— Égua, que isso? — Samantha aproximou-se dele, arrastando um pouco os lençóis.
— É o pombo-robô de Gomes... — Quando notei que ela se aproximava cada vez mais, considerei prudente alertar: — Cuidado, ele pode explodir!
Samantha exasperou-se e arredou-se para longe dele, ficando perto de minha poltrona. O pombo-robô contorceu-se, suas engrenagens enferrujadas soltando um som de esforço que, combinado com a maneira como virava a cabeça em 360 graus, parecia um espécime de criatura demoníaca.
— Esquece o que eu disse sobre Gomes ser seu par ideal — Samantha disse em desespero ao apertar a manga do meu vestido. Bufei de tanto segurar o riso.
— P-Prezzzada Louui-sse! — O pombo-robô soltou em um som quebrado.
— Estás falando!
— Minha Nossa Senhora de Nazaré, e ainda fala! — Samantha apertou ainda mais meu braço, fazendo sinal da cruz.
— Aquiii queem faa-laa é Gooo-meess.
— Oh! — Meu queixo caiu de surpresa. — Como assim?
— Puuxxa o bicc-co.
— Puxa o pino? — Aproximei-me para verificar.
— Bic-co.
— Ah, sim. — Peguei a parte de cima do bico que estava emperrando uma placa próxima dos olhos em caleidoscópios do pombo e, então, puxei. O robô começou a se contorcer até dar um salto, as asas alongando-se como em alívio.
— Maravilha, minha cara Louise! — A voz de Gomes, misturada a ruídos, soou do bico do pombo. O som saía como se ela estivesse atrás de um conjunto de engrenagens.
— Que interessante! — Samantha aproximou-se e parou atrás de mim. — Oi, Gomes. Lembras de mim, meu bem?
— Ah, perfeitamente, minha cara Samantha. Quanta honra poder revê-la... Ou melhor, escutá-la.
— Que sensacional sua nova engenhoca! — admirou-se Samantha. Eu mesma estava admirada, contrariando meu instinto de sobrevivência gritando "fique longe disso", devido a experiências traumáticas.
— É um protótipo de comunicação sem necessidade de uso de cartas. Estou aprimorando para que o Theobaldo adquira uma forma mais portátil, inclusive para que eu o leve no bolso.
— Theobaldo? — ri.
— Sim, tal como gostarias de chamar um filho teu. Recordo-me do teu nome favorito.
Revirei os olhos.
— Gomes, não é "Theobaldo"! É Thibault.
— Theobaldo é Thibault. São equivalentes. "Thibault" é francês e "Theobaldo" é português — respondeu Gomes, teimosa. — Precisamos descolonizar o nome dele!
Samantha gargalhou.
— Theobaldo foi demais até para mim! Que gosto horrível, Louise!
— Estás correta. Nem nome, nem noivo Louise sabe escolher.
— Ah, sem sombra de dúvidas — concordou Samantha. — Talvez o único bom gosto dessa minha adorada prima tenha sido ser sua parceira de investigação... — Ela cutucou-me, dando uma piscadela.
— Eu diria "a vaga está disponível", mas tenho duas observações: a primeira é que, considerando que vocês estão juntas no mesmo recinto, é capaz de o Delegado Astrogildo ter que se dividir em dois para investigar não apenas o possível homicídio duplo do casal Bolognesa, como também um possível caso de homicídio cometido por uma médica contra a própria prima...
Dei um olhar à Samantha confirmando exatamente o que Gomes queria dizer.
— A segunda observação é que preciso de Louise, então, não posso flertar com a prima dela.
— Como é que é? — vociferei, indignada.
— Flerte profissional, mon cœur.
— Que seja... — Suspirei, cansada dos joguinhos das duas. — Para que precisas de mim, Agatha? — Senti uma leve cotovelada na barriga e olhei rapidamente para Samantha. Ela continuaria a demandar minha atenção até finalmente tê-la.
— Agatha? — Samantha repetiu o nome de Gomes em um sussurro, erguendo as sobrancelhas várias vezes com um significado por trás do gesto que eu só poderia supor como implicância. Ao perceber que não dei atenção, virou-se para o "Theobaldo". — Posso te chamar de Agatha também, Gomes?
— Claro que sim! — respondeu Gomes, simpática até demais.
— Ah, e mon cœur também? — Samantha cavou a própria sepultura e deu uma risada com meu olhar sobre ela.
— Já chega! — Intervim antes que realmente cometesse um homicídio. — Gomes, do que precisa?
Gomes deu uma risada bem-humorada, como se tivesse visto o que acabara de ocorrer, e observei aquela parafernália voadora com mais atenção, tentando descobrir se realmente não existia nenhum mecanismo suspeito que pudesse fazer com que ela visse nossos semblantes.
— Objetiva e assertiva, como sempre amei! — disse Gomes, fazendo-me corar. Samantha uniu as mãos e fez um beicinho, como se visse uma cena romântica de um filme. — Bom, cara Louise, desconsidero importante reiterar tamanha comoção que está tendo a investigação no Palacete do Dr. Bolognesa pelo medo da população do centro urbano em conviver com uma Casa-Amaldiçoada, já pensou? Ah, as burocracias de se conviver com um local de personalidade tão sui generis é de deixar qualquer um preocupado. Pois bem, por esse motivo, fui convidada pelo Delegado Astrogildo a tentar adentrar a residência e verificar o que gerou o falecimento do casal, descobrir os grilhões que os prendem a este mundo para depois tentarmos convencê-los a sair e, enfim, disponibilizar o palacete para o pregão popular. Eu, honestamente, pensei em recusar, porque tenho algumas consultas médicas marcadas devido ao excesso de cafeína, aparentemente, mas... Maria Bernadete, lembra dela?
Reprimi um gemido de descontentamento. Era óbvio que eu lembrava da admiradora assumida de Gomes, que conhecemos durante a investigação dos desaparecimentos das fadas na Praça da República.
— Pois bem, recebi inúmeras cartas dela e de outros admiradores nossos, por assim dizer, então pensei: "Ora, nunca mais vi Louise, e meu coração padece de sua ausência, então, por que não convidá-la a se aventurar em mais uma descoberta?" — Novamente um rubor cobriu o meu rosto, intensificado pela risadinha contida de Samantha. — Para deixá-la mais tranquila, deixo claro que não estaríamos cometendo nenhuma infração. A equipe do Delegado Astrogildo ainda não conseguiu entrar, por conta da morosidade do Poder Judiciário, que ainda não abriu a exceção aos direitos fantasmagóricos. Neste caso, então, por ordem do delegado, obtive alguns banhos-de-cheiro que vão nos ajudar a ingressar no Palacete sem que os fantasmas dos Bolognesa percebam nossa presença. Então, Louise, daria a honra de ser minha companheira em mais uma aventura?
Ao meu lado, Samantha suspirou apaixonadamente enquanto punha um dos braços em meu ombro.
— Agatha é tão romântica, Louise! Até te propôs!
Meu cérebro ainda estava processando todas as informações, desde o fato de recebermos ajuda das fadas para investigar o palacete, o que denotava profunda gratidão pelo que fizemos, até o alcance midiático, assustador, do clube de admiradores presidido por Maria Bernadete. No entanto, apesar de todos aqueles fatos, um deles mais me chamou a atenção, causando-me um reboliço de raiva que me constrangeria se não fosse um sentimento irracional:
— Agatha... Como assim está indo a consultas médicas e a médica não sou eu?
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² "Meu coração" (tradução livre).
Continua...
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CRÉDITOS
Autora: Giu Yukari Murakami
Edição: Bárbara Morais e Val Alves
Preparação: Val Alves
Revisão: Gabriel Yared
Diagramação: Val Alves
Título tipografado e montagem da capa: Fernanda Nia
Ilustração da capa: Maiara Malato
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Infelizmente o Tapas não é acessível para descrições de imagem (texto alternativo), então se você quiser ver a imagem com o jornal fictício "É du Norte" no início do capítulo, recomendamos que assine nosso envio por e-mail (noveletter.substack.com) ou torne-se um apoiador do Catarse (catarse.me/noveletter_).
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