Avisos: esta obra menciona relacionamentos e comportamentos tóxicos, machismo, gaslighting, homicídio, sangue, objetos afiados, agressões física e verbal, e violência doméstica. Alguns capítulos contêm cenas de susto e fazem alusão a conteúdo sexual.
Enquanto repassávamos o raciocínio de Gomes, visitamos a biblioteca onde conseguimos nada além de espirros ocasionais, que tentei manter o mais silenciosos possível, com muito esforço. Se eu desse vazão a eles, provavelmente seria mais um barulho inconveniente que despertaria os fantasmas outra vez.
— Aqui não é um local que as fadas destacaram — reclamei com a voz anasalada.
Gomes estava entretida com um calhamaço marrom-escuro, floreando as páginas amareladas com interesse genuíno. Sua silhueta, iluminada apenas pela luz da luneta-lamparina, quase tão espectral quanto as dos fantasmas do palacete, mas sem aquela terrível sensação de medo. Era como ver uma sombra de Gomes na adolescência, na biblioteca da escola, inclinada sobre um livro certamente menos interessante do que ela. Gomes era a beleza nesta saleta com manuscritos empoeirados e de tapeçaria tão escura que nem mesmo a pouca iluminação impedia que nossos vultos se projetassem na madeira de lei, duas formas distorcidas e humanoides. Ignorando o embrulho no estômago e evitando encarar nossas sombras, aproximei-me dela, tocando seu cotovelo com delicadeza.
Conhecendo-me, Gomes já tinha consigo um lenço preparado, tirando-o do colete sem tirar os olhos do livro, apenas movendo a luneta-lamparina antes de entregar-me o tecido. Assoei o nariz com discrição, meu olhar agradecido, visto de relance, arrancando-lhe um pequeno sorriso torto. Nem mesmo as nossas sombras me apavoravam mais, enquanto admirava sua silhueta e inclinava-me sobre seu ombro para observar o que tanto a intrigava: rabiscos de desenhos do que seriam os grandes zepelins.
— Se eu tivesse construído um desse antes de qualquer um... — sussurrou com uma pontada amarga no orgulho ferido. Inconscientemente, deslizei minha mão livre por seu ombro esquerdo, massageando-o com suavidade. Aquele era sempre um assunto delicado e um tanto irracional de Gomes. Os ciúmes que ela sentia em relação às suas ideias eram um tópico perigoso. — Estava tão perto!
— Eu sei — sussurrei e, com sutileza, fechei o livro em suas mãos para tirá-la daquele recinto. Queria dizer-lhe o de sempre: que tudo o que ela fazia era o suficiente; que todas as engenhocas que ela criava só precisavam de patrocinadores para serem vendidas, mas, para Gomes, o conhecimento não deveria ser capitalizado, um sentimento tão nobre quanto frustrante, na realidade em que vivíamos o conhecimento não-capitalizado tornava-se obsoleto.
Em silêncio, seguimos brevemente para uma das salas de visitas, pintada em tons pastéis e amarelados. O lustre em forma de gotas, sem motivo aparente, ainda estava ligado, iluminando a saleta a ponto de Gomes dispensar a luneta-lamparina. As paredes eram sustentadas por vigas em formato dórico em um tom claro, acompanhadas por mosaicos em losangos, alternando entre o bege pastel e o azul claro. Havia somente uma mesa de chá com algumas cadeiras, a tapeçaria também em mosaico, e cores amarelas pálidas que tornavam o ambiente menor do que realmente era. Era um local riscado no mapa da planta, mas fui atraída por ele assim que notei a coleção de porcelana inglesa, então investigá-lo foi inevitável, ainda que tenha sido em vão. Naquele ambiente apertado, deduzimos apenas uma enfadonha sensação de que aquele lugar tinha servido para inúmeras conversas de negócios e "trocas de informações sobre vidas alheias", nas palavras de Gomes, ou seja, nada mais, nada menos que fofocas.
Depois, passamos pela sala de coleções de arte do Dr. Bolognesa, repleta de artefatos marajoaras, como vasos pintados em triângulos maiores e menores e cordões em formato de muiraquitã, bijuterias de aço com insígnias do brasão da família real britânica, anéis dourados brilhantes com o Olho de Hórus e outros objetos que o falecido provavelmente tinha adquirido em suas viagens. Um relógio de bolso, sobre um pedestal, como um prêmio, cintilou com a luz da luneta-lamparina, e Gomes aproximou-se dele. Com a ponta dos dedos, traçou as linhas das flores ornamentais entalhadas no material para, em seguida, apertar o botão que abria o interior com ponteiros e girá-lo na mão.
Abaixo, um envelope amarelado e intocado, que Gomes logo pegou e abriu, descartando o selo intacto.
— Ele sequer leu essa carta? — indaguei, curiosa, espiando pelo ombro de Gomes.
Em letras elegantes, havia uma mensagem da remetente:
Londres, 13 de outubro de 1887
Meu amado Frederico,
Almejo que este utensílio lhe traga memórias sobre mim nas horas mais solitárias, quando o luar se tornar sua única companhia, e os vinhos secos forem transformados em meras garrafas vazias ao redor do dossel. Anseio pelos nossos próximos encontros com uma saudade que somente sua presença pode aliviar.
Sempre sua,
L. M.
Gomes entregou-me a carta e focou no envelope, investigando informações relevantes que ele pudesse conter.
— Nunca compreenderei a necessidade de iniciais nas assinaturas, quando está explícito quem é o remetente e o destinatário — resmungou para si, e antes que eu pudesse fazer qualquer comentário, continuou: — Frederico Bolognesa combinava tanto com Lady Morgana no quesito de adorar utensílios raros, como os colonizadores, que até trocavam gentilezas. E, aparentemente, amilases salivares também.
Mostrando-me o envelope, indicou-me as grafias "De Lady Morgana à Frederico Bolognesa, como gratidão pela companhia" em uma caligrafia elegante e antiga, escrita em prata, e falou:
— Aposto que isto é sangue de unicórnio.
Fiz uma careta de desgosto.
— A família de Lady Morgana usava o sangue prateado deles para fabricação de tintas duradouras — explicou com uma calmaria indiferente. — Falando nela, viu que ela está leiloando alguns artefatos?
— Sim, eu e Samantha estávamos curiosas sobre os valores...
— Certamente absurdos de caros. — Gomes passou o dedo pelo que parecia ser uma flauta feita de bambu e limpou a poeira na calça. — Fiquei mais curiosa com seu repentino desapego dessas raridades.
— Vai ver está em crise.
Gomes riu.
— Lady Morgana? Em crise? Foi uma piada, minha cara Louise? Não... Infelizmente, receio que ela esteja apenas se desfazendo do que não lhe é proveitoso neste momento para adquirir algo maior. Se compreendi corretamente, ela fala de um bem adquirido em algumas de suas viagens antes de 1888.
Parei de caminhar e encarei Gomes.
— 1888? O mesmo ano em que Dr. Bolognesa e Margot Maxime fizeram uma viagem, quando noivos?
— Exatamente, minha cara. — Gomes tinha um sorriso orgulhoso, o que me fez perceber que eu estava raciocinando do jeito que ela queria. — O palacete já estava sendo construído desde 1887. Era a quinta viagem que o Bolognesa fazia para cortejar Margot Maxime, supostamente. Todos sabem dessa história, embora os rumores à época fossem justamente sobre a quem Bolognesa estava dedicando este palacete.
[Continua na Parte 2]
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