A pouco habitada vila de Yutian é conhecida pelos forasteiros por ser amaldiçoada pelas raposas da floresta. A maioria das pessoas que chegam ao local estão procurando se aventurar por entre as árvores para descobrir seus mistérios em busca de ganhos.
Os poucos residentes são em sua maioria idosos que respeitam as kitsunes como criaturas que trazem boa sorte. E os mais jovens seguem os ensinamentos de seus parentes mais velhos. Alguns viajantes desafortunados, voltam de um encontro com uma kitsune sem sua alma. Devido aos efeitos dessa maldição, permanecem próximos a vila em um local mais afastado conhecido como Niao Ming. Uma família de médicos mantém os moradores daquele local em controle utilizando poções. Porém, aqueles que são tomados por uma personalidade cruel e irremediável encontram a morte. Os locais acreditam que eles são julgados por um espírito da floresta protetor da vila. Poucos o viram e saíram vivos e a descrição deste espírito é de uma criatura monstruosa, com uma energia maligna que ceifa as vidas de forma implacável. Um espírito maligno que surge e se dissipa em uma lufada.
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Ao chegar na vila, Hui Ling procura um lugar para dormir, encontrando uma pousada. Na entrada desse local, sentado em um banco ao lado da escadaria, um homem com roupas simples em tons de bege e marrom escuro e longos cabelos castanhos com um tom mais claro na parte interna, toma um chá, concentrado no que faz a tal ponto de parecer não notar absolutamente nada ao seu redor.
Em forma humana, Hui Ling passa pelo homem sem imaginar que este percebeu sua presença.
— Bom dia — diz o homem em uma voz grave e macia, fazendo o jovem olhar para ele enquanto ainda tomava seu chá.
Os olhos azuis que demonstram certa confusão eventualmente encontram os olhos em tom de âmbar do homem assim que ele finalmente ergue o olhar.
Para um indivíduo que se veste como um mendigo, o homem parece mais importante do que qualquer ser que já conheceu. Não que o jovem tenha conhecido muitos humanos.
— Bom dia. Me desculpe, não quis interromper seu chá com a minha presença — comenta ele com um leve ar de escárnio. É estranho falar com tanta educação e formalidade com aquele indivíduo que parece tão simples.
Os belos olhos do mendigo não demonstram qualquer tipo de emoção ao encarar o jovem, logo voltando a atenção ao chá. Por um momento, a raposa sente que o homem só queria olhar para dentro de sua alma, mas logo afasta o pensamento. É só um mendigo nessa vila que parece parada no tempo.
Ao entrar na pousada, o jovem notou a simplicidade do lugar, porém organizado e com uma fragrância de ylang ylang no ar. Por acaso, tem a sensação de que aquele aroma lembra o homem à porta da pousada.
— Bom dia, rapaz. Como posso ajudar?
A raposa ouve uma voz calma e vê uma senhora com ar gentil e acolhedor, que faz o jovem sorrir de forma radiante pois a simples presença da senhora lhe causa uma forte sensação de alegria. Está no local certo, apesar do homem de ar misterioso que acabou de encontrar na entrada da pousada lhe causar um certo incômodo.
— Bom dia. Estou procurando um quarto — diz ao mesmo tempo que pega o saco de moedas preso ao cinto.
A senhora se apresenta, dizendo que todos a chamam de Madame Xu e então chama um rapaz que não parece ter mais de 18 anos. Ele tem um olhar dócil e ingênuo e o acompanha até o quarto. Diz que, se precisar, pode chamar tanto ele quanto a Madame Xu. O nome do garoto de olhos brilhantes é Jun Fan.
Não demora muito para que Madame Xu ofereça a raposa uma deliciosa sopa. Após se alimentar, cai num sono profundo. O quarto é como todo o local, simples e acolhedor com aquela fragrância que parece uma mistura de flores e frutas e lembra um pouco o santuário das raposas. Isso faz com que Hui Ling tenha um estranho sonho.
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Está no santuário e o cor de rosa das árvores é mais intenso do que o comum. O local parece ter sido tocado pelos deuses e tudo brilha de maneira que quase o cega. As kitsunes parecem felizes, mas, procurando entre os vários rostos conhecidos e alguns desconhecidos, não acha sua mãe em lugar algum.
Após atravessar o santuário, ao final encontra uma mesa velha e lá está Li Liang, bebendo, como de costume. Ela não o olha em momento algum, ma diz com sua voz grave:
— O sangue das raposas está em suas mãos, raposa inútil. — Ela repete ao ponto de deixar o jovem tão perturbado que se volta para a parte colorida do santuário.
O local não é mais como tinha acabado de ver. As árvores morreram e as kitsunes estavam todas caídas. Em completo pânico, a raposa Ling se aproxima do centro do santuário, encontrando a poderosa Wen Lei com a cabeça cortada e todas as outras kitsunes mortas.
Não encontra sua mãe.
Ao virar o rosto, novamente dá de cara com Li Liang, que tinha o rosto cadavérico e assustador, lhe oferecendo as cinco caudas de raposa de sua mãe.
— Não era isso que queria? — diz em um tom apavorante e demoníaco.
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Hui Ling acorda assustado após esse momento, tentando imaginar se era apenas um sonho comum ou se, assim como sua mãe, tinha sonhos proféticos.
Ao acordar, o cheiro de ylang ylang parece mais presente do que antes e de certa forma o deixa mais calmo.
Algo naquele cheiro o faz pensar em um altar divino. Como uma simples fragrância fazia o jovem pensar no santuário, em uma divindade e no homem de olhos marcantes que veste trapos?
Apesar do pesadelo, o sono da raposa foi o suficiente.
Ao perceber que a noite se aproxima, sai para caçar na floresta. O poder de transformação é perfeito durante o dia, mesmo que chame a atenção por sua beleza exótica para os habitantes daquela vila. Mas, ao anoitecer, revela sua aparência explêndida de kitsune. Com a volumosa cauda e orelhas à mostra, aquela beleza exótica e humana não é nada perto da fascinante kitsune à luz do luar.
Só consegue esconder que é uma kitsune à luz do dia. Durante a noite, é mais forte e poderoso e não poderia liberar tal poder sem sua cauda livre.
O poder das raposas mágicas está ligado à cauda e, quanto mais antiga e poderosa, mais caudas surgem na criatura.
A raposa de nove caudas é aquela que ascende ao divino e o jovem sonha em alcançar tal feito. Não se considera comum. Acreditava estar destinado a grandes feitos.
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Ao voltar para a pousada antes do amanhecer, encontra o mendigo ao pé da escada, sentindo-se pego em flagrante.
— Insônia? — pergunta ele num tom direto, sendo possível notar que sabe exatamente tudo que fez durante a noite.
— É. Dormi à tarde depois do almoço — responde de um jeito relaxado, evitando olhar muito para ele porque o olhar do mendigo o deixa nervoso.
— E o jantar? — indaga, como se ele tivesse perdido algo muito importante.
— Oi?
— Não jantou? — repete no mesmo tom de indignação.
— Eu comi algo. — Dessa vez demonstra tensão, esfregando a mão na nuca.
— Estava bom? — Agora parecia um interrogatório.
— Sim — diz num tom baixo, até se encolhendo um pouco.
E o olhar do mendigo mais uma vez parece ler sua alma. A essa altura, a raposa tem certeza de que ele sabe como foi toda a sua noite.
— Você não devia jantar aqui.
— Por quê? — Mais uma vez, parecia muito confuso. Ele fala em códigos.
— Eu posso te indicar um ótimo lugar para comer.
— É mesmo?
— Eu conheço todos os bons lugares para comer na região.
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Pouco antes do amanhecer, Zhan Yao, após ter tido uma refeição com a raposa e Madame Xu estão na cozinha preparando o café da manhã. O novo hóspede causou preocupação para eles e nem querem imaginar o que Yan Jin vai pensar ao descobrir que tem uma kitsune na vila.
— Pedi a Jun Fan para ficar de olho nele. Até agora ele me disse que o jovem é muito agradável. Também tive essa impressão. — diz Madame Xu naquele tom amistoso que lhe é comum.
— Kitsunes sempre vão parecer amistosas e agradáveis se isso for vantajoso para elas. Você deveria saber bem disso — comenta o homem em tom grave e com uma expressão preocupada no rosto.
— E você deveria se lembrar que ser tão desconfiado não lhe trouxe coisas boas. Dê uma chance ao rapaz. Ele apenas quer conhecer o mundo. Você poderia ajudá-lo. Está há tempo demais aqui — aconselha a senhora com o seu jeito acolhedor.
— Eu preciso estar aqui. — Mantém a seriedade de uma forma um tanto teimosa.
— Agora não precisa mais. Tenho certeza de que percebeu o chamado. — Madame Xu se mantém calma, porém dessa vez olha para Zhan Yao de uma maneira que chega a ser intimidadora.
— Vou pensar a respeito. Talvez deva procurá-la. — Volta a atenção às ervas que usa para o chá. Mesmo com sua conhecida teimosia, aprende com muito custo a ouvir os conselhos de quem quer o seu bem.
— Me parece uma boa ideia. — Sorri de forma acolhedora e retira do forno a lenha os pães que fez.
A conversa é interrompida com a chegada de um jovem rapaz com cara de sono, já procurando por algo para comer, investigando a mesa. Certamente foi atraído pelo cheiro dos pães.
— Jun Fan, o que está fazendo aqui?
— Ele está dormindo. Tem um sono mais pesado que o meu. Eu andei por cima dele e ele nem se mexeu.
O comentário causa riso na Madame, mas Zhan Yao permanece com sua expressão de eterna reflexão.
— Ele não causou nenhum problema? Nem à noite?
— Nenhum. Eu juro que não tirei os olhos dele. Vocês precisam ver a cauda dele! É tão bonita!
— Pelo visto a raposa conquistou o gato — disse a Madame em tom de descontração.
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Desde que chegou à pousada da Madame Xu, a raposa tem sido acompanhada de perto por um gato. Ele é muito dócil e sempre pede carinho, uma criatura difícil de não se afeiçoar. Ao mesmo tempo, sente algo estranho naquele gato. Ele não parece nada comum. Após alguns dias, ao entrar em seu quarto, encontra um rapaz dormindo em sua cama, se assustando e gritando.
— O que você está fazendo aí?
Corre até a cama e sacode o jovem pelos ombros. Quando finalmente acorda, se espreguiça e só após algum tempo se dá conta que não está como deveria estar. A kitsune a essa altura já empunha uma adaga, ameaçando o desconhecido.
— O que está fazendo no meu quarto? É um espião? Está tentando me matar? — diz num tom quase estridente, ainda apontando a adaga para o jovem.
— Meu deus, não! De forma alguma! É um mal-entendido eu juro. — responde de maneira pouco alarmada para alguém que está sendo ameaçado.
— Por que está na minha cama? — continua pronto para atacar se for preciso.
— Eu durmo aqui com você todos os dias — fala de maneira bem-humorada, chegando a rir. A raposa arregala os olhos e até baixa a arma em suas mãos.
— Como é que é?
— A Madame Xu me disse que eu não deveria aparecer para você assim, só como gato. Eu não sei o motivo — diz com naturalidade.
— Gato? Você é o gato? — Arregala mais ainda os olhos, espantado com a informação. — Isso é muito esquisito.
— Esquisito por quê? Você é uma kitsune.
Fica tão confuso com toda a situação que no fim guarda a adaga, vendo o jeito relaxado do gato.
— Mas me diga, por que você não podia aparecer assim para mim?
— Eu já disse. Eu não sei.
— E como você sabe sobre isso?
— Sobre o quê? Sobre você ser uma kitsune? Eu sempre soube. Sinto muita sorte por ter um amigo kitsune. Madame Xu também gosta de kitsunes, mas não é comum recebermos uma, então ela quis que eu entendesse o que está querendo aqui. — O gato coça a cabeça e expressa ter entendido, finalmente. – Foi por isso que ela pediu para eu ficar de olho em você.
— Entendo. Não se preocupe, gato. Não irei causar nenhum problema para você ou para a Madame Xu. – No fim, sorri de um jeito bem cativante para o seu novo amigo.
— Eu sei disso. Percebi muito rápido que você é legal. Você sabia que tem gente que é muito cruel com gatos?
No fim, os dois riem e conversam por um longo período até que o gato resolve tirar uma soneca, afinal é o que os gatos mais fazem.
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Hui Ling no início tinha receio de sair à noite, mas estava se sentindo mais fraco, então certa noite sai para explorar os arredores da vila. Nesse passeio, encontra um homem que partia para a floresta e, transformado em sua forma mais bela, o jovem com sua farta cauda laranja, no mesmo tom de seus cabelos, chama a atenção dele. Os olhos brilham na noite e o homem vai até o jovem kitsune como se fosse incapaz de se desviar. O homem demonstra fascinação ao ver aquela figura e sabe que será impossível resistir.
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