Antes que pudesse responder, Gregório ouviu os passos atrás de si.
— Agradeço a preocupação, Gregório. Mas Irene é uma velha conhecida.
O tom de satisfação e o sorrisinho no canto dos lábios do necromante fazia Gregório querer socá-lo. Na verdade, tudo no feiticeiro lhe tirava a paciência.
— Você não precisa anunciar o velha por aí — a vampira retrucou, fingindo-se irritada.
— Venha, vamos falar de negócios — Damiano rebateu, mantendo um sorriso cordial. Todavia, Gregório começava a perceber as falhas na máscara que o necromante usava, a forma como todos os sorrisos eram breves e cada gesto parecia mecânico.
Quando Irene passou por eles e foi em direção às ruínas do casarão, Damiano gesticulou para que os seguisse e, ainda que tivesse parecido apenas um convite, o caçador se viu acompanhando a vampira secular e o feiticeiro de volta para dentro a contragosto.
Torcia para que não discutissem ideias de como sequestrar o garoto dessa vez.
Assim que entraram, Irene franziu o cenho diante da sala aos pedaços. Seus dedos roçavam as superfícies dos móveis e seus olhos percorriam cada pedaço do lugar.
— Charmoso o que você fez com o lugar — murmurou após algum tempo.
Damiano cruzou os braços à frente do corpo, mas Gregório o viu revirar os olhos.
— Por que você está aqui? — o necromante perguntou.
A vampira suspirou.
— Você tinha razão, a Central está de fato violando nossos acordos.
— Pera, pera, pera — o caçador interrompeu. — Como assim nossos acordos? A Central não faz acordos com vampiros.
— Por Deus, criança, quantos anos você tem? Cinco? — Irene o repreendeu. — É óbvio que a Central faz acordos com as várias famílias, como você acha que ela mantém o controle do país inteiro?
Gregório trincou os dentes e fechou as mãos em punhos, mas permaneceu calado. Quase quarenta anos de serviço e nunca tinha ouvido falar sobre tais acordos, sabia inclusive que muitos caçadores operavam em uma política de tolerância zero com vampiros, a mera ideia de que a CEBRACON podia estar operando com acordos causaria revolta.
Mesmo ele, que não acreditava que um vampiro era necessariamente irracional e monstruoso, estava tendo dificuldades para assimilar a ideia.
Damiano o encarava, com uma curiosidade apática em seu rosto. O caçador descobriu que detestava aquele tipo de olhar. Como se aquilo fosse um jogo e o necromante estivesse executado a jogada perfeita. Mas eles não eram peças em tabuleiros.
E ele se recusava a ser mero peão.
Gregório agradeceu quando então Isabel apareceu na sala, vestida com uma blusa e uma saia de algodão que tinha saído direto da feirinha para turistas de Santa Madalena. Era só encontrar um chapéu grande e ela conseguiria facilmente se passar por uma gringa de férias na praia, branca do jeito que era...
— Ah, então esta é a sua infame orquídea da noite — A voz de Irene interrompeu seus pensamentos. Ao mesmo tempo que Isabel girou sobre os calcanhares e sorriu perguntando:
— Como estou?
— Ela não é minha — Damiano respondeu à vampira mais antiga, defensivamente.
Todavia, Gregório o viu apertar um anel em sua mão. Em seu anelar, mais precisamente. Eles tinham sido noivos?, pensou, abafando um riso amargo. Era óbvio para quem quisesse ver que havia uma devoção rara entre os dois, um afeto que pincelava o peito do damphyr com o verde da inveja. Por Deus, apesar de achar o homem irritante, ele não podia negar a atração que sentia por ambos. Apenas sua sorte, se encantar por duas pessoas claramente comprometidas uma com a outra. Isabel podia não lembrar, mas o necromante certamente não tinha esquecido.
Por um segundo, Gregório quase se compadeceu. Devia ser um tormento viver naquela situação. Muito pior que seu dedo podre para paixões de uma noite só.
— Orquídea da noite? — a voz da Montalverne era tímida e curiosa ao perguntar.
— Dama da noite — Irene explicou. — É um cacto que só floresce no escuro. Bastante apropriado, não?
Isabel riu baixo. Balbuciando as palavras, experimentando-as na boca.
— Orquídea da noite — proclamou por fim. — Gostei.
— Também é uma planta usada em alguns rituais antigos... — A vampira mais antiga prosseguiu, como se falasse para si, com um pequeno sorriso no rosto.
— Que tipos de rituais? — A voz de Isabel tinha uma curiosidade genuína, quase infantil.
Gregório notou o sorriso da vestuta se alargar. Como se estivesse esperando a pergunta durante todo o tempo.
— Purificação, equilíbrio, reencontrar-se consigo mesmo. Esse tipo de coisa. Dizem que é um ingrediente poderoso.
— Ah, claro! — Damiano resmungou.
— O que foi? — Gregório perguntou.
— Acho que sei como tirar a Isabel da cidade, Irene tem um ponto. E você veio aqui pra isso, não foi?
A vampira mais velha riu, claramente satisfeita consigo mesma. Vampiros, Gregório pensou, por que não podiam ser mais diretos com o que queriam?
— Devo confessar que demorei a reconhecê-lo. Quantos anos se passaram? Sessenta? — Irene tamborilou os dedos sobre a mesa. — Não esperava que um humano fosse teimoso o suficiente para conseguir se manter vivo por tanto tempo — ela suspirou. — De qualquer forma, um débito é um débito.
— Eu não estou entendendo nada — Isabel interveio.
— Somos dois — Gregório complementou, agradecendo mentalmente. Se o necromante tinha contatos com vampiros mais antigos que a invasão, ele começava a acreditar que a Central não tinha ideia do problema que o homem podia ser.
— Digamos que o Necromante vinha me auxiliando há algumas décadas, eu sempre achei que se tratava de um vampiro, na verdade.
O necromante deu de ombros e Gregório se perguntou, não pela primeira vez, há quanto tempo ele estava vivo e como. Existiam rumores, é claro, de feiticeiros como ele, que drenavam a vida de outros homens para estender suas próprias vidas. Mas se sua memória estava correta, os relatos apontavam aquela técnica como um paleativo. Era como apostar com a morte e, no fim, ela sempre vencia.
Então, Damiano se ergueu. A postura lembrava Gregório de um animal prestes a atacar, exibindo as presas antes de correr, mesmo que o necromante movesse apenas os dedos, abrindo e fechando a mão. O meio-vampiro o viu exalar um suspiro, erguer a palma como se todos já não estivessem em silêncio e declarar:
— Temos companhia.
Que não seja a Central, o caçador repetiu em sua mente como oração. Mas conhecia sua própria sorte. Era como Mamonas costumava cantar em sua juventude, se desse uma chuva de Xuxa, no colo dele cairia Pelé. Se bem que hoje, as duas opções soavam péssimas. Porém não tão ruins quanto sentir o cheiro do gás feito à base de alho no ar, sufocando-o. Olhou para o lado, Isabel apertava os olhos e abria a boca, com um grito preso na garganta, Irene cobria-se e com um aceno breve e ríspido desapareceu na fumaça, correndo tão rápido que ele não podia distinguir seu rastro.
Damiano por sua vez tinha os olhos estreitos e fixos em Isabel. Ele puxou um pano do bolso e entregou para ela, passando a mão sobre os ombros da vampira.
— Vamos nos separar — murmurou. — Igreja, dia de São João à meia-noite. Fui claro?
— E o que eu digo pra eles? — Gregório conseguiu dizer, apesar da voz rouca e a garganta arranhando.
Tossiu duas vezes antes de ouvir resposta, cobrindo o rosto com as mãos, como se pudesse impedir a fumaça de alho de entrar no seu sistema. Céus, a Central queria matá-lo?
— Que foi capturado, que eu o controlei, não sei. Mas se ficarmos juntos vai ser pior. Te vejo na Igreja?
Se estivesse com a mente sã, Gregório poderia pensar em mil maneiras de responder à pergunta como se fosse um flerte. Mal se conheciam e o necromante já queria vê-lo na Igreja? Porém a tosse irrompeu outra vez e seu peso pendeu sobre uma perna. Vagamente, viu Damiano hesitar, colocando Isabel em seus braços.
Acenou afirmativamente com a cabeça, uma única vez, antes de suas pálpebras pesarem e seu corpo pender para o lado.
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