Era o dia em que os mortais enviavam cartas às estrelas.
O céu limpo trazia como protagonista a lua, grande e redonda, como um farol para os astros que aguardavam os desejos de seus súditos. Se alguém perguntasse o que Mo Tian iria pedir no Festival das Lanternas, ele daria um meio sorriso misterioso – a verdade, porém, era que ele não teve tempo para pensar sobre isso.
Nas últimas semanas, todos do clã Lanhua só falavam da chegada da primavera, da primeira lua cheia e da expedição dos cultivadores até a cidade para ver o Rito de Ano Novo. Com isso, o festival mais famoso iria começar.
O planejamento foi exaustivo, e a execução exigia muito cuidado com os detalhes, mesmo os mais insignificantes. Mo Tian, assim como os outros servos, trabalhavam desde o amanhecer há pelo menos três dias, com poucas pausas para se alimentar e dormir. Ele estava com bolsas embaixo dos olhos castanhos, o cabelo loiro escuro vivia ajeitado graças a uma obsessão por limpeza e organização de Mo Tian – e isso incluía a própria aparência. Olhar-se no espelho e encontrar olheiras já estava deixando-o frustrado, mas Mo Tian tentava se animar pensando que seria somente dessa vez, e por um bem maior: a felicidade da população de Lanhua e uma boa noite de festa.
Sua animação se desmanchava como sabão em água corrente quando pensava nos cultivadores do Pico Jinxiuhua, um lugar místico, onde eles se reuniam para aprimorar seu Núcleo Dourado e explorar os segredos da cultivação. A maioria dos cultivadores era mais velho, mesmo que não aparentassem por conta do cultivo. E havia um em particular.
O mais forte entre eles, Song Ning. Ele estaria ali naquela noite, e Mo Tian o evitaria a qualquer custo.
Ele limpou o suor da testa com as costas das mãos, respirando fundo o ar fresco do pôr do sol. A decoração do pátio interno tinha ficado deslumbrante, com o requinte solicitado pelo líder. Tecidos pendurados em pontos estratégicos destacavam o emblema dos Lanhua e tremulavam, elegantes, com o vento. O palanque brilhava de tão limpo, pronto para o momento mais importante da noite – quando os pedidos escritos nas lanternas voariam até o Coelho de Jade, o Celestial Coelho, para a benção do ciclo seguinte ser dada.
Mo Tian precisava coordenar a limpeza das instalações, fazer registros do Rito, dar ordens para cozinheiros, e gerenciar a multidão à medida que o movimento nas ruas aumentasse. E ainda havia muito a ser feito. Ele não havia se esquecido de nada… ou será que tinha?
Ele sentiu calafrios só de pensar em fazer algo errado. Por conta da vinda dos cultivadores, o líder Xiang Dao queria nada menos do que a perfeição. Mo Tian era bom nisso: ele cumpria com excelência todas as tarefas que lhe eram oferecidas. Não só ele, já que ninguém queria puxar o bigode do tigre e se tornar o novo bode expiatório de suas frustrações. Da última vez, um servo havia sido torturado com um fuchen – uma arma espiritual taoísta que foi dada pelos cultivadores, para que a disciplina seja sempre uma virtude aplicada corretamente. Já não bastasse a vergonha para a família, no segundo erro aquele servo, já exonerado de seu cargo, foi expulso de Lanhua e passou a viver nas cidades baixas, onde a situação era mais deplorável.
Mo Tian não tinha família para desonrar, mas tinha a própria consciência. Ele demorou tanto tempo para chegar onde estava, a custa de tanta sanidade mental e física, que sempre se policiava para ser perfeito e agradar as pessoas. Para ele, impor limites era como receber uma chicotada do batedor taoísta de seu líder.
— Mo Tian, você não sabe da maior!
— Estou tão ocupado, lá vem… — Ele olhou de soslaio e sorriu, dando olá para uma das servas que trabalhava na cozinha. Mo Tian devia dar uma bronca por ela ter saído de sua posição, mas normalmente frases como “você não sabe da maior” terminavam com algum boato ou fofoca… e isso ele não poderia perder. — O que aconteceu?
— Não conta para ninguém!
Mo Tian não podia prometer isso, mas todas as pessoas amavam tê-lo como confidente. Não era sempre que encontravam um homem que se importava com conversas sussurradas. Mas ele se interessava – aquilo era uma arma poderosa e subestimada. Então, Mo Tian sorriu e ajeitou a franja molhada sobre a faixa preta que sempre estava na testa, escutando quando ela se aproximou para sussurrar:
— Sabe quem desceu o Pico Jinxiuhua dessa vez, junto com os outros cultivadores? — Ela colocou a mão em forma de concha em cima da boca, sussurrando alto. — Algumas meninas da cozinha viram alguns deles chegando, voando em espadas. E sabe quem estava junto? O irmão jurado de Song Ning, Liu Jin-Daozhang! As roupas brancas dele são inconfundíveis!
Mo Tian sentiu algo ruim preenchendo o seu peito. Se ele já estava ruim antes, agora havia piorado.
— Jura? Nossa… Ele estava em reclusão faz quanto tempo? Um ano? — Forçou um sorriso, tentando fingir que compartilhava da animação.
— Três anos — ela corrigiu, cobrindo as bochechas coradas com as mãos. — Ele quase nunca vem, mas esse ano ele resolveu participar do Festival das Lanternas. As meninas estão empolgadas. Quem sabe o que ele vai pedir? Quem sabe… ele não repara em uma de nós?
Cultivadores reparando em servos… só se for para fazer obscenidades e descartar depois. Mas, rá! Eles são tão puros para isso… Mo Tian pensou com ironia, mas esse comentário não iria passar pelo seu filtro. A garota estava tão sonhadora diante de si que ele não teve coragem de arruinar uma esperança genuína.
— Se existe uma chance, ela com certeza acontecerá essa noite. Trate de se arrumar e ficar bem bonita, hein? Não tem como não reparar em você quando usa maquiagem e aqueles vestidos transparentes.
Ela deu um empurrãozinho no braço dele, sem graça.
— Se você fosse um cultivador, eu já teria investido...
— Mas sou só um servo, tão pobre quanto você — Mo Tian continuava sustentando o sorriso, mesmo que seu pensamento fosse: E, mesmo que você tenha se esquecido, eu sou um forasteiro de Aki.
A moça o ignorou:
— Poucos homens são tão atenciosos, sabia? E bonitos. Como você ainda não é casado?
Foi a vez de ele dar um empurrãozinho de leve em seu ombro, fechando o sorriso, mas ainda sustentando uma expressão divertida.
Porque, de novo, eu sou alguém que nasceu num clã que quase destruiu Lanhua...
— Eu estou esperando a pessoa certa cair do céu — respondeu, erguendo uma sobrancelha. — Ei, você não deveria estar preparando a sopa de lótus para a barraca?
Assim que ela se afastou, outra mulher veio em sua direção. Ela tinha cabelos negros, olhos severos por detrás dos óculos, e segurava uma caixa com a decoração habitual do jardim. Mo Tian tinha ainda mais familiaridade com essa. Era sua melhor amiga. E para ela estar com aquela cara azeda…
Mais problemas…
Mo Tian tinha pena dela. Seu espírito parecia se contorcer em tensão a cada minuto que se estendia, afinal, ela era a responsável por supervisionar o planejamento de Mo Tian. A mediocridade não só não era aceita, como era condenada e punida. Xiang Dao não poupava garotas como Yawen Chen, para ele era indiferente. Inclusive, ele amava usar aquele maldito chicote nelas…
Bom, pelo menos tinha uma boa notícia para alegrá-la. Yawen Chen era apaixonada por Hua Jin. Apesar de ele ser irmão juramentado de Song Ning, outro cultivador amado por Lanhua, ele aparentava ser realmente uma boa pessoa de ótimos princípios. Mesmo que andasse com Song Ning…
— Precisa de ajuda, A-Chen? — Mo Tian se ofereceu, mesmo que tudo o que seu corpo pedisse naquele momento fosse uma cama.
Yawen Chen crispou os lábios.
— Onde está o ornamento de jade do coelho? — Ela o cortou, olhando ansiosamente para a plataforma central.
Oh, não. O rosto de Mo Tian se contraiu em sofrimento, e por pouco não se deu um tapa. O ornamento era uma estátua de coelho muito rara e preciosa. E ela era essencial – sem a estátua no pedestal, o ritual de abertura não poderia ser iniciado. Então, o espírito do Celestial Coelho não traria bênçãos e prosperidade para todos. Xiang Dao seria capaz de brandir o batedor na frente de todo mundo.
E então… ele seria…
— Você esqueceu, Tian-Tian… — A mulher arregalou os olhos ao constatar a verdade na expressão do amigo. — O que está esperando parado aqui me olhando com essa cara de tonto? Vai pegar, antes que o mestre perceba! Eu vou cobrir você.
— Muito obrigado, Yawen Chen, eu estou indo lá agora mes…
Ela jogou as caixas sob os braços de Mo Tian de repente, o desequilibrando.
— Se bem me recordo, isso deveria ficar no depósito. Aproveite e guarde para mim lá. Agora, vai! Não demore!
Continua...
No próximo capítulo...
Mo Tian precisa encontrar o ornamento do Coelho, mas a missão se torna mais difícil do que imaginava. Em meio ao desespero de uma corrida contra o tempo, uma promessa crucial é feita ao Celestial Coelho.
No próximo capítulo: "Trezentos Pulos"
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Beijos felinos,
Mork
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