Avisos: esta obra menciona relacionamentos e comportamentos tóxicos, machismo, gaslighting, homicídio, sangue, objetos afiados, agressões física e verbal, e violência doméstica. Alguns capítulos contêm cenas de susto e fazem alusão a conteúdo sexual.
Após o almoço com minha família, regado de assuntos sobre meu casamento com Norberto, encontrei-me com Gomes em frente ao Palacete Bolognesa. Enquanto descia do bondinho, após ouvir duas senhoras comentando da nova moda de luvas rendadas, avistei a arquitetura originalmente europeia, com algumas características do rococó em suas paredes amareladas. A cobertura à la mansard¹ possuía telhas pintadas para refletir a luz solar, já obscurecida pelo nimbo constante de carvão e óleo queimados em zepelins, carros e bondes.
Aquela era uma propriedade mais cobiçada do que seu falecido dono, o Dr. Bolognesa, um engenheiro abastado e conhecido por suas preferências clássicas, fruto de sua vida na Europa. A sociedade belenense da geração de minha mãe enxergava-o como um grande investimento marital. Foi assim durante anos, até ele retornar de uma viagem da Inglaterra em plenos votos de noivado com Margot Maxime, uma pianista francesa nem um pouco conhecida em nossas regiões.
Dizia minha mãe que o Dr. Bolognesa construiu aquele palacete como um presente de casamento para a noiva. Foi uma notícia espalhafatosa à época, e o casal proporcionou várias festas, das quais somente a elite participava. Nomes conhecidos foram convidados para a celebração do matrimônio, como a família Machado di Pietro, os Casavecchia — donos do jornal É du Norte —, Lady Morgana, Dom Juan Perez e outras grandes figuras. Assistir ao casamento era um sonho inalcançável para a juventude não privilegiada da cidade.
A entrada decorada com elementos florais adornava o semblante de Gomes. Ela usava suas roupas de costume: uma calça folgada, camisa de manga comprida de botão em tons pastéis e um colete que lhe servia para armazenar as bugigangas que certamente utilizaria para a investigação. Seus cabelos castanhos, normalmente presos, estavam soltos, e a brisa de meio-dia sacudia algumas mechas, emoldurando seu rosto e fazendo com que seu pequeno sorriso de cumprimento fosse uma obra de arte em que o pintor era a própria natureza. De longe, senti um cheiro almiscarado e doce, e um outro que não pude identificar a princípio.
— Ah, Louise! Que prazer em revê-la. — Quando se virou por completo, notei o cordão de barbante com alguns frascos de banhos-de-cheiro, o que explicava o aroma de patchuli.
— Gomes, quanto tempo. — Sorri, e ficamos alguns segundos nos encarando, um constrangido silêncio fazendo companhia. Pigarreei. — Tem em mente como procederemos com a missão?
— Ah, mas é claro! Aproveitei para pegar a planta do palacete no Museu Arquitetônico... — Gomes deu uma piscadela. — Bons contatos que preservo. Lembra-se daquela investigação que fizemos para os curadores do museu quando um colar com muiraquitã original das Icamiabas desapareceu?
Dei um sorriso nervoso. Claro que lembrava com carinho e ranço daquela investigação. Gomes havia conseguido me tirar de uma prova importante da faculdade alegando urgência — o que para uma médica significa "risco de morte", e não um desejo de solucionar um mistério — para um final de semana adentrando os porões e passagens secretas no Museu Arquitetônico até encontrarmos o sobrinho da prima do curador principal do museu, que organizava leilões clandestinos de itens raros. A motivação de Gomes: provar que Lady Morgana estava por trás desses leilões. Resultado: sair na capa do jornal com um certificado de reconhecimento por recuperar o item, e ajudar-me a perder o título de melhor aluna do semestre para Misato, minha rival acadêmica na época.
— Aqui estão os cômodos que vamos investigar... — Gomes ergueu a planta na horizontal, permitindo que víssemos o interior segmentado do palacete, distribuído em dois andares e um sótão. Havia alguns riscos de "NÃO" em locais como aposento de empregados, banheiro público, quarto de hóspedes, lavanderia e salão de recepção. — Pedi às fadas que previamente adentrassem o recinto para verificar os locais com maior atividade fantasmagórica, o que nos levará ao quarto do casal, à sala de música, à cozinha do café da manhã e uns outros...
— Há mais de uma cozinha? — indaguei, surpresa.
— Aparentemente. — Gomes deu de ombros. — E o corredor principal. Milena Calypso, que liderou as fadas no palacete, atestou que esses são os locais com maior movimentação do casal morto, o que vai nos fazer economizar algumas horas de investigação, mas ela não garantiu que não encontraremos sinal deles em outros cômodos. Só que também não temos todo o tempo do mundo. Não queremos que o juiz autorize os policiais a ingressarem antes de acharmos a solução. Era só o que faltaria, os policiais ganhando meus louros enquanto estou aqui, há três dias acordada direto, à base de cafeína, para pensar em saídas mais ágeis para entrar no palacete!
Meu olhar dizia claramente que não havia um "não queremos" ou "queremos" nesse caso. Não havia nenhum "nós" entre nós duas, e Gomes, se percebeu, ignorou-me.
— Aproveitei que passei pela feira do Ver-o-Peso e fui cumprimentar umas amigas erveiras. Veja o que ganhei: "Comigo ninguém pode!", "Afasta visagem", "Mostra o que não quer ser visto", "Espanta lobisomem", "Abre caminho"... — Ela foi mostrando e explicando cada um dos frascos coloridos com seus respectivos rótulos, enquanto parecia não se importar com o fato de que seus dois primeiros botões da camisa estavam abertos, revelando uma parte do colo. Esforcei-me para pôr meus olhos nas cores vibrantes dos frascos em tons de amarelo, verde, azul e, então, um que ela amaciou, vermelho-vivo. Não ouvi nada do que falou, e só consegui erguer minha vista quando ela, literalmente, pôs um deles perto dos meus olhos. — Este é meu favorito!
Abriu a tampa e aproximou o frasco do meu nariz. Era um cheiro inebriante que combinava um toque apimentado, um almíscar amadeirado e um suave patchuli. Pisquei, quase embebecida. Ela riu.
— É, parece que funciona!
— O que é esse?
— "Faz querer quem não me quer".
Revirei os olhos e contive-me para não lhe dar um tapa enquanto ela ria.
— Gomes, estamos em uma investigação! — Senti a queimação de constrangimento do peito às bochechas. Queria dizer tanto com aquilo, vontade reforçada pela conversa infeliz com Samantha, mas não consegui dizer ou fazer nada além de cerrar os dentes e respirar fundo para controlar a ruborização.
— É curioso como, sempre que está envergonhada, os aspectos profissionais ganham um contorno mais destacado. — Gomes sacudiu os banhos-de-cheiro e virou-se para o palacete, focando no telhado. — Interessante como os detalhes florais da entrada contrastam com o gótico nas agulhas do teto.
Encarei o telhado e prestei atenção no revestimento do imóvel. Parecia abandonado de perto, não suntuoso como antigamente. Algumas manchas acinzentadas e musgos se proliferaram pelas laterais. Embora as portas estivessem fechadas, era como se um suspiro viesse de dentro, uma corrente fria que se estendia pela escadaria até a calçada quente.
Esfreguei o braço quando senti o arrepio. Não era a primeira vez que eu e Gomes nos deparávamos com um caso envolvendo fantasmas, mas, como uma médica não legista, eu era a pessoa habilitada para salvar vivos, impedi-los de chegar a esse estágio, então não, eu não era a maior entusiasta ao lidar com mortos e seus espectros ainda tão vivos em matéria ectoplasmática ou em memória. E quando a morte inevitável sombreava uma cirurgia que eu porventura estivesse fazendo, só o que eu desejava era que a alma do meu paciente seguisse em frente, sem sussurros de traumas terrenos.
Um corpo morto não podia ser salvo, assim como algumas palavras podiam ser levadas pelo vento sem retorno, e algumas decisões podiam ser derradeiras. Todos esses elementos juntos levavam à grande incógnita que era lidar com fantasmas. Nunca se sabia como os ecos da vida se manifestariam no pós-morte, eis a dificuldade para pessoas racionais como Gomes lidarem com aquele tipo de investigação. Não havia um padrão a ser seguido, não havia uma solução prática experimentalmente realizada ao longo de anos de pesquisa, não se podia deduzir... Não! Era mais empatia e indução do que qualquer outra coisa.
— Louise... — Gomes encarou-me seriamente. — Eu a chamei por respeito ao nosso trabalho realizado com as fadas. Prometi a elas que a convidaria, mas sei que você não é muito adepta de investigações dessa espécie, embora sua... hm, sensibilidade pudesse ser muito útil. Ainda assim, quero que saiba: nada do que pretendo fazer aqui é uma obrigação sua. Posso entrar e...
— Não ouse sugerir que eu permitiria que ficasse à mercê de dois fantasmas em um casarão como esse. — Interrompi, e então sorri o mais confortavelmente que conseguia. — Estou bem, Gomes. Eu sempre fico bem quando estou com você.
Seus olhos arregalados foram os únicos indícios que me fizeram perceber a bobagem que eu havia dito. Era uma mentira, claro! No tempo em que ficamos afastadas, meus humores oscilantes pelas expectativas de suas ações, que eu mesma criava, e a realidade que vivíamos, não me vieram à mente quando soltei aquela frase. Mordi o lábio, amaldiçoando as conversas que tive com Samantha antes de ir ao encontro de Gomes. Talvez, toda vez que o assunto éramos eu e Gomes, nós duas, meu inconsciente se empolgasse com ideias que não poderiam sair do seu lugar imaginário, do campo das ideias.
— Eu... hm... Então, vamos! — Gomes finalmente disse. — É elementar que, para o início de uma despossessão fantasmagórica, tenhamos a autorização dos próprios fantasmas que assombram o local, caso não haja herdeiros. — Começamos a subir as escadarias da entrada enquanto Gomes continuava: — Todavia, para algumas regras, existem exceções, e algumas delas envolvem lidar de forma não convencional.
Ela tirou um dos frascos do cordão de barbante.
— O "Afasta Visagem" impedirá que o Bolognesa e sua esposa reconheçam nossa entrada...
— Mas isso não nos impede de sermos invasoras. — Engoli em seco quando um sopro gélido e grave saiu pelas frestas da porta de entrada, e desabafei choramingando: — Por que não podemos só expurgá-los mesmo?
— Não se expurga fantasmas, Louise. — Gomes encarou-me antes de abrir a rolha do frasco do banho-de-cheiro de cor roxa. Ela continuou a explicação retórica, sabendo que eu tinha conhecimento de tudo o que tinha a dizer: — Podemos exorcizar demônios e expurgar memórias amargas, mas fantasmas foram, antes de tudo, pessoas. Se donas dessas memórias ou vítimas desses demônios, só saberemos investigando.
O líquido roxo trazia um aroma de cadáver, eu sabia disso pela quantidade de amônia, fenol, formol e naftalina que usavam em necrotérios, porque: ou fui obrigada a frequentar para cumprir minhas aulas de anatomia ou fui arrastada por Gomes.
— Vamos mesmo espirrar isso na gente? — questionei, e, antes que obtivesse uma resposta, Gomes jogou parte do líquido em minha cabeça, e depois na sua própria.
Uma sensação de leveza me trouxe uma tontura, e tive medo de estar perdendo a noção da gravidade. Somente os olhos castanhos de Gomes lembravam-me de que precisava me manter em pé. Senti seus dedos quentes se entrelaçarem nos meus, e, juntas, demos um passo para a porta de madeira, adentrando o palacete como se atravessássemos uma manteiga, tão densos e diferentes que eram os ares dentro e fora do palacete.
De repente, estávamos em um hall escuro, iluminado apenas pelas aberturas das janelas fechadas e gradeadas. O ar estava cinza-azulado, neblinado por um clima completamente oposto àquela rua, que era de um sol escaldante envolto à fumaça dos veículos da cidade. Senti meus pulmões comprimidos pela atmosfera pesada e pendi para a frente, zonza.
— Louise!
[Continuação da Parte 1]
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