Não conheci meus pais.
Isso não me impediu de chegar aonde cheguei, mas sempre trouxe uma sensação incômoda.
Apesar de que, antes, não tinha consciência do vazio que isso causava em mim.
Claro, eu tive família, estive presente em mais de uma, inclusive. Mas me sentir acolhida? Parte de um grupo em que todos se apoiam incondicionalmente?
Talvez tenha acontecido uma vez, mas há muito tempo.
Eu cresci em um orfanato na cidade de Le Fay, um lugar pequeno, maldito e malvisto, mas que não é tão longe da capital.
Depois, ganhei uma bolsa na Escola de Magia do Conselho, e me mudei para sempre daquele lugar.
Em minha nova “casa”, as pessoas não gostavam de mim. Eu tentava interagir, mas o máximo que recebia em troca eram sorrisos sem graça e, talvez, uma educação hesitante. Isso nos melhores casos. Também prefiro não me aprofundar no que ouvia quando achavam que eu não estava escutando.
Eu não era aceita ou bem-vinda em lugar nenhum. Era uma ninguém, vinda do nada e sem qualquer perspectiva de futuro. Em algum momento, cheguei a questionar se havia sequer motivos para aperfeiçoar minha magia.
Mas um dia, tudo isso mudou.
Junto de algumas pessoas de fora, a direção do colégio me chamou para ter uma conversa. Claro, fiquei com medo, mas apenas porque não sabia das boas novas.
Vieram me informar sobre minha família.
Minha origem verdadeira, que até então não conhecia. Minha linhagem, de onde eu vim.
Onde eu realmente pertencia.
Um peso que eu nem sabia que estava lá saía das minhas costas.
Eu tinha um passado, uma história, tinha ancestrais.
Fiquei muito feliz com a notícia, e não fui só eu. Os professores, a direção, até mesmo o tratamento que recebia de outros alunos, tudo começou a mudar a partir dali, e para melhor.
Passei a ser respeitada, ou até mais do que isso.
Pela primeira vez, o vazio não estava lá. Eu sabia de onde vinha, quem eu era.
Eu era Hadria Merlin.
— E o que isso quer dizer? — questionou Hadria, depois de pensar por alguns segundos. A verdade era que a conselheira provavelmente entendia exatamente o que Alma queria dizer com aquilo.
Mas não queria acreditar.
O velho homem lhe direcionou um sorriso triste em resposta, como se soubesse o que estava em seus pensamentos.
— Você matou Merlin, e por isso tá aqui, vivo e na nossa frente — constatou Diana, despreocupada, dando voz às inseguranças da feiticeira. — Se você vai alegar isso, é óbvio que vamos querer ouvir a história toda.
Diana permaneceu em silêncio enquanto ouvia o homem das várias identidades falar. Ele contou de quando havia integrado o primeiro Conselho, e do momento que Merlin o chamara em sua sala para contar a visão de como, em um futuro distante, a magia estaria ameaçada por alguém da família Vocatio. Contou, ainda, que, apesar de ter recusado inicialmente, foi convencido por Merlin a fazer um feitiço para absorver sua vitalidade, para que vivesse mais e pudesse trazer a mensagem que veio do passado.
A bruxa pôde observar como as expressões de Hadria variavam enquanto ouvia o relato. Sabia o quanto Merlin significava para ela, e como ouvir que ele escolhera a própria morte a afetava naquele momento.
Sendo honesta, Diana não poderia se importar menos.
Teve de conter seu sobressalto quando sentiu uma mão contornar a sua, e viu que Lilitu havia se aproximado enquanto estava distraída.
— Se acalma um pouco, a raiva tá estampada na sua cara — sussurrou a mulher, sem desviar a atenção do avô. Felizmente, ele e Hadria não tinham o olhar nelas.
— Não estou com raiva — respondeu Diana no mesmo volume de voz, e pôde ouvir riso contido ao seu lado em resposta, o que fez com que se desvencilhasse da mão da feiticeira. — Você não entenderia.
— Você pode me contar depois — concluiu Lilitu, e se afastou de volta a sua posição original no sofá. Diana não pôde deixar de se sentir irritada, mas tentou relaxar para não dar razão às palavras da outra.
“Você devia ser mais sincera.”
“Agora você aparece?”, questionou a bruxa na própria mente, respondendo à voz familiar que havia surgido.
“Você pode dormir e eu não?”
“Não quando eu precisar de você.”
“Isso quer dizer que finalmente me aceitou?”
— Diana, está tudo bem? — O olhar da bruxa se ergueu ao perceber que uma voz fora de sua cabeça falava com ela. Alma havia feito a pergunta, e agora todos a encaravam. — A expressão no seu rosto...
Lilitu não segurou a risada dessa vez, e Diana se sentia pronta para esganá-la.
— Não. Porque tem uma maldita voz dentro da minha cabeça, graças a você — respondeu, perdendo a paciência. — Aliás, você nem explicou o que essas coisas têm a ver comigo. Sei que me entregou o livro pra me atrair até a caverna, e agora por sua culpa tem um conglomerado perturbando minha cabeça. O que mais você quer de mim?
O conselheiro franziu a testa, e se inclinou para frente, na direção da bruxa, a mão em uma das pernas.
— Você disse... um conglomerado?
— Foi o que eu acabei de dizer — respondeu Diana, ainda irritada, mas um pouco confusa pela reação do homem.
Áki recuou, se recostando na poltrona com um olhar contemplativo.
— Suponho que Merlin não tenha me dado todos os detalhes.
— Sobre os pergaminhos?
Hadria ainda tentava absorver os novos conhecimentos que recebia sobre seu ancestral quando Diana e Alma entraram em uma discussão da qual ela só entendeu metade. Havia algo dentro de Diana, e isso ela já sabia, mas o que era um conglomerado e de que caverna eles estavam falando não eram informações tão claras para a feiticeira.
Porém, uma das frases de Alma chamou sua atenção.
— Merlin teve uma visão... com a gente?
O velho homem assentiu, sem encarar a conselheira diretamente.
— As visões de Merlin vinham através de sonhos. Às vezes ele alegava que, por causa disso, nem sempre conseguia se lembrar de todos os pormenores, mas às vezes era só uma forma de contar a história como julgava conveniente.
— E o que ele te disse? — questionou Diana, a irritação ainda clara em sua voz enquanto se inclinava no sofá. Hadria estava prestes a fazer um comentário sobre toda aquela impaciência, mas se impediu no último instante quando viu Lilitu se aproximar da bruxa e sussurrar em algo em seu ouvido. A conselheira não sabia o que havia sido dito, mas foi a reação de Diana, respirando fundo e recuando, como se tentasse se acalmar, que chamou sua atenção.
Estranho.
Alma, por outro lado, se percebeu alguma coisa, fingiu que não, pois só respondeu à pergunta no mesmo tom de antes.
Talvez, para Hadria, o fato de seu ancestral e maior mago de todos os tempos, Merlin, ter tido uma visão que envolvia as duas fosse o mais impressionante na história toda. E, claro, Diana também estava surpresa por muitos motivos. Sempre havia a chance de tudo aquilo ser outra mentira, mas tinha uma sensação diferente dessa vez. Algo — ou alguém — dentro de si lhe dizia que devia confiar nas palavras do homem naquele momento. Se assim fosse, isso significava que ela estava envolvida em algo muito maior do que ser apenas uma inimiga pública do Conselho. Estavam falando do futuro da magia como um todo.
Mas nem por isso Diana Evanora ignoraria os detalhes tão facilmente.
— Feiticeira? — indagou, cruzando os braços para o velho diante dela.
Havia uma diferença crucial de Diana para as pessoas da alta hierarquia: enquanto ela se limitava a realizar encantamentos, membros do Conselho e suas famílias podiam usar feitiços, ou seja, exercer sua magia sem precisar recitar um monte de palavras. Além disso, esses feitiços eram mais fortes do que os encantamentos.
Diana era uma bruxa. Era um título usado para menosprezar suas capacidades, mas que ela havia reivindicado como parte de sua identidade na luta contra o Conselho.
Agora, o mais antigo conselheiro vivo acabava de chamá-la de feiticeira, e sabia que não tinha sido um mero descuido.
— Essa separação não existia e, honestamente, não deveria ter passado a existir. Se vamos enfrentar um feiticeiro, precisamos colocá-la em pé de igualdade. Você vai aprender a fazer feitiços.
— Aprender...? — indagou, e então começou a se lembrar da primeira conversa que tivera com o conglomerado. Sobre a magia não ser um aprendizado uniforme, mas uma habilidade que nascia do potencial de cada pessoa. Sobre como, talvez, as pessoas do Conselho não tivessem necessariamente mais poder, mas apenas reservado um conhecimento só para elas esse tempo todo.
“Pense por um momento.”
— Espera aí — interrompeu Hadria, demonstrando um repentino incômodo. — Diana não é da hierarquia. Nós não podemos...
— A hierarquia não vai importar se todos estivermos mortos — respondeu Alma, aumentando o tom de voz, e a jovem se calou. — Sei que possui uma dificuldade latente em olhar alguém para além dos títulos, Hadria, mas essa baboseira do Conselho não vai nos ajudar agora.
Alguns segundos de silêncio passaram e, apesar de satisfeita em ver a antiga amiga levando bronca, Diana decidiu continuar suas perguntas antes que aquela discussão se transformasse em algo perigoso para ela mesma.
— Você falou muito de enfrentarmos o primogênito dos Vocatio, mas quem seria esse? — Havia muitas perguntas que ela ainda precisava fazer, mas algo lhe dizia que essa era uma das prioridades. Além disso, não conhecia todas as ramificações de famílias do Conselho, então realmente precisava saber.
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