A voz distante e preocupada de Gomes despertou-me. Ofeguei em busca de ar, mas a densidade daquele lugar parecia ter entupido minhas vias nasais. Senti uma dureza fria dos meus quadris para baixo, encostando no chão de madeira polida. O resto do meu corpo estava, para o meu assombro, deitado no colo de Gomes, seu rosto já tão próximo do meu que eu sentia sua respiração quente, seu hálito de menta — ela ainda usava a mesma pasta de dente, será? — fazendo cosquinhas em minhas bochechas coradas pela posição comprometedora em que estávamos.
Suas expressões normalmente curiosas e distraídas transformaram-se em uma carranca de apreensão. Com os dedos trêmulos, desfiz o nó franzido de sua testa, a textura suave de sua pele contrastando com minha luva de renda, e, ainda fraca, deixei cair a mão na gola de sua camisa.
— Louise?
— Estou bem! — menti, minha voz rouca. Pisquei para acostumar meus olhos à neblina que sobrevoava ao redor e, então, fiz menção de me levantar. Gomes ajudou-me, e eu cambaleei, apoiada em seus ombros. — Apenas a mudança de temperatura causou-me mal-estar.
— Não foi só a mudança de temperatura. — Gomes abriu o colete, de onde tirou o que acreditei ser uma luneta antes de sacudir e emitir uma luz, transformando-se em uma espécie de lamparina sem óleo. A luz iluminou a entrada, permitindo que víssemos as paredes decoradas com uma tapeçaria de veludo desgastado pelo tempo, com desenhos de espadas prateadas, cruzadas em fundo preto. — Esse local está carregado.
— De repente tão religiosa, Gomes? — Tentei provocar, mas minha voz trêmula denunciava meu nervosismo enquanto pisávamos no tapete geométrico que o Dr. Bolognesa provavelmente obtivera em uma de suas viagens ao Líbano.
— A religião, tal como a ciência, é uma forma de ver o mundo, minha cara Louise. — Gomes segurou minha mão, e eu fiquei grata por ter usado minha luva de renda para que ela não sentisse o suor gélido que escorria de minhas palmas. — Mas, nesse caso, refiro-me àquilo que é concreto e perceptível, afinal, estamos novamente em uma investigação fantasmagórica, e isso traz efeitos colaterais conhecidos.
— É diferente do que aconteceu em Sarreguemines...
Gomes parou no primeiro degrau da escada, encarando-me.
— Certamente não é a mesma situação de Sarreguemines! — Seus olhos castanhos pareciam irradiar lembranças que não queríamos compartilhar em voz alta, então, começamos a subir as escadas em silêncio enquanto passávamos pelos porta-retratos alocados na parede, pela tapeçaria repleta de poeira ameaçando entupir minhas narinas. Coloquei um lencinho no nariz para evitar respirar aquela sujeira e observei as pinturas em molduras amadeiradas. Uma delas se destacava: era o Dr. Bolognesa, o bigode ruivo de escovinha o denunciava. Nela, vestia um de seus ternos azul-marinho caríssimos, lenço branco no bolso da frente e um olhar de quem sabia que estava prestes a ser eleito o maior engenheiro da região.
Havia outros retratos dele, eu supus, de quando era mais novo. Seus pais eram italianos, mas viveram no reino britânico por mais tempo do que no outro lado da Europa. Cada lance de escada levava-nos a outra série de retratos dos Bolognesa, o corrimão repleto de poeira tanto quanto a parede.
— O que aconteceu com este lugar? — sussurrei. — Não parece o mesmo que palacete suntuoso que minha mãe comentou ter visto em jornais.
— Já faz algum tempo desde que viram algum empregado por aqui — explicou Gomes sombriamente. — Não estavam sendo pagos. Crise talvez? Desmazelo? De qualquer forma, a maioria está pedindo indenização pelos salários atrasados, o que só será possível por meio do pregão e venda do imóvel.
Ao finalmente chegarmos ao último andar, notei um retrato pequeno e quase insignificante do Dr. Bolognesa e sua esposa, Margot Maxime, uma mulher magra, de estatura alta, até um pouco maior que o marido. Seus cabelos louro-pálidos, pintados em tinta a óleo no retrato, seus olhos azuis-turquesa encaravam com tristeza para além da tela. Os dois estavam vestidos de noivos, em frente à entrada da Basílica de Nossa Senhora de Nazaré, a plataforma enfeitada com fitinhas coloridas, um contraste gritante de felicidade, se comparada às expressões da noiva. O Dr. Bolognesa, porém, ostentava a mesma carranca presunçosa de todas as outras retratações.
— Um retrato com a esposa, e o resto, só dele e de seus feitos — comentei, tentando não usar um tom de julgamento, mas já usando. — Ele realmente construiu esse palacete para a esposa?
— As histórias sempre contam que homens dedicam suas maiores obras às amadas, mas, no fundo, as verdadeiras musas são eles próprios. — Ela deu um meio sorriso e, sacando o mapa da planta do interior do colete, colocou a luz da luneta-lamparina sobre o papel. — Bem, vamos começar pelo óbvio: quarto do casal.
Ao empurrar a porta, Gomes acabou aplicando mais força do que deveria, e um rangido ingrato ressoou. Ficamos em silêncio, respirando, vagarosas, enquanto um sopro passava por nós duas. Senti arrepios por todo o corpo quando o espectro atravessou o corredor, uma nuvem escura e densa, como um prelúdio de um temporal horripilante. E, ainda que tivesse forma humana, era distorcida, contra as leis naturais. Aproximei-me de Gomes, sentindo meus pelos eriçarem pela respiração arrastada que ouvi.
— Quase fomos pegas — sussurrou Gomes, tensa. — "Afasta visagem" não funciona com objeto, só com alma.
— Então que tal não fazer barulhos enquanto um fantasma, em seu pleno direito de ir e vir, ronda a própria mansão? — grunhi em resposta, agarrando a manga de sua camisa, meus dedos trêmulos. — Quanto tempo a magia das fadas vai durar?
— Cerca de três a quatro horas. Como dividimos, imagino que os efeitos tenham caído pela metade.
— Por que não comprou um pra cada? — perguntei esbaforida. Gomes boquiabriu-se.
— Eu ganhei este. Sabe quanto é um banho-de-cheiro "Afasta Visagem"?
Inspirei fundo, querendo me estapear pela pergunta tola.
— Então precisamos nos apressar, vamos! — Tomei a liderança, mais preocupada em ser pega pelos fantasmas do que em resolver o crime a tempo. Só queria sair daquele local.
Caminhamos nas pontas dos pés para dentro do quarto do casal, um enorme recinto que, para o tamanho, detinha poucos móveis, consistindo apenas em uma colossal cama enfeitada com edredons cor de vinho e um dossel ostentando cortinas semitransparentes com figuras de cisnes bordados. Em uma das paredes, uma estante de livros empoeirada, que parecia intocada fazia meses. Ao lado da cama, havia um armário grande de cedro, com alguns ternos expostos e repletos de teias de aranha. Do outro lado, uma penteadeira pintada de dourado, cuja superfície tinha uns pequenos frascos de perfumes importados espalhados junto a um pente com haste de prata. Reconheci-os logo, pois eu mesma havia trazido alguns da França.
Ao pisar em um assoalho solto, provoquei um som agudo com o salto.
Gomes e eu nos entreolhamos assustadas quando a mesma neblina adentrou o quarto. Prendemos a respiração enquanto o fantasma rondava o aposento, transpassando Gomes quase que inteiramente. Ela piscou e segurou no batente da cama. Fiz menção de ir até ela e conferir se estava bem, mas Gomes ergueu a mão em sinal de "pare". Engoli em seco, sentindo uma gota de suor deslizar pela minha espinha. Era aquela sensação de ser atravessada por um fantasma: como se parte de mim, não corpórea, estivesse se soltando para depois retornar com força para meu corpo.
Assim que o espectro saiu do quarto, abaixei-me para tirar meus saltos e dei longos passos em direção a Gomes, apoiando-a pela cintura.
— Você está bem? — sussurrei, preocupada com sua pele pálida e fria. Ela tentou soltar-se de mim, aturdida.
— Absolutamente, minha cara...
Mas sentou-se abruptamente na cama, passando as mãos pelo rosto e suspirando.
— Odeio casos envolvendo fantasmas — confessou. Sentei-me ao seu lado e fiquei passando a mão pelas suas costas. — Por mais de um motivo.
— Por qual outro motivo que não o de sofrer possessão fantasmagórica? — Eu ri baixo, tentando aliviar os sintomas do "atravessamento".
— Porque os fantasmas de Sarreguemines ainda rondam meus pensamentos.
Os olhos de Gomes, desamparados, fixaram-se nos meus, e faíscas de lembrança atordoaram-me: o quarto apertado, a única cama que dividimos e a sensação de que um passo, para frente ou para trás, seria o suficiente para saber que não haveria como voltar a ser o que éramos... Um único movimento meu. O tormento de saber que tudo o que eu mais queria estava ao meu alcance, apenas um toque de distância... Mas, como um castelo de areia, poderia desmoronar a qualquer instante, voltar a ser apenas poeira.
E como se tivesse levado um choque, soltei as costas de Gomes.
— Va-vamos focar aqui, sim? — sugeri, sentindo-me enjoada, a culpa corroendo-me do estômago ao peito.
Gomes assentiu e pediu para que eu arredasse. Assim que o fiz, ela deitou-se na cama, olhando para o teto. Encarei-a sobressaltada.
— Gomes! — Segurei minha voz para não gritar de indignação. — Não é hora de tirar um cochilo.
— Tomei uma tigela enorme de açaí com farinha das bagudas. Preciso de uma soneca, por favor. — Deu uma piscadela.
— Agatha, levanta daí agora!
— Faz parte da investigação descansar um pouquinho.
— Como cheirar sangue de fada? — Ergui uma sobrancelha, inclinando-me um pouco sobre ela. — Se eu fosse sua médica, o que aparentemente não sou, eu, com certeza, não recomendaria o uso de métodos tão pouco convencionais.
Gomes bufou um riso, provavelmente para não chamar a atenção dos fantasmas, mas quis acreditar que também era para disfarçar o nervoso ao sentir minha proximidade. Porém, em poucos segundos, ficou séria, dando tapinhas do outro lado da cama. Neguei com a cabeça.
— Não vou me deitar aí.
— Louise, preciso que sinta o que estou sentindo.
Ainda que estivesse tentada, olhei horrorizada para a cama e para Gomes.
— Agatha, não vou me deitar nessa cama contigo!
— Louise, por favor... É desconfortável, precisas sentir isso.
— Que bom que agora somos fiscais de qualidade das camas dos fantasmas.
Ela revirou os olhos, deixou a luneta-lamparina no chão e, com as duas mãos, agarrou minha cintura em um brilhante golpe de alguma arte marcial que aprendera em... algum lugar, certamente. Caí no colchão, sufocando um grito, pronta para me virar e xingá-la quando senti um incômodo em minhas costas. Não era físico, era para além disso. Vinha de uma angústia indescritível. Gomes encarava-me, estudando minha expressão.
— É... desconfortável.
— Sim, foi o que eu disse.
— Em um nível que não consigo descrever.
— Tente... — Gomes segurou minha mão, acalmando-me. Inspirei fundo enquanto me concentrava. — Por favor, é importante sua opinião. És mais sensitiva que eu! Precisamos que se concentre.
Era irônico que a sensitiva ali fosse eu, que tanto dediquei-me aos estudos dos vivos na ciência médica. Ainda assim, por Gomes, fechei os olhos, permitindo-me ser agarrada pelos lençóis invisíveis que inundavam meu corpo com uma atmosfera nova.
A angústia penetrou meu peito, sufocando-me.
_______________
¹ "o sótão" (tradução livre).
Continua...
--
CRÉDITOS
Autora: Giu Yukari Murakami
Edição: Bárbara Morais e Val Alves
Preparação: Val Alves
Revisão: Gabriel Yared
Diagramação: Val Alves
Título tipografado e montagem da capa: Fernanda Nia
Ilustração da capa: Maiara Malato
Comments (0)
See all