Eu tinha dezoito anos, havia acabado de sair de casa, e, até então, só havia tido namorados. Meu pai sabia da minha bissexualidade, porque ela não era um segredo desde os meus 16, mas ele preferia invalidá-la do que buscar me entender.
Quando me apaixonei por Érica e a pedi em namoro, tinha consciência de que chegaria o momento de apresentá-la aos meus pais.
Minha mãe já estava há uns seis meses separada do meu pai e eu morava com ela desde os 16.
Dona Lina recebeu Érica com biscoitos e muita conversa constrangedora sobre quando eu era mais nova. E, meu Deus, como eu queria ter ficado só nisso, mas precisava contar ao meu pai e lidar com o que ele diria.
Érica, minha primeira namorada, era uma mulher branca de 18 anos com os cabelos mais loiros que já vi, estilo Izzy Stevens, e o sorriso e o olhar da Callie Torres. E isso é importante porque foram essas duas coisas que meu pai conseguiu arrancar de Érica com poucas palavras.
Se a bifobia dele tivesse ferido apenas a mim, eu teria relevado, como tantas vezes relevei, mas ela estava ali, apagando o brilho da mulher que eu amava, tirando dos seus lábios o seu sorriso à la Torres e essa era uma coisa que eu não podia tolerar.
Eu já não morava mais ali, já não dependia mais financeiramente dele. Não era mais obrigada a aturar aquilo. Foi aí que peguei na mão da Érica, disse ao meu pai que se ele não podia respeitar a mim e a minha namorada, então não tínhamos porque nos ver mais.
Depois daquele dia, seu Elias simplesmente cortou laços comigo. No fundo, eu desejava que o meu pai percebesse que o preconceito dele iria roubar da sua vida a sua única filha.
Eu queria com toda a minha força a acolhida dele, mesmo que eu soubesse que não teria isso nunca. Queria tanto que naquele dia ele tivesse segurado a minha mão, pedido desculpas a mim e à Érica, mudado de verdade, sido o pai que eu precisava..., mas nem todo o querer do mundo poderia fazer isso, então preferi estar ao lado de quem me amava por quem eu sou, e não apesar disso.
Sofri pelo afastamento no primeiro ano, não nego, mas depois de um tempo, quando eu estava começando a me curar da dor causada por Elias, entendi algo primordial: se o meu pai não queria ter uma filha incrível, eu não choraria por alguém incapaz de me amar como sou.
Elias preferiu prender-se aos seus preconceitos, eu preferi me desprender de tudo que me fazia mal, e ele era parte disso. Continua sendo.
— Você acha mesmo que eu já posso chamar ele pra sair? — pergunta Karine, me tirando dos meus pensamentos. Olho confusa para ela. Quando entendo, até abro a boca pra responder, mas fecho logo depois e pondero por alguns segundos. — Terra chamando Nat! — Balança a mão para atrair minha atenção, e eu pisco, crispando os lábios. Me perder em pensamentos é algo bem corriqueiro, na realidade.
— 3 meses é tempo suficiente, mana. Chama ele. Mas, por favor, Ká, não vá colocar sua boca em nenhum otário!
— A gente nunca se aproximou o suficiente pra eu pedir as redes sociais dele — diz, baixo. — Dois anos gostando dele e eu só sei o primeiro nome e que ele é chef no restaurante do final da rua. Aliás, eles pintaram as paredes, você viu? — Minha amiga leva a mão até a boca quando percebe o que diz.
Sorrio fraco para tentar dizer que tudo bem se ela terminar o comentário, mas a Ká não o faz. Karine fala desse cara há dois anos, mas sempre evita tocar nas informações que podem me machucar de alguma forma.
— Desculpa, eu não queria... — ela começa a falar, o tom e a face demonstrando toda a preocupação.
— Tudo bem, Ká — eu a tranquilizo. — Já faz dois anos. Não é como se eu fosse fugir do assunto pra sempre. Só não quero passar por lá, ainda. Não estou pronto pra esse nível de superação.
Sorrindo, vou até o sofá e sento próxima à Karine. Ela puxa a minha mão e a beija. Esse é um gesto nosso desde o ensino médio, quando nos tornamos amigas. É uma forma silenciosa de dizermos: “Estou aqui por você e isso não vai mudar.”
Ká sorri pra mim e eu encosto a cabeça em seu ombro. Nossas demonstrações de afeição em público já nos renderam muitas cenas do tipo “vocês formam um casal lindo”. Encaramos com graça quando isso acontece.
— A gente deveria sair hoje — sugere, animada. Estreito os olhos, tentada a recusar a proposta, porque ainda preciso responder a vários clientes. — Que tal irmos na Love in Fires? Você adora essa balada!
— Mas eu ainda tenho alguns e-mails para ler — começo, mas logo sinto Karine se levantar bruscamente e quase me fazer cair para o lado. Apoio o braço no sofá e engulo um palavrão pelo susto. — Ficou doida, mulher? — brinco, arrumando-me.
— Você trabalha 5 dias por semana sem parar, Natália. Precisa espairecer.
— Fala como se outras pessoas não trabalhassem muito mais. Aliás, eu saí semana passada. Transei com uma loira linda. Acho que ou ela ficou de me ligar ou eu fiquei de ligar pra ela — digo, tentando lembrar se eu dei meu número à mulher, o número destinado para esse tipo de coisa, claro.
Quando comecei a ter problemas para organizar as agendas, resolvi separar meus contatos em três números distintos: o profissional, para trabalho; o pessoal, para amigos e familiares; e o último destinado às pessoas que sinto tesão.
A Ká me faz parecer uma velha chata e viciada em trabalho, mas eu só gosto de manter as coisas bem separadas, talvez até demais, confesso.
Eu só não sei se devo sair hoje sabendo da existência de um problema rondando a minha cabeça. Sugiram alguns boatos de falência relacionados à minha empresa e isso me trouxe pilhas de clientes para acalmar.
O bálsamo nisso é ter vários clientes e investidores acreditando fielmente na minha capacidade. Eles só teceram elogios nos e-mails que passei as últimas duas horas respondendo.
É esse carinho o responsável por eu me manter no ramo publicitário, mesmo às vezes sendo tão cansativo estar eternamente batalhando por espaço, tanto por ser mulher, como por ser gorda e bissexual.
Embora eu já tenha uma marca consolidada, sempre há quem não entende a diversidade e por isso ataca pessoas apenas por elas serem diferentes do dito normal, como se não fosse descabido julgar os outros pela sua régua pessoal.
— Conversou com ela depois da transa? Sabe o nome, onde trabalha? Do que ela gosta?
Franzo as sobrancelhas diante das perguntas de Ká e demoro alguns segundos pra entender que está se referindo à mulher loira com quem transei. Se perder em pensamentos dá nisso.
— Ela gosta de ser bem chupada. Pra uma transa casual isso é o suficiente — respondo, direta, revirando os olhos para as indagações da minha amiga. Suspiro, coçando a testa.
Sei que Karine não está me julgando por transar casualmente, e sim apenas está preocupada por eu continuar mantendo distância de sentimentos amorosos mesmo depois de dois anos da morte do meu marido.
— Às vezes eu não sei se te amo ou te odeio, Natália — reclama Karine, esfregando a mão no rosto. — Amiga, nem toda a minha melanina é capaz de me livrar das rugas de estresse que você me dá ― diz, em um tom de brincadeira.
— O que você vai fazer? — pergunto ao vê-la pegar uma almofada e levantá-la. — Karine, não ouse! A gente não está mais no ensino médio — lembro, referindo-me aos momentos em que todas as meninas se juntavam. Aquilo sempre acabava em briga de travesseiros e conversas longas sobre a vida.
— Um...
— Você não está falando sério, né? ― questiono, segurando uma gargalhada.
— Dois... Vamos sair hoje, sim ou não?
— Essa é a chantagem mais boba que já vi — comento rindo, porém, ela não me dá ouvidos e levanta mais a almofada. Eu enfim franzo o cenho. Minha amiga está fazendo isso mesmo? — Ok, eu aceito, mas só porque preciso beber algo.
— A gente merece se divertir — diz, largando a almofada no sofá e comemorando com uma dancinha engraçada de braços. Me levanto rindo e vou em direção ao meu quarto.
— Ei — chamo ela da escada. Karine se vira e seu olhar curioso me faz rir. — Te odeio, Ká — digo, sorrindo.
— Também te odeio — retribui sorrindo e sai para ir se arrumar no seu apartamento.
Mando mensagem para Ian avisando sobre a saída e pedindo para ele e Isabela esperarem por mim e a Ká na garagem.
Ian Gomes é o meu chefe de segurança e Isabela faz parte da equipe dele. O homem começou a trabalhar pra mim quando a empresa cresceu em um nível surreal, leia-se: um nível onde eu e Ricardo passamos a receber ameaças sérias. Durante um tempo, eu e o meu marido ignoramos os alertas de amigos do ramo, só levamos eles realmente a sério quando quase fui sequestrada.
Depois do episódio, ficou impossível ir para os lugares relaxar tendo sobre os nossos ombros o medo de sermos agredidos ou sequestrados. Foi nesse momento que o Ian entrou nas nossas vidas.
Longe de mim odiar ter conseguido chegar onde estou, mas eu confesso que queria, de vez em quando, sair na rua e não ser reconhecida, não ter medo constantemente, poder ir em uma balada e não precisar chamar duas pessoas uniformizadas e com armas para me acompanhar. O meu conforto é lembrar das mudanças positivas provocadas pela N.A. na vida de tantas pessoas.
Sobre a equipe de segurança, tudo é conduzido muito bem pelo Ian e eu não me meto na sua forma de fazer o seu trabalho, até porque, se não confiasse nele, não colocaria a minha vida e a dos meus amigos em suas mãos.
De toda forma, preciso ser sincera e dizer algo: não gosto de ter alguém me seguindo, e vez ou outra sou irresponsável e saio sem Ian ou qualquer outro segurança da equipe, mas quando estou com Karine ou outra pessoa, sempre levo pelo menos dois seguranças. As suas ordens são para se misturarem com as pessoas e ficarem atentos.
Nem os meus seguranças nem eu saímos com carros chamativos. O preferido de Ricardo continua guardado, e é o mais caro dos três carros ainda mantidos na minha garagem. Tínhamos muitos apenas porque meu marido gostava de automóveis, era verdadeiramente fascinado por eles. Rick foi dono de uma coleção com 10 carros, dos mais variados modelos.
Quando morreu, eu vendi todos os automóveis seis meses depois, só ficando com o seu favorito, um modelo de 2017 do Audi RS 3 Sportback. O dinheiro arrecadado foi enviado para várias instituições de caridade que Ricardo apoiava sem eu saber, as quais passei a apoiar em seu lugar depois da descoberta da existência delas.
Hoje em dia mantenho um jipe, um Renault Kwid e um carro popular para o uso dos seguranças quando necessário.
“Estaremos na garagem em cinco minutos”, Ian informa por mensagem.
Ele e todos os seguranças de plantão geralmente ficam no andar de baixo. Como hoje é sábado e eu não pretendia sair, provavelmente apenas Ian, Júlio e Isa devem estar no prédio.
Largo o celular sobre a cama e vou me arrumar, decidida a ficar ainda mais gostosa. Dou um sorriso para o espelho ao olhar a mulher refletida nele.
Quando mais nova, eu não era capaz de enxergar beleza em mim como sou hoje em dia. Se agora vejo meu corpo de forma diferente, não é porque ele passou por mudanças drásticas durante os anos, mas sim porque eu aprendi a me encarar sem tanto ódio.
Karine tem razão. Merecemos nos divertir.
📌📌📌
Oi, meus amores! O que acham da relação da Nat com a Ká? Eu confesso que shiparia se a Ká não fosse, como diz a Nat, a mais hetero possível. ahshsahha. Espero que estejam aproveitando. <3
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