estava enterrada em um lugar distante.
Ouviram um pigarro vindo do corredor e Gregório os encarou com os braços cruzados e um sorriso obviamente forçado.
— Perdoem a interrupção, mas nós temos problemas.
— Que tipo de problemas?
— Do tipo que tem o sobrenome Palomo.
O necromante se afastou de Isabel imediatamente, praticamente correndo em direção à sala. Que Deus tivesse piedade se o garoto tivesse vindo até ali para atacá-los, porque Damiano não teria. Gregório, entretanto, o puxou pelo braço antes que alcançasse o fim do corredor.
— Ele não está aqui. Calma.
— Então por que é tão urgente? — praticamente vociferou a pergunta.
— Eu estive pensando… — Damiano arqueou uma sobrancelha, pouco interessado em qualquer que fosse o pensamento do outro homem. — Mas o garoto é mimado demais pelo pai e com certeza a essa altura já reportou algo.
— Isso era óbvio — resmungou o necromante. — Ele seria um tonto se não tivesse reportado.
— A questão é que normalmente algo reportado teria de ser repassado do caçador pra o departamento que designou a missão pra então ir para os superiores. Mesmo notícias sobre você tinham de seguir o protocolo e isso leva tempo pra caramba.
— Vá direto ao ponto.
— O garoto tem o número do pai. Uma ligação e…
Damiano suspirou, interrompendo o caçador.
— Eu já tinha considerado essa possibilidade.
— Já? Então por que não estamos em movimento? — A irritação do caçador fez o necromante revirar os olhos e caminhar para a sala sem dizer nada. Mas as palavras continuaram atrás de si. — Sério, é só você desfazer o que prende Isabel nessa cidade e a gente dá o fora daqui.
Damiano olhou para Isabel que vinha atrás do outro homem, evitando que o sentimento de traição tomasse conta de seu rosto, mas pelo olhar cheio de desculpas no rosto dela, ele soube que havia falhado. Respirou fundo.
— É o que estou tentando fazer há décadas. — Ele estava cansado e exasperado com o fato ter de se explicar. Desejava que o meio-vampiro sumisse da sua frente, engolido por uma cova, ou que seguisse sua vida e deixasse os planos para quem sabia fazê-los.
Sequer mencionou que Isabel estar presa à Santa Madalena não era inteiramente culpa sua. Nunca o fazia de qualquer forma. Considerava que o erro era todo seu.
— Deu pra notar o quanto você está interessado nisso — Gregório resmungou.
— Se tem algo para reclamar, fale logo, damphyr.
Gregório abriu a boca, caminhando em direção à Damiano, mas Isabel interveio, se colocando entre os dois com os braços erguidos.
— Meu Deus! Será que vocês podem parar com isso? Caso não tenha dado pra notar, a gente tá no mesmo barco.
— Desculpe — Gregório murmurou primeiro para a vampira. Damiano deu de ombros, então caminhou até as sacolas de compras e começou a separar os alimentos de forma metódica.
Entregou um pacote com as roupas para Isabel sem dizer nenhuma outra palavra. Parte de si queria se desculpar com a facilidade do meio-vampiro, mas de desculpas vazias o mundo estava cheio. O necromante precisava se conter primeiro, evitar a mágoa ao ouvir que ela o responsabilizava por estar ali e a dor de pensar que ela não desejava lembrar. Precisava reorganizar o caos em seus pensamentos, processar a passagem de Herbert para o outro plano e então revisar cada um de seus planos.
Inclusive os planos que o tinham movido no último século.
Preparou um sanduíche e comeu em silêncio. Os outros dois também não falaram nada e, se a falta de palavras lhes causava desconforto, não demonstraram.
Damiano não entendia como silêncios podiam ser desconfortáveis, a quietude sempre o afagava, dava-lhe a oportunidade de se recompor. Mesmo quando havia muito a ser dito, e ainda mais a ser feito, uma pausa para ponderar era sempre bem-vinda.
Pelo canto do olho, viu Isabel pegar as roupas e erguê-las antes de sair para o outro cômodo. Parte agradecimento, parte pedido de desculpas. Ele inspirou devagar, ajeitou os ombros, viu Gregório mover-se em sua direção. Diferente dele, o caçador tamborilava os dedos sobre a mesa e mudava o peso do corpo de uma perna para outra, claramente agitado com a quietude.
— Como vamos sair daqui então? — perguntou Gregório ao se aproximar, preparando alguns sanduíches para si.
— Não vamos — Damiano retrucou. — Seria perda de tempo tentar adivinhar como Isabel pode sair da cidade e estupidez tentar escondê-la.
— É idiota ficar aqui, a Central toda deve tá vindo pra cidade.
— Eu sei — o necromante murmurou despreocupadamente, dando uma mordida no sanduíche em seguida. — É o seguinte, além de nós dois, ninguém mais sabe que Isabel está na cidade. Nós não precisamos sair, só fazê-los acreditar que saímos. Mas também tem o plano B.
— Eu vou me arrepender de perguntar qual é o plano B, né? — Gregório resmungou, mais para si que para o outro.
Damiano ignorou seu tom, ou sua fala, por completo.
— Há um Palomo na cidade. Quão experiente ele é?
— Er… é um novato, não chegou a fazer nada sozinho — o caçador respondeu.
— Ótimo. — O necromante tomava notas mentais com um tom desinteressado, mas sua mente fervilhava com possibilidades. — Filho único?
— Sei lá. — Gregório deu de ombros. Em seguida, o caçador franziu o cenho, encarando Damiano com os olhos estreitados. — O que isso tem a ver?
Um sorriso afiado apareceu no rosto do necromante. A expressão era de puro deleite consigo mesmo, desde que entrou na cidade, a presença do Palomo na cidade soava como uma promessa. Uma peça que ele podia manipular.
— Bem — disse após um pequeno silêncio —, a gente sempre pode usar o garoto de moeda de troca.
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