Avisos: esta obra menciona relacionamentos e comportamentos tóxicos, machismo, gaslighting, homicídio, sangue, objetos afiados, agressões física e verbal, e violência doméstica. Alguns capítulos contêm cenas de susto e fazem alusão a conteúdo sexual.
Atrás de mim, Gomes xingou-se baixinho, e foi quando notei uma figura no meio do corredor iluminado.
A silhueta magra de alguém gesticulando de um lado para o outro. Era o semblante cansado do Dr. Bolognesa, seu bigode e cabelos aparados estavam desgrenhados e, debaixo dos olhos, duas bolsas escuras.
— ... chamarei um médico. Isso não é normal, Margot! São semanas, meses... Onde está meu chá? E minhas roupas continuam imundas! Já disse que precisas ficar de olho nessas empregadas, senão fazem corpo mole... Margot, estás me escutando? Ouvi uma delas dizer que não estás pagando direito a folha salarial, uma delas nos pôs na justiça! Tu sabias dessas baboseiras de justiça trabalhista, por que deixou de pagar? Margot?
O vulto atravessou a parede direita só para depois retornar, o rosto encolerizado, olhos arregalados e lábios arreganhados. De súbito, virou-se para nós duas e, por um instante, fiquei na dúvida se aquela figura era apenas um eco de uma lembrança de Bolognesa ou o fantasma do falecido. Foi quando sua visão pareceu clarear sobre nossa presença que vi a mera memória se transformando no espírito perturbado do dono daquele lugar, seus passos lentos em nossa direção:
— Quem são vocês? — sussurrou, os olhos semicerrados, como se estivesse vendo o sol pela primeira vez em dias, e focados diretamente sobre mim por um ou dois segundos, antes de piscar e fazer uma careta enraivecida, os dentes apertados enquanto vociferava: — Margot? Não, não és tu. Onde está aquela desgraçada? Onde ela está? Quem são vocês? Quem permitiu a entrada de vocês?
Ele acelerou os passos em nossa direção, e Gomes subiu alguns degraus sem tirar os olhos dele, parando do meu lado. Percebi que eu choramingava de pavor ao sentir seus dedos de Gomes apertarem meus braços trêmulos.
— Não escondam essa desgraçada de mim, não escondam...
Gomes retirou um frasco do pescoço, jogou-o no ar, o líquido azulado cintilou às luzes amareladas, e ela murmurou:
— "Abre caminho"... — O nome do banho-de-cheiro ativou o encantamento, afastando em fumaças a figura enlouquecida das memórias fantasmagóricas do Dr. Bolognesa.
O vulto tremeluziu e pareceu ter, de alguma forma, voltado no tempo, ou como se o fantasma estivesse reproduzindo sua própria memória novamente. Ele saiu da parede direita perturbado, e, dessa vez, não se virou para nós duas, seguindo seu caminho até o outro lado por uma abertura retangular onde deveria estar uma porta. Naquele momento, o espectro fantasmagórico do Dr. Bolognesa não tinha consciência própria, como quando se virou para nós duas. Agora, era só o eco de uma memória.
A respiração quente de Gomes em meu pescoço contrastava com o ar frio, causando-me arrepios e outras... sensações.
— Gomes, respira pelo nariz! — exclamei baixinho.
— Ora, como achas que estou respirando?
— Para de soprar no meu pescoço!
— Estás louca, mana?
Pisamos vagarosamente, e testei cada degrau antes de descermos, para que não despertássemos as memórias daquele local mais uma vez. Consegui chegar no piso, mas Gomes pisava desajeitada em cada ponto onde eu havia indicado. Segurei sua mão no segundo degrau, já que o primeiro, na descida, parecia mais instável.
— Não tivemos essa dificuldade na subida — lembrei-me, insatisfeita com o tamanho dos perigos que rondavam aquele palacete.
— A gravidade é um mistério — disse ela ao dar um salto silencioso ao meu lado. Fomos juntas em direção à cozinha, onde supostamente a lembrança em forma humana do Dr. Bolognesa havia entrado.
Primeiro, porém, encaramos o corredor estreito pelos dois lados. Estava vazio, silencioso, quase como se tivesse sido abandonado antes mesmo da interdição do palacete. Aos olhos do Dr. Bolognesa, aquelas teias de aranha e poeira excessiva não faziam parte da decoração. Ainda não sabíamos o que aquilo poderia significar, apenas sabíamos que talvez a ausência dos serviços domésticos indicava que Margot, enquanto esposa, estava falhando em seu papel de administrar o lar, e as acusações do fantasma do Dr. Bolognesa implicavam em insatisfação por parte dele.
Eu e Gomes trocamos uma noção compartilhada pelo olhar: até aquele momento não havíamos encontrado o fantasma de Margot Maxime.
— Esta é a cozinha do café da manhã! — anunciou Gomes, analisando a planta do palacete. — As fadas disseram que a atividade fantasmagórica aqui estava intensa, mas pela metade, o que me permite concluir que somente um deles estava por aqui antes do falecimento.
A cozinha era menor do que eu imaginava. Com um fogão a carvão, como na maioria das casas, era enfeitada por poucos armários de madeira, e os poucos que existiam ficavam suspensos em um balcão de mármore. A mesa posta era retangular, próxima da porta, e havia um único prato na cadeira da ponta. Gomes aproximou-se e inspecionou a cadeira, a única que estava afastada da mesa.
— Para uma cozinha de alguém tão cheio de dinheiro, eu diria até que é modesta. Parece que é a cozinha dos serviçais... — comentei, e depois franzi o cenho. Aquilo havia soado tanto como um comentário da minha mãe! Apenas com uma dose de eufemismo! — Digo...
— Sim, apesar do seu elitismo estrutural, também me surpreende a humildade do aposento.
— Pode ser uma cozinha específica para o café da manhã? — questionei mais para mim mesma do que para Gomes enquanto ela sentava-se na cadeira de cabeceira, inspecionando a comida deixada para trás. Era uma tapioca recheada de manteiga já rançosa e queijo do Marajó mofado.
— Isso aqui parece ótimo, um absurdo que ele tenha comido só um pedaço. — Gomes aproximou-se da xícara e cheirou-a.
— Gomes, não se atreva!
— Louise, jamais me envenenaria! — disse ela em uma fingida indignação e abriu o riso com minha careta de descrença. — Café torrado e deixado queimando na chaleira, presumo. O cheiro está ácido demais... — Ela remexeu na xícara de porcelana, as sobrancelhas franzidas. Então, tirou do bolso sua lupa extravagante e colocou-a em um dos olhos, aumentando a potência ocular. — ... e ainda cheio de pó do grão. Talvez não tenha sido algum empregado que fez.
— Provavelmente foi ele ou a esposa — julguei, apontando para o fogão, que estava uma bagunça. Salpicadas de tapioca por todos os lados, uma chaleira pendendo, quase caindo, entre as bocas do fogão, e um pacote mal fechado de grãos de café de Minas Gerais. — Na verdade, deve ter sido ele. Um homem em frente ao fogão é um desastre natural. — Dei um riso com minha própria piada. Gomes fez uma careta.
— Mas credo, Louise, está convivendo demais com a senhora vossa mãe.
— Para minha infelicidade, minha mãe está responsável pelo meu noivado. — Bufei enquanto me afastava, observando as lajotas geométricas pintadas de um tom pastel e azul-escuro que, a princípio, contrastavam mal, mas que, de perto, pareciam bonitas. Eram o modelo antigo de Portugal.
— Sim, claro. — Gomes continuou vistoriando a cadeira e a ponta da mesa, procurando por possíveis evidências. — Recordo-me de quando sugeriu que eu fosse, hm, madrinha, de vocês.
[Continua na Parte 2]
Comments (0)
See all