Avisos: esta obra menciona relacionamentos e comportamentos tóxicos, machismo, gaslighting, homicídio, sangue, objetos afiados, agressões física e verbal, e violência doméstica. Alguns capítulos contêm cenas de susto e fazem alusão a conteúdo sexual.
— Já estás dormindo? — Escutei uma voz rouca e masculina, melosa, próxima demais em meu ouvido. Tive nojo, uma sensação de ranço e irritação me toldando. Virei-me para afastá-lo, empurrá-lo para o quinto dos infernos. O bigode de escovinha marcava meu pescoço como se fosse pano sujo esfregando no chão limpo. — Margot? Sei que estás acordada.
Quando a mão dele varou sob meu vestido, empurrei meu marido para trás com mais força.
— Estou indisposta.
— Ultimamente sempre estás.
— Nem sempre...
— Claro que sim, Margot. Como pretendes me dar filhos se todos os dias estás indisposta?
— Garanto que é uma virose que em breve me deixará.
— Pergunto-me se foi uma virose que pegaste aqui em minha terra ou trouxeste daquela feira imunda onde vivia...
Estava escuro, e apenas seus olhos verdes, cintilando como os de um gato à espreita de um camundongo em um beco sem saída eram visíveis. O brilho, que interpretei como desejo, foi substituído por reprovação e desconfiança. Sua mão calejada agarrou meu maxilar inferior, machucando-me.
— Responda-me!
Em vez disso, dei-lhe um tapa abrupto...
— Ai, Louise! — Gomes grunhiu, e eu ofeguei de susto. A palma da minha mão direita estava sobre sua bochecha. — Eu não recusaria um tapa seu ocasionalmente, mas esse foi repentino.
— Gomes... — Pus-me sobre ela para pegar a luneta-lamparina e usei-a para enxergar melhor a bochecha avermelhada, a pele em tom de citrino mais brilhosa do que o normal. — Deixe-me ver.
Passei os dedos por seu rosto, tentada a dar-lhe um beijinho. Pelo olhar de Gomes, ela esperava o mesmo, mas então, antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, ela tossiu.
— Está tudo bem — garantiu com tom suave. — Apenas conte-me: o que sentiu?
Respirei fundo, antes de responder:
— Não senti apenas. Dessa vez, vivenciei...
Com um olhar curioso, Gomes escutou do início ao fim o breve diálogo entre o Dr. Bolognesa e Margot.
— As amantes de informações alheias estavam certas...
— As vizinhas fofoqueiras?
— Sim. — Gomes ergueu-se suspirando. — O casamento não era um mar de rosas, apesar de os jornais insistirem nisso, principalmente aquele Folhetim do Grão-Pará. Não é de se estranhar considerando que a maioria das mulheres se casam por obrigação, certo, Louise?
— Sim, é o caso de algumas mulheres... Certamente não sabemos se era o mesmo com Margot ou se o casamento foi se desfazendo aos poucos, afinal, foram anos juntos...
— Pelo que me descreveu, foi um diálogo que ocorreu logo após a vinda definitiva de Margot ao Brasil e o casório.
— Não podemos ter certeza, mas o semblante dele era jovial, de fato. — Rememorei as lembranças, associando a aparência do auge de seus trinta anos junto aos quadros que vimos durante a subida. — Parece ter sido próximo de uma década depois da chegada deles, e, ainda assim, estavam desconfortáveis entre si, com o ato marital, e não com a cama. Pergunto-me se já vinham tendo discussões durante a viagem que fizeram para cá... O que está fazendo?
Gomes havia sentado na penteadeira e vasculhava os frascos que, dado o formato, pareciam ser de Margot. Havia perfumes de diferentes tamanhos, alguns cabiam na palma das mãos, outros vidros eram minúsculos, até menores do que os frascos de banho-de-cheiro. Os pequeninos eram quase rústicos, com rolhas cortadas de tal forma que poderiam ter sido usadas em vinhos, e um vidro em formato cilíndrico tão comum quanto um vidro de molho de tomate em miniatura.
Gomes pareceu interessada nos frascos minúsculos, abrindo as rolhas e salpicando-os pelo ar, espalhando uma mistura de aromas, entre amêndoas, cedro, pimenta e pinheiros mentolados, lembrando o cheiro de inverno. Já ia abrir a boca para um monólogo de repreensão sobre este ser um método perigoso de experimentação — e que ela sempre insistia em usar — quando ela começou seu raciocínio:
— Margot participava de muitos eventos sociais, especialmente porque era a grande estrela enquanto pianista talentosa. — Ela pegou os frascos maiores, examinando-os com atenção.
— Sim! Uma vez acompanhei minha mãe em uma das apresentações. — Recordei-me com saudade de quando eu e maman fomos ao Theatro da Paz, apreciar Margot Maxime tocando o melancólico Clair de lune, de Debussy. — Margot estava, como sempre, impecável.
— Não é surpreendente que ela usasse os perfumes mais caros da França — disse Gomes segurando um La vie est belle. O líquido róseo no interior estava em mais da metade. Ela segurou outro vidro maior, um Fleurs rouges.
— O La vie est belle era o que ela usava em apresentações — expliquei. — É suave, delicado e elegante. Minha mãe e as amigas sempre o queriam de aniversário porque era o que Margot usava. Já o outro é mais sedutor, por assim dizer. Eu diria que ela o usava somente com o marido.
Gomes borrifou o vermelho Fleurs rouges e assentiu. O frasco estava quase cheio, mas certamente mais usado do que os minúsculos.
— Sim, este aqui ela usava bem pouco, o que explicaria uma vida de afeto físico quase que frustrada entre o casal, ainda mais se levarmos em consideração sua visão, caso aquele desconforto fosse recorrente. Já o primeiro, Margot parecia usar bastante, mas não é curioso que esses pequeninos estejam praticamente intactos? — Gomes revirou um dos vidrinhos verde-claros. — Há um pequeno risco em tinta de carvão.
Aproximei-me dela para averiguar. Datava de oito de dezembro de 1898, dois anos antes da vinda do casal ao Brasil. Abaixo, uma assinatura, "C. à M.".
— Dois anos antes da chegada de uma longa viagem de Lady Morgana — disse Gomes, e eu revirei os olhos.
— Claro que ela é a marcação temporal para ti!
Mas Gomes não se deixou levar pela provocação e continuou abrindo os perfumes menores.
— São tão agradáveis, com aromas tão distantes. Senti esses cheiros em nossa viagem à França, lembra? — Assenti para sua indagação. — E Margot veio de lá. É como se parte da terra dela estivesse aqui, em sua penteadeira. Por isso me espanta que tenha guardado tantos frascos de perfume adoráveis...
— Não se atreva a ficar com eles, Gomes!
— Não creio que preciso — disse ela confiante. — Já sou cheirosa o suficiente.
— Sim, de fato é, mas...
— Ora, você concorda?
Corei e revirei os olhos, esforçando-me para não bater o pé no chão de raiva ao ver aquele sorriso presunçoso em seu rosto.
Ela fez um gesto para que eu me aproximasse e entregou-me alguns dos frascos.
— Margot talvez gostasse colecioná-los.
— Creio que são presentes. — Gomes remexeu em alguns, indicando que todos tinham a mesma assinatura, "C. à M.", com datas variadas, mas próximas entre si. — E presentes artesanais, eu diria. São como os banhos-de-cheiro...
Gomes sacudiu os frascos em volta do pescoço que, de fato, lembravam os banhos mágicos das erveiras.
— Achas que ela comprava banhos-de-cheiro?
— Lembram banhos-de-cheiro, mas não são banhos-de-cheiro, com certeza. São apenas perfumes feitos com materiais que não são desta terra. Essas essências... — Ela inspirou, fechando os olhos. — É cheiro de terra distante. Pinheiros, castanhas plantadas em solo estrangeiro, menta e hortelã... É como se eu estivesse em contato com uma natureza distante. Alguns, sem sombra de dúvida, são masculinos, e essa penteadeira era apenas de Margot. Não há nada que pareça ser do Bolognesa aqui ... — Ela ergueu-se e foi até o guarda-roupa, onde havia um frasco de perfume francês da marca Perrault. Gomes o borrifou pelo ar, e logo reconheci a nota de cedro e almíscar-selvagem, essências de perfume masculino caríssimo. Sabia com perfeição, porque meu pai tinha um desde adolescente e usava somente para ocasiões muito especiais. — Bolognesa tinha preferências por clássicos de elite. Aqueles perfumes são rústicos, artesanais, feitos de forma natural. As rolhas são como as de vinho, difíceis de tirar, como se a dona tivesse medo de perder a essência. Aqueles frascos de aromas, minha cara Louise, foram dados por uma pessoa que tinha por Margot um carinho especial, ou ela comprou de alguém por quem tinha grande estima, não à toa a assinatura: "C. à M.".
— Não faz sentido... Por que deixar exposto? Se ela tinha um amante, não seria melhor escondê-lo?
— Nunca falei em amantes — sussurrou Gomes com um dedo em riste e um sorriso se formando. — Falo de alguém que deixou um vazio em Margot, uma ânsia que a fazia retornar para um passado ao qual não teria como retomar. As datas dos perfumes são de dois anos antes de sua vinda ao Brasil e, consequentemente, de seu casamento com o Bolognesa.
Franzi o cenho, tentando acompanhar sua lógica.
— Por que tem tanta certeza sobre este ser um aspecto romântico oculto de Margot Maxime?
— Perfumes são presentes íntimos, minha cara Louise, e certamente se tratava da mesma pessoa, caso contrário, por que a assinar todos os frascos com "C. à M."?
— Pode ser a marca? — questionei.
— Pode ser, mas veja como a tinta... — Para melhorar a visão, Gomes tirou do colete a lupa espalhafatosa e ajudou-me a incliná-la no melhor ângulo para visualizar os escritos na parte inferior de um frasco. As linhas dos dizeres e datas estavam um pouco tortas e em letra cursiva elegante. Abaixo, a data "treze de janeiro de 1897". — Este aqui é o mais antigo. Os demais são da metade de 1897 a 1898, alguns meses antes da vinda dos Bolognesa. É a mesma caligrafia, o "C" tem um puxadinho em serifa e o "M" é como duas torres. Veja o padrão de escrita dos que foram assinados próximos à viagem. A caligrafia se mantém, mas a cursiva parece prejudicada, como se a pessoa que assinava estivesse perturbada. Pouco tempo depois, Margot Maxime vem ao Brasil com o futuro marido. Coincidência não deve ser.
De fato, os perfumes que datavam de outubro de 1898 para frente estavam com uma letra mais tremida, como se o autor da assinatura estivesse desequilibrado o suficiente para prejudicar a própria caligrafia.
— Seja lá quem tenha sido, foi a mesma pessoa, ou um grupo de pessoas, que treinou para escrever exatamente igual. — Pelo tom de voz, nem mesmo Gomes acreditava nesta última hipótese. — Não, para mim é elementar, minha cara Louise. Foi uma única pessoa que assinou os frascos, e ela não queria ser identificada. O "C" é de um sujeito indeterminado do passado de Margot. Ela não teria guardado esses perfumes e evitado usá-los durante vinte anos se fossem um presente irrelevante. Fora isso, como me narraste, esse casamento estava fadado ao desgosto, inclusive neste aposento, que deveria ser sacral para os dois. Não, não... Margot não estava aqui porque queria ou, no mínimo, arrependeu-se de ter vindo.
Após observar por mais alguns instantes, Gomes repousou o objeto com cuidado na penteadeira para não fazer barulho e guardou a lupa na bolsa antes de continuar:
— Vamos, Louise, há outros locais para explorarmos.
Continua...
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CRÉDITOS
Autora: Giu Yukari Murakami
Edição: Bárbara Morais e Val Alves
Preparação: Val Alves
Revisão: Gabriel Yared
Diagramação: Val Alves
Título tipografado e montagem da capa: Fernanda Nia
Ilustração da capa: Maiara Malato
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