— Não toque em mim! — sibilo, me virando de abrupto e dando um passo em sua direção. — Por que as pessoas acham que podem ficar tocando em mim quando querem? Não pense que pode fazer isso só por estarmos noi-
Minha voz se torna um chiado agudo e se interrompe de súbito, incapaz de pronunciar a palavra em voz alta. Especialmente agora que está mais próxima de se tornar um fato público. A mão invisível se fecha sobre minha garganta e o corpete do vestido aperta; o fôlego é raso mesmo que estejamos bem diante de uma das enormes janelas ao canto do salão.
Ele afasta a mão de imediato e ergue as palmas para mim, sem provocação.
— Desculpa. Só estava tentando dizer que-
— Não veio me perturbar para dizer que é hora do anúncio? Então va-
— Se me deixasse completar a frase, já ia estar sabendo que na verdade vim falar com você porque pedi aos seus pais um tempo para conversarmos antes — replica num único fôlego, arqueando uma sobrancelha grossa, visível porque o vento afasta o cabelo negro da testa.
— E de que adianta isso? — retruco num bufo. — Que diferença faz uma conversa para nos conhecermos se você se recusa até a dizer seu nome? Se anunciarmos isso logo, posso ir descansar e você permanece com o nariz quase intacto.
Um som semelhante a uma gaita quebrada sobe por sua garganta e ele vira o rosto para a janela, abafando com a mão e tentando disfarçar como tosse. Os ombros sacudindo e o sobretudo preto me fazem perceber que ele é o mesmo rapaz que vi engasgando quando entrei no salão.
Ele reergue o rosto após uma eternidade de segundos e nota minha expressão.
— Desculpa, desculpa — diz rápido, erguendo novamente as mãos, embora o sorriso ainda ilumine o rosto num charme irritante, agitando o incômodo farfalhante em mim. É como encarar um quebra-cabeça embaralhado sem quadro de referência.
— Qual é a graça?
— Não é verdade que não adianta conversarmos para nos conhecermos antes. — O sorriso irritante se alarga, ainda se divertindo com a piadinha particular. — Falei que não vou revelar meu nome, mas isso não é o mais relevante sobre mim, é só uma informação. Todos na Ilha sabem seu nome, princesa de Thempesta, mas isso quer dizer que todos a conhecem?
— Estava se especializando em Filosofia? — bufo, sem outra resposta melhor.
— Está vendo? Isso é uma pergunta mais interessante — ri em aprovação, alheio ao sarcasmo. — E não, na verdade. Tinha começado a estudar para ser Embaixador. A parte mais engraçada é que pretendia prestar a prova para cá… Irônico, não?
Apenas o encaro, a surpresa sendo substituída pela indignação. O sorriso bem-humorado é um tapa na cara.
— E como pode sorrir assim? Por que está tão bem com isso? — retruco, entredentes. Ele inclina a cabeça, franzindo as sobrancelhas, sem entender. — Precisou passar por testes e provas de aptidão só para ser aceito numa especialização dessas, mesmo sem garantias de que poderia conseguir o cargo… Sei que em todas as Academias é assim. Então como… como é capaz de ficar sorrindo assim e fazendo piada se todo seu esforço foi jogado no lixo para que seja um mero consorte?
Ele passa a mão direita pelo negrume ondulado e caótico do cabelo e depois a desce para o meio do peito.
— Sua mira é realmente boa, não é? — murmura, pela primeira vez com um sorriso sem-graça. Pela proximidade, consigo entrever entre a gola aberta e esvoaçante da camisa o brilho dourado de uma correntinha que se perde dentro da camisa branca sobreposta pelo colete verde-esmeralda; além de uma cicatriz pálida sob o queixo, quando ele inclina a cabeça, ao emendar: — Pode-se dizer que é uma questão de perspectiva. Já pretendia vir para cá, só não vai acontecer como planejei. É como tento ver.
Bufo em desdém impaciente.
— Não é mera perspectiva. Uma pessoa sã não se submete a todo estresse de uma especialização dessas só para se mudar quando existem formas mais simples de fazer isso. Por que queria ser embaixador aqui?
— Entre outras coisas, tenho certo fascínio por tempestades. — O sorriso volta a brincar nos lábios, alargando-se até faiscar nos olhos castanhos.
Vinco a testa, seu humor mordendo o meu.
— É capaz de responder algo a sério?
— Estou respondendo a sério!
Uma veia pulsa na testa com a resposta risonha, e cerro mais as mãos trêmulas, apertando-as sob os braços cruzados; o ar frio chia e evapora ao entrar em contato com o calor abrasivo em meu peito.
Antes que eu possa reunir oxigênio e autocontrole o suficiente para retrucar, ele suspira, abandonando o tom brincalhão.
— Se quer saber, também fiquei em choque quando descobri o noivado. Cheguei a pensar que era algum tipo de pegadinha, fiquei um bom tempo encarando meu pai sem saber como reagir ou o que sentir… e então, quando algumas coisas começaram a fazer sentido, tive uma crise de riso nervoso.
— Quais coisas? — Franzo mais a testa.
— Explico depois — promete. — Mas ainda estou digerindo tudo isso também. Esses últimos dias foram meio-
— Dias? Já está sabendo há dias?
— Quase duas semanas.
— Duas… semanas…
— Precisava arrumar tudo para me mudar para cá, não é? — Ele ergue as sobrancelhas para minha indignação. — Não tinha como meu pai chegar para mim e dizer do nada: “Largue esses estudos inúteis e se mude para Thempesta agora mesmo. Envio suas tralhas depois.” — Engrossa a voz, fazendo-o parecer um senhor indulgente de nariz entupido enquanto gesticula um gesto de “xô” com a mão.
Aperto os lábios trêmulos com força, desviando o rosto para as janelas, trancando o inesperado riso que sobe coçando pela garganta.
— E mesmo nesse caso — ele continua em sua voz grave normal, com apenas um leve traço de sorriso — eu precisaria de ao menos três dias para chegar aqui a tempo. Se espantaria em como uma semana passa voando quando precisa se organizar para uma mudança… e ainda assim, só cheguei ontem à noite e várias coisas ainda ficaram para meu pai enviar depois.
— Ainda teve mais do que algumas horas para lidar com tudo — resmungo, voltando-me irritada com a injustiça, mesmo não sendo culpa dele.
— Nesse aspecto, realmente não tiro sua razão. — Aponta com o queixo para meu vestido. — Só me admiro que não tenha colocado um véu de renda preta também, para ironizar melhor a situação.
— Não tenho um.
Ele abre um sorriso largo, com duas meias-luas.
— Se tivesse, teria usado?
— Não.
Ele solta o ar de forma exagerada, numa risada nasalada.
— Lamentável.
— Posso dizer muitas coisas bem mais lamentáveis nessa situação. Além disso, senhor-questão-de-perspectiva, sua roupa parece tão fúnebre quanto a minha — desdenho.
Ele baixa o olhar espantado para as próprias roupas, parecendo pela primeira vez notar que a camisa — da qual só é possível ver a gola e as pontas das mangas — é a única peça branca. Mesmo que o colete verde não seja tão escuro, combinado à calça cor de chumbo e o preto do sobretudo, fica quase tão soturno quanto eu. Não fosse pelo sorriso.
— Estamos combinando, percebe? — ele dá uma risada. — E é ainda mais lamentável que esteja sem véu… a corte não iria saber se a proclamação é de um noivado ou de um funeral.
O riso involuntário sobe num bufo, antes que eu seja capaz de trancá-lo, a inesperada piada ressoando com meu humor atual. Mas ao ouvir seu risinho, torno a fechar a cara, mais irritada — comigo principalmente. Por que continuo alimentando assunto?
Abro a boca para intimá-lo a resolvermos de uma vez a questão do anúncio, como um esparadrapo puxado rápido, mas uma repentina rajada de vento passa assobiando entre nós carregando gotas da chuva como respingos de gelo.
Estremeço num calafrio, cerrando os braços com mais força, e ele também se encolhe.
— Não é melhor sairmos daqui? — Ele estende a mão direita para meu cotovelo, mas hesita a meio caminho e retrocede, a colocando num bolso lateral do sobretudo. — Esfriou agora e seu vestido não tem mangas…
— Estou ótima — retruco, mesmo sentindo os braços rígidos e trêmulos. — E para alguém tão fascinado por tempestades que pretendia se mudar para cá, se deixa abalar muito fácil com um ventinho desses.
— Isso quer dizer que também tenho que ser fascinado por ter um resfriado? — replica, erguendo as sobrancelhas. — E você é a mais exposta aqui. Ou está tentando me dizer que se tornou imune ao frio e a pneumonia?
Aperto o maxilar por um segundo, o dardejando com o olhar.
— Sendo assim, melhor atravessarmos logo o salão e anunciarmos de uma vez. Essa conversa não está indo para lugar algum e você continua sem dizer quem é.
— Que injusto, Mimosa — ele leva uma mão ao peito, em fingida decepção. — Respondi quase todas as suas perguntas. Se não conseguiu descobrir nada, é porque não está fazendo as perguntas certas.
— E quais seriam as certas?
— Com certeza não essa, Mimosa.
— Pare de ficar me comparando a um cachorro e responda de uma vez! — sibilo entre os dentes, batendo um pé.
— Responder o quê, exatamente? Quem eu sou ou quais as perguntas certas? — ele replica, cruzando os braços com risinho inabalável. — E chamá-la de Mimosa não é uma ofensa, para deixar claro. Ela é meiga até quando está prestes a mutilar alguém a mordidas.
Balanço a cabeça, incrédula, e aperto os lábios e punhos — contendo tanto o ímpeto de rir quanto o de esganá-lo. Não encontro alguém tão ridiculamente implicante nesse nível desde…
Todas as folhas dispersas de meus pensamentos revoam em minha direção, enfim formando o quadro do quebra-cabeças.
Meu coração sobe para a garganta, congestionando a passagem de ar com um ofego.
— Ei, está bem? — ele estende novamente a mão para mim, a implicância evaporando. — Venha, vamos sair-
Recuo dois passos vacilantes, balançando a cabeça, descrente. A mão direita se liberta da contenção sob os braços e agarra o anel pendente no cordão.
Não tem como…
Olhe direito para ele! Apenas olhe!
O bom-senso grita, quase como se pudesse arrancar os cabelos de nervoso, para se fazer ouvir por sobre meu coração.
E obedeço, procurando as peças familiares do quebra-cabeça.
A cicatriz irregular e antiga sob o queixo… de quando apostamos corrida nas pedras do laguinho do jardim, nos desequilibramos e ele me empurrou para a água rasa pouco antes de cair. O nariz absurdamente torto. Os cabelos pretos ondulados… embora não alcancem mais os ombros, é a mesma bagunça caótica provocada pelo vento. Os lagos de chocolate em seus olhos…
Ele balança a mão direita diante de meu rosto.
— Por que agora está me encarando como se eu fosse uma assombração? — indaga, inclinando a cabeça com um franzir das grossas sobrancelhas.
Então percebe o que estou segurando.
Um sorriso enviesado se espalha devagar. O sorriso que tanto me causou incômodo desde o começo, com a sensação de ter algo deslocado…
Como pude ser tão estúpida?
Tento reencontrar a voz, mas tudo o que sai de mim é um fiapo embargado.
— He… Hector?
O sorriso de duas meias-luas faísca até os olhos.
O mesmo sorriso travesso de infância.
— Finalmente percebeu?
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