A chuva caía com uma miríade de gotas prateadas enquanto luz azul do pequeno aparelho nas mãos de Dave nos iluminava. Nossa cobertura improvisada, um forte de travesseiros, era pequena e cheirava à infância. O sol morria atrás das nuvens e a escuridão se arrastava sobre nós como uma velha amiga. A terceira componente daquela dupla incansável. Havia apenas Dave e eu, algo que garanti isso com o passar dos anos.
— Você precisa foder, Alex. — Revirei os olhos no escuro do quarto. Naqueles tempos, minha vida se resumia a duas coisas: evitar pensar que as minhas notas decadentes poderiam me fazer perder a bolsa da faculdade; e evitar pensar que estava falhando no meu relacionamento com Dave. Até então, ignorar tudo estava funcionando muito bem. — Dar absurdamente esse cu quase virgem de novo, e manter alguém ao seu lado. Quanto tempo faz desde Iza?
— Não precisa mencionar esse nome — eu arquejei. — Eu preciso é estudar mais anatomia, senão perco na matéria. O William faz provas difíceis... vou acabar morrendo antes de me formar.
— Por isso mesmo. Por que aprender a teoria quando se pode aprender na prática?
— Você sabe que não funciona assim, né?
Naquele dia em particular, ocupamos nossa tarde em desempacotar o último de seus pertences das caixas para o quarto em que ele ocuparia na nova casa de sua mãe. Achamos vários tesouros na mudança; várias cartas de amor que Dave ficou vermelho ao ver e não me deixou abrir dentro de cadernos antigos com algumas histórias infantis rabiscadas em garranchos; e o prêmio máximo: seu velho Nintendo 64, que ainda funcionava. É claro, nosso impulso seguinte foi gastar nossa tarde preguiçosa com campeonatos, até que Dave propôs:
— Se eu ganhar essa corrida, você tem que sair hoje à noite.
Eu nem levantei os olhos da televisão. Eu tinha planos antes de sair, porque afinal, era Halloween, e era uma tradição na cidade recolher doces de casas de estranhos. Mas por causa da previsão de tempo ruim — diziam que ia ser a noite mais fria em quarenta anos, e mal começara o inverno — além da chuva, Dave ficou receoso de sair e por isso estávamos em seu quarto fazendo nada. Estava com preguiça, mas... Se tivesse sido mais sábio, eu teria me levantado do meu confortável travesseiro, xingado Dave, pegado minhas coisas e ido para o andar de baixo para conversar com sua mãe, Kate, enquanto ela preparava o nosso jantar. Teria sido a aposta mais segura que eu faria naquela noite, e eu não teria desafiado o Destino.
Só que, se há algo que você precisa saber sobre mim, é que eu nunca perdi no Mario Kart.
Eu me ajustei, sentindo o fogo da competição queimando por dentro. Dave me conhecia. Pior, ele sabia exatamente o fazer para me motivar. Eu ainda estava indisposto a namorar qualquer pobre alma que ele me arranjasse, mas uma competição? Merda, eu precisava de uma. Qualquer coisa para tirar meus pensamentos do manguezal de onde estavam.
Acho que tínhamos aquilo em comum, Jesse.
Eu peguei o travesseiro e gritei contra ele quando o maldito casco vermelho me atingiu e eu perdi.
— Não acredito! — minha voz abafada saiu sufocada em minha garganta enquanto a risada alta de Dave ecoava pelo quarto. Eu me joguei na cama de casal frustrado. Meu amigo sentou-se ao meu lado, observando a minha idiotice.
— Pare de ser tão dramático, e pegue seu telefone — Dave disse, e eu suspirei teatralmente. Ele me acertou nas costelas, e desisti. Tirei meu celular do bolso, entregando-o.
— Quando você vai jogar fora esse pedaço de lixo? — reclamou, usando seus dedos esguios para liberar a senha de destrave da tela, que conhecia tão bem quanto a própria.
— No dia de São Nunca. Pare de reclamar e termine logo com isso.
Alguns momentos de silêncio caíram sobre nós. Eu comecei a contar as estrelas de seu teto. Havíamos passado algumas tardes colocando-as na ordem da constelação de Virgem. Quase caí em um sono preguiçoso. Ter a presença confortável de Dave e os passos inquietos de Kate no andar de baixo eram tudo para mim.
Mas então, a interrupção.
Dave foi direto.
— Você gosta quando as pessoas mordiscam o lóbulo da sua orelha?
— Dave, nós nunca vamos ficar juntos. — Eu sorri, colocando uma mão sobre seus olhos, e ele recuou, me xingando no processo. Apesar disso, ele continuou:
— Apenas responde. A próxima: Eu gosto de passar meus dias fazendo…
Eu levantei minha meia sobrancelha, fruto da adolescência rebelde em que eu as raspava e nunca mais tinham crescido da mesma maneira.
— Para quem você está mandando mensagens?
— São só algumas perguntas do app, para seu encontro desta noite. A propósito, você ainda não respondeu às perguntas dele.
— Ah, esta é uma pergunta fácil. Eu passo meus dias sendo babá de um bebezão que tem problemas em sair de casa e acha que eu preciso de um namorado. — Dave não achou minha resposta tão engraçada, então minha barreira improvisada foi socada e algumas penas flutuaram no ar enquanto minha risada ecoava. Eu nunca vira Dave tão determinado em achar alguém para mim. Normalmente ele apenas soltava algumas alfinetadas, mas com aquela aposta perdida no Mario Kart, era imparável. Eu não pensei em nada daquilo, naquela época.
Você significava nada para mim naquela época.
— Quem é o cara, de qualquer forma? Como você o conheceu? — Tentei olhar para o aplicativo de conversa em que ele furiosamente digitava, mas ele desviou as mãos — e deveria lembrá-lo que tinha um morto-vivo nelas? —, e continuou suas travessuras. Não havia salvação para mim.
— Tinder — ele disse simplesmente.
— Tinder… Dave! — gritei.
— Você precisa desesperadamente foder. Fique feliz que não foi o Grindr. Prometo que apenas coloquei suas melhores fotos. Eles gostaram da sua tatuagem na cara, pelo visto. Eu filtrei os resultados… — Aquela foi a última gota. Tirei o telefone de suas mãos e olhei para a tela. Fiquei surpreso pelas longas conversas com várias pessoas. Quando aquele esquema tinha ido tão longe?
— Ao menos dê uma chance a este daqui. Ele parece emo, mas… Acho que faz o seu tipo — ele pediu, olhando por cima do meu ombro.
— Eu não preciso de um namorado, Dave, eu já te disse isso um milhão de vezes… — Suspirei pesadamente. Meu amigo apenas abaixou seus ombros e assentiu.
— Apenas acho que você precisa de uma vida, às vezes… Você está feliz desse jeito?
Aquela era uma pergunta de difícil resposta. Não queria machucar os sentimentos de Dave. Eu estava feliz. Ao menos, era o que pensava. Não conhecia nada diferente daquilo, e evitava pensar muito sobre coisas que não poderia obter. Baguncei seus cabelos lavanda, e suspirei de novo.
Algumas coisas eram difíceis demais.
Eu me levantei da cama, passando a mão pelos meus próprios fios ruivos no processo.
— Com quem você falou? — disse, desistindo um pouco. Eu vi seus olhos cor de mel brilharem levemente, e no fundo, era aquilo que importava. Todo aquele sofrimento valia a pena. — Posso ao menos ver as opções?
— Você vai gostar desse, sem dúvidas. Seu nome é Jesse...
— Como o cantor?
— Como assim?
— Ah, ser jovem e inocente. Essa geração não sabe nada de história. — Engoli uma risada. Ainda assim, continuei. — O que tem de tão especial nesse tal de Jesse?
— Ele se interessou pela sua tatuagem. Disse que gostaria de ver mais por si mesmo. Também está “por perto” e “tem local”. Não entendo o que ele quis dizer com isso, mas se está próximo, talvez seja uma coisa boa, não é? — Eu consegui cobrir o rosto com as mãos e segurar uma risada histérica, mas era a coisa da boa da amizade com Dave. Ele sempre acreditava no lado bom das pessoas.
— Me mostre a foto dele — eu disse, tentando ao máximo manter o rosto sério. Dave era inocente para o lado obscuro da internet, e eu ao menos queria saber se estava lidando com um homem ou um robô. Eu não pretendia liderar a skynet à sua próxima rebelião em meu apartamento…
Dave fez o que eu pedi, e eu admirei as pequenas imagens no aparelho. Não havia muito a ser visto. A primeira era de bíceps, o homem com certeza malhava muito. A segunda foi de seu tanquinho. A terceira…
— Opa, opa, vou ter que usar a proteção infantil no meu celular se você continuar usando esse aplicativo — disse, ficando tão vermelho quanto os meus cabelos. Quem deixava esse tipo de foto no perfil?
Dave deu de ombros.
— É só uma bunda, Alex. Você já viu bundas antes. Cresça um pouco, vá. — Ele riu de deboche, mas o conhecia bem o suficiente para notar o nervosismo. Tentou pegar meu celular de volta, mas eu tinha vantagem, e ele, chance alguma. Havia uma quarta foto.
Aquela chamou a minha atenção.
— Sabia — ele disse. E maldição. Dave me conhecia como a palma de sua mão. — Não quer conhecê-lo agora?
Naquele tempo, Jesse, eu não sabia de nada.
Naquele tempo, o mundo era bem mais simples.
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