15 de junho de 2025. Santa Madalena do Norte, PB.
Eram quase oito horas da noite quando Gregório acordou, surpreso por ter dormido tanto. Seu corpo estava dolorido, resultado do chão frio daquele abrigo temporário. Por hábito, pôs a mão no bolso e tentou puxar o celular, apenas para lembrar que Damiano havia quebrado o aparelho para evitar rastreios.
O caçador gelou ao olhar para o próprio pulso. Ergueu-se em um pulo, a urgência latejando no interior. Ele precisava contar sobre o rastreador no bracelete. Sobre ser um prisioneiro da Central. Sobre nunca sequer ter pensado em fugir e ter esquecido o apetrecho. Torcia para o seu histórico de sair para beber durante as missões e não ficar preso às pousadas designadas comprassem algum tempo. Mas assim que encontrou Damiano e Isabel abraçados no corredor, Gregório se sentiu um invasor.
O caçador não era o tipo que sentia ciúmes, achava a coisa toda meio banal, um reflexo de possessividade que ele não tinha, mas ao ver aquele abraço Gregório se contraiu, teria saído da casa se não fosse a urgência do recado que precisava dar.
Cada vez que abriu a boca, entretanto, nada saiu. Não como planejava.
Quando ele ouviu a proposta de Damiano, foi como se tivesse retornado ao próprio corpo com um balde de água fria.
— A gente sempre pode usar o garoto de moeda de troca.
Gregório encarou Damiano esperando que o necromante risse, ou que soasse algum anúncio alto de que estava participando de uma grande pegadinha, daquelas que passavam na TV, mas o outro continuava sério. Por Deus, estavam mesmo discutindo a possibilidade de sequestrar Hugo?
Ele parece o tipo de cara que não saberia fazer uma piada nem pra salvar a própria vida, pensou e então respirou fundo.
Prós de concordar com aquela ideia maluca: Hugo era inexperiente, capturá-lo não seria difícil e provavelmente o Palomo-pai concordaria com qualquer coisa para deixar o garoto são e salvo. Contras: todo o resto.
Sua foto iria parar nos jornais, sabe-se-lá com que tipo de manchete. Ele seria, sem questionamento, ser transformado em um serial killer pela mídia, ou um terrorista, ou até um assassino de criancinhas. Gregório já conseguia imaginar até a voz de um daqueles jornalistas-açougueiros anunciando o estado das buscas da polícia. Damiano entendia esse tipo de risco, não podia entender, ninguém tinha uma foto dele, ou de Isabel, mas o caçador tinha documentos nas mãos da Central, todos os seus registros originais estavam em algum lugar da sede, e quem hoje era alguém sem um RG?
— Você só pode tá me zoando — murmurou depois de algum tempo.
— Na verdade, quanto mais penso na ideia, mais gosto dela — Damiano respondeu. — Claro, não podemos fazer isso de qualquer jeito.
— Eu não vou discutir como sequestrar um garoto, está fora de questão.
— Bem, você pode sempre ir embora. Voltar ao que estava fazendo antes da Central, eu não ligo.
Gregório fechou as mãos em punhos e trincou os dentes. Para ele, não existia uma vida antes da Central, ou ao menos não existia uma vida digna de ser mencionada. Ele era apenas um garoto quando o Humberto Ferraz entrou no orfanato e o adotou. Na época, ele achou que tivesse ganhado na loteria, hoje, sabia que a adoção tinha sido o seu maior azar.
Aquele mundo, a CEBRACON, era tudo o que conhecia, mesmo que ele detestasse o lugar, o pagamento fosse escasso e às vezes atrasasse. Caçar vampiros, lobisomens, fantasmas e todo tipo de criatura da noite era algo no qual ele era bom. Ele não ia mudar de profissão aos sessenta anos, estava fora de cogitação.
— Eles não me deixariam ir — murmurou. — E hoje tem televisão, sabe? Pior, existe internet! Os caras lá de cima vão jogar meu nome como procurado pro Brasil todo e aí eu vou fazer o quê? Não, nem fodendo que a gente vai sequestrar o garoto.
Gregório se levantou da mesa, que mais era um tampo de porta sobre duas pilhas de escombros, e tentou se acalmar. Nas poucas horas que tinha convivido com Damiano, ele já tinha perdido a conta de quantas vezes havia pensado em socá-lo. Como Isabel era capaz de admirar o homem era um mistério para ele.
— Vou sair — anunciou por fim, antes que cedesse à vontade de trocar socos com o necromante e terminar, possivelmente, com todos os ossos de seu corpo virados do avesso.
A sensação de quando Damiano havia tentado controlá-lo ainda queimava em seu estômago. Um incômodo permanente, uma vontade de vomitar que não o abandonava, como se a comida se recusasse a ficar dentro de seu sistema e, como se não bastasse, havia aquela sede queimando sua garganta. Gregório queria estraçalhar algo, sentir as mãos banhadas em sangue e se satisfazer com o pulso de algo perdendo velocidade.
O pensamento o enojava e o excitava na mesma medida.
No jardim tomado pelo mato, ele olhou para o céu, para o círculo prateado. A lua com pouco mais de três-quartos cheia anunciava o quanto faltava para o desmorto dentro de si ganhar força. Afinal, todo vampiro era mais forte na ausência da luz e, mesmo que sua relação com aqueles mortos-vivos fosse confusa, ele não a negava, não mais.
Cogitou ir à cidade, usar seus últimos centavos com bebida, ou talvez até retomar o hábito de fumar, apenas por uma noite. Talvez despistasse a Central assim. O casarão e seus arredores o deixavam inquieto, como observar um mar calmo demais antes da tempestade, como as nuvens carregadas se aproximando e o eco distante dos trovões, mas sua pele estava seca, por enquanto.
Então, o rangido da portinhola o pôs em alerta e ele retirou uma das glocks do coldre.
O escuro raramente o incomodava. Seus passos eram silenciosos, dados com precisão no chão. Gregório usou as árvores para se encobrir na penumbra, aproximando-se da cerca pela lateral. Ouvia dos insetos ao seu redor até a respiração suave de Damiano dentro da casa, o incômodo que sempre sentia por ter sentidos aguçados se tornava uma vantagem estimada. Tinha perdido as contas de quantas vezes aquilo o tinha deixado vivo.
— Quem está aí? — uma voz grave rasgou o ar.
Havia uma cadência antiga nas sílabas, quase ancestral, mas Gregório não respondeu. De onde estava, podia ver uma silhueta curvilínea e baixa, a pele negra e o cabelo armado em um black. Algo naquela figura o fazia querer se curvar, como se estivesse diante de uma divindade, como se os séculos a cobrissem com um véu tecido com os fios do próprio tempo e ele fosse tragado pela figura. Em seus quarenta anos trabalhando para a Central, nunca tinha se deparado com vampiros tão antigos, os anciões eram raros e organizados, estavam infiltrados até mesmo em setores da política, movendo os fios de suas marionetes mortais, garantindo o rebanho do qual se alimentavam.
A mulher, ele assim julgava que era, não se moveu e Gregório acreditou por um segundo insano que o tempo havia parado. Ele, com a arma apontada na direção dela, e ela, de costas, imóvel, um predador à espera de dar o bote. Então, como se feita de fumaça, a vampira se moveu, tão lépida que mesmo sua visão não podia acompanhá-la.
Em um piscar, estava longe, noutro, segurava o cano da glock como se o desafiasse a puxar o gatilho.
— Você fede a caçador.
Talvez por que eu seja um, pensou, mas decidiu que aquela resposta era estúpida.
— O que você quer aqui, vestuta?
A vampira sorriu, exibindo dois caninos brancos e afiados, parecendo aprovar o uso do termo para os vampiros antigos, aqueles que não pertenciam às Américas. Gregório engoliu em seco involuntariamente e colocou o dedo no gatilho. Devagar, ela abaixou a arma com o indicador, encarando-o como se o desafiasse a atirar.
Ele não atirou.
Estúpido, ralhou consigo mesmo.
— Não vai precisar disso, damphyr.
Aquela palavra. Aquele maldita palavra. Apesar de tê-lo salvado mais de uma vez nos últimos tempos, Gregório a odiava. Detestava como aquilo era dito, como o fazia se sentir, como soava estrangeira, uma espécie de aberração. Nem-homem-nem-monstro.
— Você não precisa fazer essa cara, você é o que é — a vampira falou outra vez. — Se aceita o conselho de uma estranha, quanto mais cedo aceitar, melhor será.
— Eu não sei do que você está falando.
— É transparente, damphyr. Como água. Mas eu não vim aqui para isso… Pense assim, se você não fosse quem é, estaria morto agora. Eu sinto o cheiro da Central em você.
— O que você quer? — Gregório a interrompeu.
A vampira arqueou uma sobrancelha e deu um meio-sorriso que parecia uma reprimenda. Um “é assim que se fala com os mais velhos?” ou ele estava enlouquecendo. Àquela altura, a loucura soava uma opção mais razoável do que as últimas horas.
— Onde está o necromante? — ela perguntou, em tom de comando.
Ele não simpatizava com Damiano, na verdade, o feiticeiro podia rastejar de volta ao buraco de onde tinha saído e ele não iria se importar, mas Gregório detestava aquele tom. Arrogante, exigente, com ameaças sutis e avisos velados.
— Eu não sei do que você está falando.
Ela revirou os olhos e exalou um suspiro, claramente entediada pela sua atitude. Mas ao invés de outra ameaça, como ele esperava, a vampira disse apenas:
— Eu não estou aqui para ameaçá-los. Devo um favor ou dois ao necromante e detesto dever para alguém como ele, então… onde ele está?
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