[Continuação da Parte 1]
Era de conhecimento geral da geração de maman que o Dr. Bolognesa já estava demonstrando seu afeto a uma musa inspiradora desconhecida, causando inveja a todas as jovens daquele tempo e aumentando as expectativas sobre quem era a noiva.
— Havia rumores de que a própria Lady Morgana era a musa do Dr. Bolognesa — afirmei, lembrando-me especialmente de um chá da tarde, conduzido por minha mãe e minha tia, repleto de fofocas e com a participação obrigatória de mulheres mais novas. — Eles eram próximos até demais, segundo minha mãe, e isso explicaria o presente de coleção rara e a carta.
Gomes tinha aquele olhar que dizia tudo o que eu precisava saber: sua suspeita excessiva estava começando a dar sinais de lucidez. Sim, porque, de alguma forma, aquela investigação sobre um casal morto também era sobre Lady Morgana, no final das contas.
— Reparou que a arquitetura interior é muito contrastante? — começou Gomes, indicando as tapeçarias escuras da sala de coleção, e depois apontou para o corredor que levava à sala de chá. — O interior deste lugar é tão sombrio quanto acolhedor, duas estéticas que não se harmonizam. Bolognesa era conhecido por ostentar grandes prédios por fora, mas era um preguiçoso por dentro. Quer saber minha teoria?
— Hm? — Cruzei os braços e ergui as sobrancelhas, ansiosa para o modo Gomes de empolgação.
— Lady Morgana e Frederico Bolognesa tinham um caso, mas ele se apaixonou por Margot. Este palacete foi construído não para uma, mas para duas musas inspiradoras com personalidades e gostos muito distintos. Para mim, é o que justificaria a falta de um aspecto mais gótico aos interiores mobiliados por último. — Ela ergueu um dedo em riste, reforçando seu raciocínio.
Não havia muito o que contestar na maneira como chegou àquelas deduções, considerando, de fato, as disposições dos móveis e a escolha das paletas de cores contrastantes.
— Talvez Lady Morgana esteja influenciando esse alvoroço. — Gomes pôs a mão no queixo, pensativa. — É coincidência demais que ela tenha elaborado um leilão particular tão próximo do falecimento do casal.
— Está presumindo que Lady Morgana assassinou o casal?
— Ora, claro que não. — Gomes indignou-se. — Já sabemos, mais ou menos, como decorreu a morte. O que me deixa inquieta, cara Louise, é a pressa para retirar esses fantasmas. Ah, mas como seria interessante obter um item do leilão de Lady Morgana! Quanto eu poderia descobrir de sua dona? — Seus olhos brilhavam em expectativa sobre desmascarar a rival unilateralmente imposta.
Nada vinha à minha cabeça para explicar tamanha empolgação.
— Esse interesse todo por saber de Lady Morgana... — comecei e Gomes encarou-me, curiosa. Evitei fazer uma careta. — É mesmo um interesse profissional?
— Ora, minha cara... — Gomes parecia prestes a rir. — Acredita mesmo que sou o tipo de mulher que se joga a qualquer rapariga à minha frente?
Diante do meu silêncio afirmativo, Gomes empertigou-se.
— Mas é claro que não, Louise! Meu interesse é puramente profissional. Obter um objeto do acervo particular de Lady Morgana poderá abrir um leque de possibilidades para análise como seus gostos pessoais, suas pretensões e, talvez, pistas de seus próximos passos. — Gomes estava com a expressão séria de investigadora, o que me trouxe um repentino alívio por um incômodo sem cabimento. Nos últimos tempos, ver ou ouvir falar de Gomes reavivou alguns sentimentos possessivos inconvenientes. Suspirei.
— Posso pedir a Norberto que adquira uma delas, a mais barata, se for o caso — sugeri, pronta para ajudá-la no que fosse possível para conseguir seu intento.
— Não, não quero nenhum auxílio do seu noivo, grata. — Gomes andou pelos corredores a passos duros.
— Não precisa ficar chateada. Foi só... uma ideia? — Para uma pessoa tão pequena, Gomes conseguia andar incrivelmente rápido, e, ao tentar acompanhá-la, quase derrubei um vaso florido no meio do corredor. — Gomes! Espere!
Ela parou em frente a um quarto que cheirava a talco para chulé de sapatos velhos e encarou-o com o cenho franzido por alguns segundos antes de tirar o mapa do colete e observá-lo atentamente. Seu olhar saiu da planta do palacete ao quarto diversas vezes, e esticou o mapa para mim. Calculei onde estávamos: segundo andar, corredor de salões de biblioteca, chá e antiquário, menos aquele recinto.
— As fadas deixaram escapar um lugar — disse surpresa.
Gomes guardou a planta do palacete no interior do colete.
— Ou foram ludibriadas pelas memórias dos donos. Fantasmas e suas formas de manifestação são muito confusas. Talvez esse quarto nem exista de fato... — Gomes empurrou a porta com leveza, segurando-a para que a madeira não arrastasse no chão e provocasse um barulho inconveniente. Quando entramos, logo percebi se tratar do quarto abandonado de um bebê. No meio do recinto, havia um berço feito em uma madeira envernizada, com algumas roldanas nas laterais que permitiam o vaivém da parte côncava do centro, e, embora nenhuma janela estivesse aberta, o berço sacudia como um pêndulo. Aproximei-me dele, meus dedos passando pela madeira polida, cada extensão arrepiando os pelos dos meus braços, uma sensação de angústia, raiva e desgosto queimando em meu corpo como uma brasa. Afastei-me, inspirando com dificuldade, e o berço parou de balançar instantaneamente.
— Ele estava muito chateado — sussurrei, um filete de suor frio escorrendo de minha têmpora. — Este foi um local que visitou com frequência antes de sua morte, e parecia cada vez mais aborrecido com o que nunca pôde ter.
As penteadeiras estavam vazias, exceto pela mais alta, quase chegando ao canto do quarto, onde havia um boneco de madeira com tintura descascada.
— Aqui, o quarto do bebê que nunca nasceu.
Quando Gomes proferiu aquela frase, com uma naturalidade displicente, como se nunca a ideia de formar uma família nunca tivesse passado pela sua cabeça, algo em mim caiu como se eu tivesse pulado de um zepelim, e aquilo não deveria ser novidade para mim. Mas eu já não sabia discernir se o que eu estava sentindo era fruto dos ecos de sentimentos do falecido Dr. Bolognesa ou se era Louise em suas incertezas sobre a maternidade.
— Não me parece ter sido o último cômodo que visitou antes de falecer — disse Gomes, atenta aos detalhes do quarto. — Não há nenhum sinal de briga, os móveis estão intactos. Segundo informações da vizinhança, foram ouvidos exatamente os mesmos gritos sempre na mesma hora por dias, seguidos de barulhos de móveis arrastando e objetos caindo, um verdadeiro barraco! Este aposento parece mais calmo que cidadão depois que toma açaí e vai se deitar na rede.
— O problema é que fantasmas podem ocultar provas quando os cenários se misturam com lembranças, Gomes — sussurrei enquanto me reestabelecia. — Lembra-se de Sarreguemines? Os aposentos por dentro eram diferentes do que víamos nas memórias dos fantasmas que residiam ali.
De fato, em Sarreguemines, as memórias fantasmagóricas eram distorcidas e vários aposentos no interior da Mansão investigada foram realocados. Os sentimentos deixados pelas memórias eram tão fortes que mudavam até nossa percepção de tempo e espaço. Inspirei fundo, me questionando se aquela investigação seria tão difícil quanto.
— Mas, de qualquer forma — disse, para seguimos em frente —, há outros cômodos a explorar. Em Sarreguemines, ao menos, eu sentia quando havia algo de errado nos aposentos, o que nos deixava margem para explorá-los. Aqui, só sinto... tristeza e vazio, mas não raiva ou ódio. Concordo que não deve ter sido aqui o incidente. Vamos seguir! Onde está o mapa?
Gomes pareceu surpresa com minha iniciativa, e depois deu de ombros, mas um sorriso formou-se em seus lábios ao passar por mim, e, ao alcançar as escadas, gesticulou para que eu descesse primeiro.
— Sigo vossas ordens, Alteza! — Brincou, e eu revirei os olhos enquanto começava a descer, esticando o mapa para acompanhar nosso próximo passo.
De repente, a madeira de um dos degraus em que Gomes pisava estalou alto, e um calafrio percorreu por toda a minha espinha. Congelei de imediato, em meio aos passos, quando as luzes nos lustres se acenderam, deixando o ambiente escuro e neblinado tão aceso quanto à luz do dia, as paredes em tons pastéis e os mosaicos azuis e verdes ganhando vida como em um corredor de baile.
Continua...
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CRÉDITOS
Autora: Giu Yukari Murakami
Edição: Bárbara Morais e Val Alves
Preparação: Val Alves
Revisão: Gabriel Yared
Diagramação: Val Alves
Título tipografado e montagem da capa: Fernanda Nia
Ilustração da capa: Maiara Malato
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