Avisos: esta obra menciona relacionamentos e comportamentos tóxicos, machismo, gaslighting, homicídio, sangue, objetos afiados, agressões física e verbal, e violência doméstica. Alguns capítulos contêm cenas de susto e fazem alusão a conteúdo sexual.
[É DU NORTE]
O trágico não-fim do casal Bolognesa: da morte passional às burocracias intermináveis da polícia belenense!
O famoso descanso pós-morte não parece ser o destino do casal Bolognesa. Após o suposto duplo homicídio praticado entre si, cujas causas verdadeiras ainda não foram reveladas, as autoridades policiais de Belém do Grão-Pará estão acomodadas em sua tentativa de convencer o fantasma do Dr. Bolognesa, dono do suntuoso palacete, a evadir-se do seu próprio imóvel. O medo do Palacete Bolognesa tornar-se uma Casa-Amaldiçoada percorre a vizinhança.
"Mal faleceram, que Deus os tenha, mas já estamos ouvindo o sopro de suas lamentações. Todos os dias esse casal gritava de um lado para o outro", comentou um dos vizinhos, que preferiu não revelar a própria identidade. "Sei desses dois aí, e Nossa Senhora de Nazaré que me perdoe pelo que vou dizer, mas duvido que não tenham se matado de tanta briga, e agora quem sofrerá somos nós com a maldição".
Mesmo pós-morte, o casal continua causando alvoroços no final da Avenida Gov. José Malcher e a Avenida Assis de Vasconcelos.
"Nem mortos eles nos deixam em paz!", desabafou uma vizinha, que também solicitou não ter o nome divulgado. "Escuto todas as noites as lamentações do Dr. Bolognesa! Aposto que aquela Margot é quem está prendendo o homem no palacete. Lembro quando se casaram... Ela era tão nova. Certamente foi por interesse, então é claro que ela quer ficar no palacete, usufruindo da riqueza do marido mesmo depois de morta".
Um dos antigos empregados do casal, o Sr. Pedro Pereira, afirmou que um grupo de trabalhadores ingressou com uma medida judicial para obtenção dos salários atrasados e demais indenizações:
"Passamos mais de seis meses trabalhando de graça. A despossessão do palacete não é só importante para prevenir uma Casa-Amaldiçoada em pleno centro urbano, como também para pagar nossos direitos. Queremos o pregão do Palacete Bolognesa! Se o palacete adquirir personalidade jurídica enquanto Casa-Amaldiçoada, nossos direitos serão limitados por décadas, quem sabe séculos. Não podemos permitir essa afronta!".
O delegado Astrogildo Esposito descartou quaisquer hipóteses que, segundo ele, são sensacionalistas:
"A Delegacia de Belém do Grão-Pará está providenciando uma medida rígida para a retirada dos fantasmas de dentro do palacete, a fim de que se possa continuar a investigação. Ainda não conseguimos acessar o local devido ao artigo 38 do Código de Fantasmas Nacional, que impede quaisquer autoridades não judiciais de invadir local regido por um fantasma que, enquanto vivo, detinha posse da propriedade sem deixar herdeiros vivos. Trata-se de um direito reconhecido, inclusive em Tratado de Direitos das Criaturas Mágicas e Sobrenaturais, aderido pelo Brasil em 1876. Gostaríamos que, por gentileza, as pessoas não chegassem a conclusões precipitadas sobre a causa mortis até que as autoridades consigam adentrar o local do suposto duplo homicídio para realizar as devidas investigações. Gostaríamos, também, de ressaltar que o incidente ocorreu há apenas dois dias, no máximo, segundo nossas suposições".
O Prefeito de Belém do Grão-Pará, Sr. Amâncio Valle, acrescentou:
"Tenho certeza de que o Delegado Esposito está tomando as melhores providências. Sabemos o quanto o falecimento de um casal reconhecido e querido na cidade não é uma notícia fácil com que lidar. É justificável a comoção, mas pedimos, encarecidos, que essa pressão seja suavizada para melhor acompanhamento do caso, e que o casal seja, antes de tudo, respeitado em sua pós-vida".
Enquanto isso, um denominado "Clube de Amantes do Mistério — CAM", também conhecido como "grupo de jovens adoradores da detetive Gomes", presidido pela Srta. Maria Bernadete Silva da Costa da Silva-Silva, está realizando campanhas para que a famosa detetive ingresse na investigação. A presidente do clube assim justifica:
"A detetive Gomes (suspiro) está de volta com a força de mil zepelins! Como devem saber, sua última investigação a respeito dos desaparecimentos de fadas na Praça da República foi um sucesso. Junto à sua adorada Dra. Doyle, a investigação foi tão rápida que durou metade de um dia. Estimamos o número concreto de vinte e seis vidas salvas naquele único dia, em uma operação que se originou da descoberta de quem estava sequestrando as fadas. Queremos Gomes nessa investigação".
O grupo de admiradores disponibilizou bandeirinhas e abanadores com o que chamam de cerquilha de campanha: "#QueremosGomesNoPalacete".
As autoridades não manifestaram se vão ou não chamar a detetive Gomes para a missão. Apenas sabemos que o povo clama pela liberdade da propriedade e consequente pregão público para que o palacete adquira um novo proprietário!
***
— Impressionante como o É du Norte sempre traz o pior lado da população belenense — comentei com Samantha enquanto ela lixava as unhas após minha leitura da matéria do dia. — Não entendo a agonia diante dessa tragédia. Deixem o casal em paz um tempo! Quem sabe os fantasmas deles não cheguem a um acordo. Só faz dois dias desde o falecimento deles, e os vizinhos juram que o palacete já está se transformando em uma Casa-Amaldiçoada.
— Ah, querida prima, tu deves saber melhor do que ninguém como é pessoas aleatórias envolverem o bedelho onde não são chamadas. — Samantha ergueu os olhos semicerrados em uma expressão quase diabólica naquele rostinho que disputava a verossimilhança com o Cupido. — Briga de casal não se põe sal alheio? Ora, ora, e esse fã-clube teu e de Agatha?
Senti meu rosto esquentar de vergonha. Tentei desviar o foco para o caso principal, mas minha prima não era tão distraída assim. Pigarreei.
— Trata-se de uma associação sem fins lucrativos com uma certa obsessão em Gomes especificamente. — Levantei-me da poltrona próxima minha penteadeira para ajeitar a cama já arrumada, tentando disfarçar meu rubor. — E, claro, meu nome é mencionado porque, veja, foram anos de parceria investigativa.
— Aham, até que vocês resolveram investigar a anatomia uma da outra... — Samantha conferiu as próprias unhas com deboche enquanto eu jogava um dos meus travesseiros em seu rosto. — Ai, Louise! Égua, mana, o que te deu? Falei alguma mentira, por acaso?
— Nós não somos... Eu não... Digo... Nós estávamos apenas emocionadas pelo sucesso da investigação em Sarreguemines. Apenas isso! Dividimos o mesmo aposento por motivos de força maior... O que não vem ao caso.
Samantha deu uma risada divertida.
— Tudo bem, Louise. Eu também estaria nervosa nesse tipo de situação. Afinal, foram anos de amizade esquecidos em uma única noite.
— Não sei do que estás falando. Nossa amizade permaneceu a mesma.
— Sim, certamente. Permaneceste tão igual que, após isso, noivaste com Norberto, e Agatha resolveu aventurar-se com outras parceiras de investigações anatômicas.
C'était trop¹.
— Merde, Samantha! Eu não quero falar sobre Gomes ou qualquer sirigaita que tenha feito parte da vida dela, por favor. Poderíamos apenas agir como boas primas? Já que mencionaste Norberto, que tal questionar-me sobre meu casamento? O arranjo de flores que mamãe escolheu? O vistoso vestido que provarei amanhã? Os macarrons maravilhosos que eu e meu pai degustamos em um dia desses para o buffet? O fato de que Norberto chega hoje para ensaiarmos parte do rito?
— Estou sendo uma boa... Não! Uma ótima prima ao lembrá-la de quem realmente deveria estar na tua cabeça, e garanto, prima não é teu noivo ausente que não sabe nem tua cor favorita ou teu prato favorito!
— Norberto se dedica bastante a esse relacionamento. Ele é bom, gentil e amoroso, e mais do que tudo isso: ele sabe o que quer, que é estar comigo, formar uma família, ao contrário de... Bom, o que quero dizer é que estou satisfeita com nossa relação.
— Dá pra ver.
— Isso foi uma ironia, Samantha?
— De forma alguma, mon cœur² — entoou ela, a última palavra com uma malícia carregada.
Revirei os olhos.
Eu, a Louise do presente, estou tremendamente invocada com a Louise do passado que, em sua jovem ingenuidade, acreditara que desabafar com a prima mais rebelde ajudaria a superar o afastamento quase autoimposto de Gomes. Chegou uma fase de minha vida que minha mente ia do presente aos "e se..." do passado e, para minha irritação, ainda que resignada, Samantha ainda era a única na família que poderia compreender: ela própria foi a mais nova da geração jovem dos Beauregard a dar as costas para a própria mãe — para o horror da minha maman, claro — ao decidir viver desventuras com uma violinista da Orquestra Sinfônica do Theatro da Paz e viajar pelo Brasil para acompanhar as apresentações da namorada. Lamentável que o relacionamento tenha findado três anos depois, mas Samantha nunca reclamou do período que passou longe do lar, voltando para casa com a cabeça erguida, ignorando os comentários alheios e vivendo perigosamente sua tão preciosa liberdade.
Eu admirava Samantha pela coragem de amar sem medida a liberdade, mas, embora aprecie a possibilidade de ser um pássaro sobrevoando uma praça, não consigo imaginar-me perdida em uma floresta, voando sem destino. Prefiro ser um "pássaro na gaiola" — termo que a própria Samantha usou quando desabafei sobre as incertezas de uma relação com Gomes.
— Já que estamos falando em aves... — disse Samantha naquela ocasião. — Lembre-se o que sempre digo por experiência própria: uma andorinha só não faz verão. Em algum momento, só o amor de Norberto não será suficiente.
— Eu o amo — dissera eu. Não era de todo mentira, eu amava seu jeito de me tratar.
Minha prima, àquela época, alguns anos antes, estava com um conjunto preto de maquiagem ao redor dos olhos, um escândalo de moda naqueles tempos. Lembro-me de Samantha usando luvas três quartos de renda preta em sua fase gótica.
— Não, tu amas a segurança que ele te traz. É diferente, acredite em mim... — Samantha deu-me uma piscadela. — Já fui um passarinho na gaiola, é bastante agradável quando te acostumas com pessoas te alimentando todos os dias com afeto. Tens que pensar nos grilhões que te prendem, prima...
Um assovio e um estalo de dedos me tiraram da introspecção momentânea. Samantha sacudia a mão sobre meu rosto enquanto a outra estava apoiada na cintura em seu vestido florido e drapeado — sem dúvida, uma mudança radical de estilo desde aqueles tempos, não pude deixar de notar.
— Não sabia que te chamar de "mon cœur" seria tão divertido assim. — Ela riu, a mão na boca para conter uma gargalhada.
Antes que eu pudesse abrir a boca para pedir que não usasse aquele apelido carinhoso que eu dedicava somente a uma pessoa em particular, a própria Samantha mudou de assunto:
— A propósito, viste o leilão ma-ra-vi-lho-so que Lady Morgana vai fazer? — Seus olhos azuis como os meus quase saltaram das órbitas.
— Leilão? — Cruzei os braços fingindo interesse, aliviada e ansiosa para desviar o foco da conversa, e, ao mesmo tempo, decepcionada por não continuá-la.
— Sim! Acredito que os negócios da vampira socialite não têm dado muito certo, não é? Ouvi dizer que é um leilão privativo, só para pessoas da mais alta sociedade belenense. Entre os utensílios estão alguns artefatos da família Baudelaire, incluindo um livro antigo sobre o preparo de poções com essência de criaturas mágicas.
Franzi o cenho. Havia um caso investigado por Gomes e, por livre e espontânea pressão, eu, em novembro do ano passado, cerca de quatro meses antes daquele alvoroço envolvendo a morte dos Bolognesa. Gomes tinha uma obsessão quase irritante por Lady Morgana, uma das aristocratas de famílias vampiras antigas da Europa. Era uma obsessão que beirava os épicos narrativos de quando um herói precisa ter um antagonista para continuar motivado... Ou um amante ardil e ardent. Entretanto, eu gostava de pensar que essa última hipótese era apenas ciúme velado da minha parte, mas nunca admitiria em voz alta.
Um dos apontamentos de Gomes era, justamente, que Lady Morgana estava por trás do sequestro das fadas, o que para mim não fazia muito sentido, considerando que o criminoso era somente um homem rico com o desejo de manipular a imprensa no sentido de desmentir as matérias sobre suas "traições" para deixar a esposa mais aliviada ao limpar o nome manchado da família.
— Livro antigo sobre confecção de poções com criaturas mágicas... — repeti, desconfiada. — Gomes falou algo a respeito na época. Talvez ela não esteja errada em suas conclusões.
Indiferente à minha introspecção, Samantha continuou:
— Lady Morgana e suas obsessões: livros, perfumes, imóveis chiques... Já viu. E o Palacete Bolognesa está sendo muito disputado, e com os fantasmas, então... Aposto que ela virá ao pregão do casarão!
Dei uma risada nervosa. Se Lady Morgana tivesse qualquer interesse naquele palacete, Gomes não demoraria muito a querer participar daquela investigação com o Delegado Esposito, mesmo que ele não tivesse sido informado sobre tal parceria.
— Esse livro aparentemente é a única relíquia da família sendo leiloada. O resto é tudo de uma viagem que ela fez da Inglaterra para cá na década de 1890. Lembra que nossos pais sempre comentam sobre o ano em que Lady Morgana voltou de viagem, carregando malas gigantes de quinquilharias caríssimas de lá? — Samantha contemplou o teto, pensativa. — Queria ter dinheiro para comprar pelo menos um pente inglês. Fico aborrecida que sejamos descendentes de franceses, e não tenhamos nada além de nome e vocabulário.
— Nossos pais eram oficiais, Samantha, não herdeiros!
— É, essa tradição de casar-se com oficiais bem que podia acabar na sua vez. Não seria perfeito?
— Não entendo, por quê?
— Assim não serei obrigada a casar com um!
Nós rimos. De fato, na família Beauregard havia uma tradição não tão intencional, ou assim acreditávamos, de que as mulheres se casassem com oficiais, fossem militares do exército, da marinha ou da aeronáutica de zepelins. Eu era a décima Beauregard a se casar com um oficial e a terceira a noivar com um da marinha de patente superior. Meu pai, por exemplo, aposentou-se como Capitão do Exército Nortenho.
— Será que detetives contam como oficiais? — Samantha ergueu as sobrancelhas, presunçosa. Fui do riso ao choque e depois à raiva, sentindo o sangue quente subir pelo rosto com a retomada do foco anterior. — Não para ti, claro, afinal, já estás com um Almirante cobiçado. Falo de mim. Quem sabe não possa vir com uma nova modalidade de oficial na família? Eu ado-ra-ria estrear a modalidade investigadora.
E deu uma piscadela que deixava pouca margem para as saliências que Samantha certamente estava pensando.
— Ah, gostarias então de estrear a modalidade de ser um cadáver apodrecido em minha mesa no consultório? — Minha voz soou suave, deixando a frase ainda mais aterrorizadora, dados os olhos arregalados de minha prima.
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¹ "Foi demais" (tradução livre).
[Continua na Parte 2]
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