A menina havia passado a noite pensativa. Depois de conversar com Marcos sobre o que tinha acontecido, o dono do circo garantiu que falaria com os rapazes da segurança, e no dia seguinte não deixariam entrar no espetáculo ninguém que batesse com a descrição daquela mulher.
Mas as preocupações na mente de Liza iam muito além disso.
Então existiam outros usuários de magia? E por que isso era sinal de perigo para ela? A mulher é quem havia sido responsável por seu bloqueio? Ela tinha poderes, então? Era uma usuária também?
Com tantas questões em mente, não conseguiu descansar muito para a próxima apresentação.
A cada cidade em que paravam, o Circo do Amanhã se apresentava pelo menos uma vez a cada turno, para cobrir o máximo de público possível. Normalmente havia um intervalo entre os shows, mas naquela ocasião precisariam sair antes do previsto, então tinham um espetáculo logo na manhã seguinte ao outro, que fora à noite.
— Sono ruim? — perguntou Pérola, a domadora de animais. Seus olhos grandes, de um castanho vivo, revelavam uma legítima preocupação.
— Algo do tipo — respondeu a mágica, sem se alongar muito. Combinou com Marcos que não comentariam com os outros sobre os acontecimentos da noite anterior, para evitar muito alarde. Se de repente os artistas soubessem que não tinham uma garantia de segurança por sua mágica depois de tanto tempo, talvez se estressassem desnecessariamente. Liza também imaginava que o apresentador tivesse inventado alguma desculpa para a mudança no truque da banheira.
Estavam atrás das cortinas, mais uma vez aguardando o início de outra apresentação. Com a falta de sono, as preocupações na cabeça e as botas, que agora pareciam ainda mais desconfortáveis, Liza se sentia exausta. O que, claro, não impediria que ela fizesse um bom trabalho. Era uma artista profissional, afinal de contas, e já tinha se apresentado em condições piores.
Mas ainda era bem ruim.
— Bom dia, gente bonita! — enunciou Marcos, entrando no palco. Os shows do turno da manhã eram os únicos momentos em que começava cumprimentando a plateia. Segundo ele, as pessoas achavam muita falta de educação quando não o fazia. — Desde que eu era pequeno, sempre quis ir ao circo, sabiam? Mas minha mãe nunca deixava. — Assim como na noite anterior, sorria e gesticulava para o público, agora era composto por mais crianças, que já chegaram ali animadas. — Então, combinei com uns amigos da escola e fomos escondidos, fingindo que tínhamos um trabalho em grupo ou qualquer coisa assim. Mas não sigam meu exemplo, hein! — Risadas do público, e tudo parecia ir bem até ali.
Com exceção do sentimento ruim que crescia no peito de Liza.
Algo estava errado. Pairava no ar alguma coisa diferente, alguma coisa... nauseante. Olhou em volta, mas ninguém mais parecia perceber. Lembrou-se novamente da mulher do outro show, e olhou para o público, em busca dela. Porém, com as luzes em Marcos, não conseguia enxergar tão bem as pessoas.
Então, cheiro de fumaça.
— Rodrigo! — chamou a mágica, num sussurro alto, e o rapaz foi até ela. — Tá sentindo esse cheiro? Tem alguma coisa pegando fogo.
Rodrigo, porém, a encarou com um olhar indagativo e confuso.
Não era possível que estivesse tão louca.
— E aí, quando perguntei se podia fazer o mesmo algum dia, o cara do circo... — dizia Marcos, até que parou no meio da fala, e todos os artistas olharam para o palco. O apresentador normalmente não se abalava por nada, mesmo quando o público reagia mal.
Mas logo ficou claro o motivo da interrupção.
Um homem branco e esguio, usando luvas, chapéu coco e sobretudo que, inclusive, eram bem inadequados para o clima, parou em pé entre Marcos e a plateia.
Na mão esquerda, estendida, uma labareda queimava.
O apresentador ia dizer algo, mas só conseguiu tempo para desviar, pulando para o lado quando o homem arremessou uma bola de fogo.
Mas não era em Marcos que ele estava mirando.
As cortinas diante de Liza se incendiaram e, mais rápido do que se esperaria, o fogo começou a se espalhar. Imediatamente gritos de desespero se tornaram audíveis, e as pessoas da plateia começaram a correr.
Os artistas começaram a se movimentar também, mas a mágica estava paralisada, encarando o homem de chapéu que, agora, sorria para ela.
— Ridículo — disse ele, preparando outra bola de fogo para ser arremessada na direção da jovem.
Porém, no instante seguinte, a magia se apagou, e o homem ficou atônito. Antes que pudesse expressar sua surpresa, foi atingido por um soco, que tirou seu equilíbrio, seguido de uma banda, que fez com que caísse no chão e derrubasse o chapéu.
— Eu disse que era perigoso — declarou a mulher que havia conversado com Liza na noite anterior. As roupas e maquiagem eram as mesmas, com a única diferença de que agora seus cachos loiros estavam presos em um rabo de cavalo.
— O que tá acontecendo?!
— Ainda não deu pra entender? — retrucou a mulher, se virando para encará-la.
— Por que tem uma bloqueadora aqui? — O homem havia se levantado novamente, o cabelo ralo agora exposto. Mais rápido do que antes, preparou outro feitiço incendiário e o arremessou na direção da mulher, que desviou, fazendo com que a arquibancada fosse atingida.
A mulher rolou na direção de Liza, e correu para o seu lado.
— Se não quer que ele destrua o circo inteiro, me ajuda.
— Mas eu não...
— Improvisa, minha filha. Não é artista? — questionou, direcionando um meio sorriso para Liza. Olhando de perto, a menina conseguiu ver, pela primeira vez, que seus olhos eram verde menta.
Antes que elaborasse uma resposta, ambas viram o homem preparando outro feitiço, e a mulher se colocou em guarda.
— Não consigo anular todas as magias dele, mas se tiver um pouco de distração, consigo me aproximar o suficiente — disse, começando a correr. A mágica não teve tempo de fazer muitas perguntas, mas decidiu que não importava muito naquele momento.
Tinha um circo para salvar.
Pegou sua cartola e a arremessou na direção do homem, que revidou lançando um feitiço na direção do chapéu.
Quando o atingiu, uma grande nuvem de fumaça se formou. Rapidamente, vento percorreu o lugar, dissipando-a, e Liza também correu.
Lançou, então, uma saraivada de cartas de baralho na direção dele, que apenas as queimou com outro movimento. Deus, era a única coisa que ele sabia fazer?
O homem sorriu para Liza, triunfante, por ter percebido a diferença de experiência em combates com magia. Porém, a menina apenas sorriu de volta, certa de que ele nunca tinha ido a um de seus shows.
A mulher de cachos loiros foi teletransportada para trás dele e, com um único movimento de cotovelo, o atingiu na têmpora, fazendo com que caísse inconsciente.
— Abracadabra — disse, triunfante, enquanto encarava o corpo no chão.
— Eu achei que você fosse usar algo mais...
— Elegante?
— Isso.
Poucas pessoas haviam realmente se ferido no incêndio, o que era um alívio e uma sorte, mesmo que essa sorte tivesse toques de magia envolvidos.
Uma hora depois, alguns recebiam primeiros socorros, outros eram entrevistados e os artistas davam depoimento à polícia. Liza sabia que o Circo do Amanhã não estava tão em dia com a fiscalização no que dizia respeito à segurança, mas esperava que isso não gerasse uma grande complicação.
Ela, Marcos e a mulher estavam em um trailer, dessa vez do próprio Marcos, que havia entrado em uma discussão acalorada com a outra nos últimos minutos.
— Como disse que era seu nome mesmo?
— Susana.
— Ok, Susana, pode me explicar de novo por que quer levar embora a maior atração do nosso show?
Liza não tinha compreendido totalmente a explicação, mas entendera que Susana era uma bloqueadora, alguém no geral responsável por conter incidentes envolvendo magia. Depois que derrotaram o homem incendiário, ela o havia amarrado e posto em algum lugar fora do alcance da polícia, alegando que ele era de sua jurisdição.
— Liza tem poderes mágicos de verdade. E esses poderes deixam rastros. Além disso, eles se expandem conforme a idade, e ela já tem dezoito anos. Hoje foi só um cara de fogo, mas, se continuar fazendo magia de maneira irresponsável, amanhã pode vir algo pior.
— E se ela só parar de usar magia? — questionou Marcos, o que fez a menina levantar o olhar até ele. Modéstia à parte, sabia como o homem já considerava seus poderes parte essencial do show. Até no cartaz, Liza era a artista que aparecia em maior tamanho (depois dele próprio, é claro).
Além disso, mesmo com sua magia, fazer da arte um ganha pão não era fácil. Apesar dos anos de trabalho, o Circo do Amanhã não era tão grandioso no que dizia respeito a orçamento ou estrutura. Em períodos com menos shows, Liza via o dono do circo fazendo malabarismos (metafóricos, nesse caso) para conseguir fechar as contas, e tinha certeza de que perder uma atração não ajudaria em nada. Marcos estava colocando muita coisa em jogo com essa ideia.
Ainda assim, Susana apenas balançou a cabeça, assertiva.
— Sugerir isso é quase como pedir pra ela parar de respirar. Não só vai fazer mal a ela, como pode atrair ainda mais perigo. — A bloqueadora se virou para Liza, encarando o fundo de seus olhos. — O que ela precisa é aprender a ocultar seu rastro mágico e controlar melhor o próprio poder. E não dá pra treinar isso sozinha.
— Mas...
— Sei que você sabe dos riscos, Marcos — cortou Susana, se virando novamente para ele, e Liza vislumbrou um dos raros momentos de hesitação do dono do circo. — E sei que quer evitá-los.
O mestre de pista encarou o chão, ponderando. Então, se virou para Liza e se aproximou dela.
— O que você quer fazer, meu anjo? — perguntou, gentil, pondo uma mão em seu ombro. A menina encarou os olhos castanhos e vibrantes de Marcos, que exibiam uma rara cautela naquele momento. Ele estava preocupado, mas queria respeitar suas vontades mesmo assim.
A mágica pensou na sua vida até aquele momento. Marcos, Rodrigo, Pérola, Cuscuz, os irmãos Gomes, todos os artistas que não só conviveram, mas contribuíram diretamente para que se tornasse quem era, enquanto artista e pessoa. Nas apresentações, nas instruções que recebia, nos sorrisos e nas brigas dos ensaios, e em como, mesmo com tudo, sempre se ajudavam.
Então, se lembrou de novo do incêndio. Dos danos, dos primeiros socorros.
Do olhar assustado de Marcos.
— Vocês são minha família, e tudo que eu tenho — começou ela, hesitante, e variou o olhar entre o homem e a bloqueadora. — Mas é justamente por isso que não posso colocá-los em perigo. Sei que meu show é importante pra você, Marcos, mas se a Susana não estivesse aqui hoje...
Sabia que não era a resposta que ele queria ouvir. E, mesmo assim, o dono do circo apenas sorriu, compreensivo, provavelmente escondendo muito mais do que Liza imaginava atrás daquela expressão.
— Sabe que não é pra sempre, né? É só um período de estudos. E você vai poder visitar de tempos em tempos. — Susana entrava no lado do motorista no carro preto enquanto falava, e Liza adentrava o lado oposto.
— Estamos juntos há muitos anos. Não seria mais fácil de nenhuma outra forma — respondeu a menina, se sentando no banco do carona. Pelo reflexo do retrovisor, pôde ver então onde o homem incendiário havia ido parar, amarrado por cordas estranhamente brilhantes no banco de trás. Naquele momento, Liza percebeu que ainda não sabia o motivo dos ataques, em primeiro lugar, mas decidiu que perguntaria a Susana mais tarde. Algo lhe dizia que não deveriam conversar sobre isso ali, mesmo que ele estivesse inconsciente.
O sol já estava baixando no horizonte. A despedida dos outros artistas havia sido longa, com muito choro envolvido, principalmente de Cuscuz e Rodrigo. Já esperava um drama por parte do palhaço, mas Liza havia ficado surpresa com o rapaz da produção. Sempre tiveram uma relação muito boa, mas nunca imaginou que o homem fosse do tipo emocional.
Ouviu alguns discursos e recebeu longos abraços, além de um presente de Pérola que, conforme suas instruções, não deveria abrir até que chegasse à sua nova moradia. Com essas palavras, porque, segundo ela, Liza sempre teria apenas uma casa.
— Hm. Vamos, então — concluiu a mulher, ligando o carro e dando partida. A menina achava fofa a maneira como ela se preocupava, ainda que provavelmente não fosse admitir que essa era a razão de seus avisos.
— Eu achei que nosso transporte fosse ser algo mais...
— Mágico?
— Você sempre sabe o que eu tô pensando?
— São perguntas comuns — respondeu Susana, com um meio sorriso — Mas não, é só um carro normal movido a gasolina e força de vontade.
— Que chato — declarou Liza, tirando uma risada leve da mulher. Agora que os interesses estavam alinhados, era até fácil conversar com ela. — E seus poderes? O que você consegue fazer?
— Menos do que você, eu aposto.
— Sério? Mas você não teve treinamento?
— Tive, mas sou só uma bloqueadora. Meus poderes são diferentes de quem faz magia desde criança, como deve ser o seu caso. — Não havia nenhum ressentimento nas palavras de Susana ao dizer aquilo. Ainda assim, algo no ar deixou a menina incomodada.
— Como assim?
— Diferente de vocês, não nascemos com aptidão pra magia — respondeu a mulher, suspirando. Provavelmente tinha explicado aquilo muitas vezes — Recebemos pra poder exercer nossa função.
— Por escolha própria?
— Isso... é difícil responder. — Susana sorria agora, mas sua expressão era amarga. — De qualquer forma, deixa as perguntas pra quando a gente chegar lá. Com esse ânimo, você vai se dar bem na Instituição.
Liza ponderou um pouco sobre aquela resposta, e queria perguntar mais, mas decidiu que seria melhor pelo menos mudar o tópico.
— E como é a Instituição? Tipo uma escola?
— Você já foi à escola?
— Não, mas sempre quis.

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