Pela primeira vez em anos ele havia dormido por mais de oito horas seguidas e parecia ótimo! Essa era a sua realidade de agora em diante, ele trabalharia à noite na boate e teria o dia inteiro livre, poderia acordar tarde, passear durante o dia, conhecer gente nova e se divertir um pouco, mas primeiro ele tinha que tirar o último estorvo de seu caminho, o seu emprego de merda. 

Ao chegar no escritório, Ian foi recebido com olhares estranhos, as pessoas pareciam surpresas em vê-lo tão arrumado, com feições descansadas, postura ereta, até parecia outra pessoa. 

— Resolveu finalmente aparecer ein?! — gritou uma mulher de estatura mediana vestindo um terno vermelho — Você não tem mais telefone?! Tudo bem se atrasar um dia ou outro, mas custa avisar?! E o que diabos você estava fazendo para chegar quase na hora do almoço?! 

— Bom dia para você também, Verônica — respondeu Ian com um sorriso sarcástico não habitual. — Vejo que as coisas continuam muito ruins com o seu divórcio, por isso continua jogando toda essa merda na gente. 

— É o quê?! — Se antes o rosto de Verônica já estava irritado, agora parecia que estava prestes a explodir. — Quem você pensa que é para falar assim comigo?! 

— A pergunta certa é, quem você pensa que é para tratar todo mundo como lixo?! — retrucou Ian sentando-se em sua cabine e recolhendo as suas coisas — Sabe de uma coisa, Dona Verônica, você pode ser a proprietária dessa empresa, mas não é dona das pessoas que trabalham nela, esse seu papinho de "líder" que, na verdade, só quer nos sugar até a última gota é ridículo! 

— Vai se foder, Ian! — rosnou Verônica já fora de si. — Trate de fechar essa sua maldita boca e compensar por todo esse atraso de hoje! 

— Vai se foder você! — disse Ian batendo na mesa — Talvez uma boa foda melhore esse seu humor! Que se foda você, essa empresa e todos esses seus cachorrinhos que fazem tudo por você abanando os rabinhos mesmo sendo tão maltratados. Eu me demito! 

Verônica deu uma risada alta e estridente. 

— Você o quê? Tá comendo bosta? Acha que um merda como você pode se dar o luxo de se demitir assim? Você ainda tem que cumprir o aviso prévio, queridinho. 

— Enfia o aviso prévio no cu, Verônica! Eu não fico aqui nem mais um dia — Ian se levantou e apontou para uma porta lateral — Estou indo no RH agora mesmo, nem preciso explicar nada, não é? Tenho certeza que eles já ouviram tudo. 

— O setor jurídico entrará em contato em breve! — gritou Verônica. 

Ian deu as costas e levantou a mão direita com dedo do meio à mostra e só baixou quando bateu a porta do RH. 

O toque alto do despertador acordou Ian que olhava atordoado pro quarto ainda escuro, mas a satisfação do sonho bom que acabara de ter ainda fazia seu coração bater como louco, tudo parecia tão real, exceto pelo comportamento do rapaz, ele nunca seria capaz de dizer e fazer tais coisas, mas ao menos ele seria capaz de se demitir educadamente. 

Enfrentando o ônibus lotado de sempre, sem nem conseguir tomar café direito antes de sair, Ian foi para o escritório e mesmo acordando antes do Sol nascer e pulando etapas ao se arrumar o trânsito foi implacável e devido ao engarrafamento ele chegou atrasado, novamente. 

Por sorte o jovem rapaz conseguiu se esgueirar até a sua mesa enquanto todos trabalhavam diligentemente e ninguém viu Ian chegando, quase ninguém. 

— Atrasado de novo, hein? — perguntou baixinho a moça que sentava na mesa ao lado de Ian. 

Ian fez apenas um sinal de silêncio com o dedo sobre os lábios e depois juntou as mãos implorando para que ela não contasse a ninguém. 

A jovem moça sorriu, mostrando seus dentes alinhados, uma leve covinha no canto da boca, seus olhos quase se fecharam com o movimento. 

— Está bem, vou fingir que não percebi — disse ela docemente — mas almoçamos juntos hoje. 

Ian pressionou os lábios um no outro, ele não pretendia ficar até a hora do almoço, mas também não queria que descobrissem que ele chegou atrasado no dia em que pediria demissão, além do mais o jovem rapaz não sabia como dizer não, negar um pedido ia contra a sua natureza. 

— Ok, mas tem que ser um lugar barato — cochichou ele. 

— Não se preocupe, é por minha conta hoje, meu vale-refeição acabou de ser recarregado! — Ela sorriu enquanto enrolava a caneta em seus cabelos castanhos encaracolados. — OK? 

Ian apenas assentiu sem pensar muito sobre aquilo e começou a organizar o seu trabalho, sua mente estava cheia, mas ele estava decidido que após o almoço ele iria no RH pedir demissão e dando tudo certo esse seria o seu último dia nesse emprego de merda. 

A manhã foi agitada, todos os problemas apareceram de uma única vez e todos ficaram saturados de trabalho, principalmente Ian que não conseguia negar ajuda aos colegas e por isso sempre acabava fazendo coisas que não eram da competência dele, mesmo sendo um simples assistente administrativo sem ensino superior, ele era muito inteligente e aprendia os procedimentos muito rápido, assim como achava soluções simples para problemas complexos, além do mais ele era um funcionário antigo, ele já estava há dez anos naquela empresa. Havia começado como office boy entregando documentos aqui e ali, depois passou a trabalhar na recepção até que finalmente chegou a assistente administrativo, ele já havia passado por todos os setores da empresa e tinha um vasto conhecimento sobre as operações, mas sem um diploma ele não podia ser promovido, ao menos era o que sua chefe sempre dizia. 

Fazer faculdade sempre foi uma vontade de Ian, porém um simples órfão tinha que sobreviver primeiro, por isso assim que completou 18 anos ele procurou um emprego com a esperança de poder trabalhar e estudar, porém, a vida não era tão simples seu salário não cobria todas as despesas, então ele sempre teve dois empregos e alguns bicos e com isso não restava tempo para estudar. Uma certa vez ele até tentou uma faculdade EAD, mas foi um total fracasso, ele não conseguia entregar nenhum trabalho na data certa e sempre perdia as datas das provas, com isso ele acabou desistindo e sem curso superior, sem promoção, por mais que ele tivesse o conhecimento sem aquele pedaço de papel ele não era nada. 

Sair para o almoço foi um grande alívio, Ian finalmente podia respirar um pouco e a companhia de Samanta era bem agradável, eles comeram e conversaram, contudo, ela pareceu um pouco triste quando Ian contou a novidade. 

— Se você tivesse me dito que hoje era o seu último dia, eu teria levado você para comer em um lugar melhor — disse Samanta chateada. 

— Está tudo bem, eu que deveria te pagar um almoço por me acobertar — disse Ian sorrindo. 

— Na verdade… — disse Samanta meio tímida — Eu queria te pedir uma coisa. 

Ian olhou assustado para a doce Samanta a sua frente, um pouco decepcionado, porém, não estava surpreso, quando foi que alguém fez algo por ele sem querer algo em troca? Ele estava muito absorto em seus planos de demissão para pensar sobre isso mais cedo, mas agora tudo fazia sentido. 

— O quê? — perguntou Ian tentando disfarçar sua decepção. 

— Você pode me dar o seu contato? — Samanta olhava fixamente para algum ponto na mesa e suas bochechas pareciam corar levemente. 

— Você já tem o meu contato. — respondeu Ian confuso. 

— Apenas o do escritório, eu quero o seu contato pessoal… para gente continuar se falando fora do trabalho, sabe? — Samanta parecia que iria explodir de vergonha a qualquer minuto. 

— Ah… Claro — Ian não imaginava que o favor podia ser esse, ele não tinha amigos e não namorava ou flertava há muito tempo, então ele não tinha o hábito de trocar números com as pessoas, mas ele ficou feliz que Samanta queria ser amiga dele, agora ele teria tempo para ter amigos.

Eles trocaram números e voltaram para o escritório, no elevador Ian encarou seu telefone onde só tinham três números salvos o de Mariano, o de Dante e agora o de Samanta, chegava a ser hilário que seus únicos contatos eram do seu chefe, do dono da máfia e uma colega de trabalho, quase ex colega de trabalho, a porta do elevador abriu e ele saiu indo em direção ao RH, suas mãos suavam frio e seu coração estava muito acelerado, o ar ficou pesado demais para poder respirar e após dez minutos encarando aquela porta, Ian voltou para sua mesa para terminar o trabalho que tinha acumulado.

Hole é um termo de origem inglesa com o significado de "cova", "buraco", sendo utilizado para indicar a existência de pontos débeis em uma estrutura defeituosa de peões.