Como Mo Tian poderia ter se esquecido do objeto central do festival? Ele queria ser açoitado até a morte?
Mo Tian não parava de se cobrar enquanto se afastava da concentração de servos finalizando os preparativos e se dirigia até o prédio construído na época que o Celestial Coelho andava entre Lanhua — ao menos, era o que diziam as lendas. Aquele pavilhão feito de jade era chamado de "gigante adormecido", mas também poderia ser "gigante proibido". O monumento ocupava a visão até o céu, e poucas pessoas tinham acesso ao seu interior. Mo Tian sabia se tratar de uma espécie de mausoléu, justamente por ser uma das raras pessoas em contato direto com o atual líder dos Lanhua, o único ser vivo autorizado a explorar o espaço quase divino.
Por ser usado em todo início de ciclo lunar, o ornamento do coelho era deixado no prédio ao lado, uma construção mais simplória basicamente utilizada como depósito para festividades.
Com a caixa pesada, Mo Tian entrou e se deparou com inúmeras outras caixas e tambores empilhados, objetos acumulados em estantes e muito, muito pó. Ele remexeu o nariz irritado, tal qual uma lebre, e perdeu a vontade de espirrar. Queria livrar logo as mãos pra esfregar nariz e olhos, pegar o que precisava e sair logo dali.
Ah, talvez fosse isso. Seu senso de preservação apagando da memória o pedido de busca para não precisar ir naquele lugar imundo. Desde que um servo encontrou o que não deveria e trocou peças de lugar, o líder não permitia ninguém sequer limpar a espelunca, deixando-a suja, amarrotada e imersa em tanta poeira que era possível ver os grãos flutuando no ar.
Devolver a caixa foi fácil — era só colocá-la junto com as outras luminárias, no único espaço vazio, de onde justamente foi retirada momentos antes. Após largá-la ali, causando um barulho que repercutiu entre os corredores, tinha que se apressar até o ornamento antes da escuridão tomar os céus. Fazia um ano que não ia até lá, mas o objeto era inconfundível, tamanho o esplendor. Não precisava sequer ser limpo, pois a deterioração humana não o atingia.
Além de ter um cheiro muito específico de ninféia — era só o seguir naquela bagunça e poderia respirar aliviado.
Não havia janelas para que pudesse calcular quanta areia de sua ampulheta mental faltava cair até que o líder do clã percebesse a falta do objeto cerimonial mais importante, porém o barulho servia de indicativo. Ainda não havia música de tambores, mas as vozes começavam a se aglomerar, prestes a formar uma multidão de passagem, enquanto Mo Tian fungava o ar como os cachorros faziam. No entanto, não havia o menor sinal do aroma da flor azul.
Mo Tian sentiu uma sensação gélida tomar a boca do seu estômago. O tempo passava, ele se apressava entre os corredores, via uma ou outra coisa inútil, velas fora do lugar, cestas e bandejas umas sobre as outras, livros amarrotados, mas nada do ornamento. Aquele lugar realmente precisava ser limpo! Quanto tempo lhe restava? O tumulto já era audível, junto com as batidas aceleradas do coração. Desejou que Yawen Chen estivesse ali; ela parecia ter o poder ancestral de achar meias e chinelos perdidos quando ele próprio já tinha procurado minuciosamente. No final, as malditas meias pareciam ter sido transplantadas para lugares que ele já tinha olhado pelo menos três vezes. Um poder concedido às mães, sem dúvida...
Mo Tian estacou de supetão, a expressão de iluminação como se tivesse atingido o nirvana. Tudo o que precisava fazer era agir como uma mãe. Precisava pensar como Yawen Chen, que, apesar de não ser mãe, agia como tal. E o que ela faria era óbvio!
— Celestial Coelho, Ta Yeh, prometo a você cem pulos se eu encontrar seu ornamento — Mo Tian entoou como se lembrava, as mãos se apertando juntas. Apertou mais forte, espremendo as sobrancelhas. — ...mais duzentos se eu achar antes que o líder do clã perceba...
A princípio, nada de diferente, mas uma magia instantânea tirou a ansiedade das entranhas. Então, o cheiro da ninféia alcançou suas narinas antes mesmo de dar um passo para continuar a busca. O odor era tão forte que, além de irritar ainda mais o nariz, criou um rastro visível aos olhos, indicando o caminho. Mo Tian realmente podia ver a trilha, como uma fumaça delicada e fina chamando-o.
Aquilo era... assustador.
Como qualquer pessoa desesperada e curiosa faria, ele a seguiu.
A fumaça apareceu quase rente ao chão e Mo Tian não tirava os olhos dela, quase bateu de cara contra uma parede quando a linha atravessou pela fresta de uma porta nos fundos do galpão. Ergueu os olhos e hesitou, a mão congelada na maçaneta. Aquela porta... se a atravessasse, entraria no "gigante proibido".
Era um pavilhão restrito. Mo Tian não tinha autorização para entrar e estaria em apuros se alguém o pegasse ali. Talvez o cansaço mental estivesse o fazendo ver coisas... deveria virar as costas e chamar Yawen Chen. Ela o ajudaria a encontrar o objeto no meio daquela bagunça e o impediria de perder tempo limpando tudo.
Mas e se tudo desse errado, e mesmo com a ajuda de Yawen Chen não achassem o ornamento? Ele teria perdido a oportunidade para sempre. Seria castigado. Mutilado, talvez. O evento era muito importante para as desculpas servirem de algo para o líder. O líder, que naquele momento já poderia estar chegando para conferir os detalhes.
Enquanto ainda colocava na balança para tomar uma decisão, ouviu a trinca se abrindo. Como o som de erro, sua mão já puxava a porta e a fresta se transformava numa abertura completa, dando visão para o interior do palácio onde poucos haviam pisado.
Se Mo Tian havia julgado o depósito e quase içado as mangas para fazer a faxina completa, agora ele sentia todo o corpo coçar por debaixo da pele, como se tivesse descoberto a última camada do inferno.
Pelos Doze Celestiais! Não consigo nem ver o piso por debaixo de tanta sujeira!
Só uma dúvida se passava em sua cabeça: quantas baratas, ratos, bactérias e animais ainda não descobertos pelos homens poderiam estar se proliferando ali?
— Ah! — gritou fino, se assustando com alguma coisa que sentiu roçar em sua nuca. Fruto da realidade ou da paranoia, o fato é que quando Mo Tian começava a pensar em sujeira, o nariz se irritava e a pele começava a formigar, como se todos os bichos saíssem de sua mente para assombrar a pele. Havia ou não uma aranha passeando debaixo de suas vestes?! Ele se contorceu inteiro, se batendo.
É pior que o inferno, ele concluiu, hesitando dois passos para trás. Realmente é melhor que ninguém nunca mais entre aqui! Mestre, eu te julguei mal!
Foi depois desse pensamento que ele daria meia volta, se algo não o tivesse feito mudar de ideia. O cheiro. Mesmo com o nariz congestionado e incapaz de respirar, o odor ainda fazia cócegas no seu cérebro. Ou ele voltava de mãos vazias e levava o castigo da fuchen ou... enfrentava aquela nojeira e deixava todos felizes, desfrutando de um festival perfeito e harmonioso, às custas das suas mãos limpas e, é claro, da sua sanidade após enfrentar tamanha provação.
Ha-ha. Quase como se eu fosse um Celestial e estivesse passando pela Provação do Imperador de Jade para continuar com minha Constelação, ele brincou. Então devo cumprir esse desafio!
Daquela vez, ele realmente arregaçou as mangas e caminhou sobre a lama, gosma e bolas de fogo — tudo invenção de seus delírios — atrás da neblina azulada, que atravessava mais um corredor e chegava à uma sala que se diferia do resto do ambiente. Foi como entrar no céu, depois de horas caminhando no campo minado pútrido que era aquele lugar. Ainda era sujo e abafado, mas era incrivelmente vazio, exceto por um utensílio que tomava toda a atenção para si por sua beleza e pureza. Um nêmesis no meio do oceano, água em meio ao deserto.
A estátua de coelho de jade, ornamentada das mais diversas pedras preciosas.
— Não acredito que você estava aqui escondida esse tempo todo! — Mo Tian sorriu, pegando-a e limpando-a com a manga antes de sair correndo, mais rápido do que se tivesse visto o demônio da sujeira vagando por aquele palácio. Quando atravessou a porta de volta para o depósito e ouviu o trinco selando a imundície, agradeceu aos Celestiais. Foi e voltou, e o ambiente continuava como se nunca tivesse saído dali. Como se o tempo não tivesse passado.
— Eu vou te dar os cem pulos mais tarde, logo depois da cerimônia. Eu não vou esquecer.
Quando voltou ao pátio principal, Yawen Chen estava sentada no muro da fonte. Seu rosto enfiado entre as mãos e o corpo trêmulo denunciavam que estava prestes a desmaiar de ansiedade. A aproximação dos passos de Mo Tian a fez levantar a cabeça. A cor pálida desapareceu ao ver o ornamento sagrado do coelho nas mãos de Mo Tian.
— Ainda bem que você achou. O líder já chegou, mas está vistoriando o Pavilhão de Lótus ainda. Coloca logo a estátua no pedestal! — Yawen Chen o apressou, apontando para o local onde aconteceria o Rito.
Mo Tian subiu as escadas, desviando das crianças que corriam em grupo, com seus tanghulu nas mãos. Alguns casais passeavam de mãos dadas pela ponte em cima do lago de carpas, mas não houve tempo para prestar atenção em nenhuma das suas juras de amor.
Foi só quando chegou ao tablado principal que deixou a respiração escapar de seus pulmões. Poucas pessoas transitavam por ali, a maioria era funcionários terminando de ajeitar os últimos detalhes da decoração. Sem sinal de Xiang Dao. Aparentemente ninguém havia percebido ainda. Com muito respeito, subiu os dois degraus e repousou a estátua em seu pedestal dourado — o ponto mais glorioso do festival.
— Pronto, está no seu lugar de direito agora. Feliz? — Mo Tian sorriu, dando dois tapinhas leves na cabeça da escultura de coelho. Por um segundo, foi como se o vento trouxesse novamente o cheiro da ninféia até ele, mas Mo Tian pensou ser seu nariz alérgico contagiado pelo cheiro, sem conseguir sentir nada além dele. Ou talvez fosse um lembrete.
Olhou uma última vez para a estátua e sussurrou:
— Trezentos pulos, então. Não vou esquecer.
Continua...
__________
Tanghulu: Literalmente, "maçã de caramelo". Trata-se de um espetinho das frutas cristalizadas após serem mergulhadas em açúcar líquido.
No próximo capítulo...
Depois de cumprir suas responsabilidades, Mo Tian tira um tempo para descansar e aproveitar o festival. Enquanto caminha pelo clã, ouve um contador de histórias dar detalhes interessantes sobre o Celestial Coelho.
No próximo capítulo: "Benção ou Maldição?"
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Até dia 9 de novembro!
Beijos felinos,
Mork
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