Avisos: esta obra menciona relacionamentos e comportamentos tóxicos, machismo, gaslighting, homicídio, sangue, objetos afiados, agressões física e verbal, e violência doméstica. Alguns capítulos contêm cenas de susto e fazem alusão a conteúdo sexual.
Reflets dans l'eau.¹
De todas as criações de Debussy, essa era minha favorita. Havia uma genialidade técnica impressionista em sua tentativa de fazer seus ouvintes sentirem para além de borbulhas e gotas respingadas, o som discreto de seus reflexos distorcidos na água.
E era assim que eu via aquele recinto. Era como se o palacete tivesse sido mergulhado na água. Eu ainda estava em pé e respirava, mas o que via era uma sala turva, escura para os padrões de todo o ambiente interior. A tapeçaria colada nas paredes tinha detalhes em preto e vermelho, enquanto, no chão, o tapete com padrões geométricos triangulares era de cor pálida amarelada com algumas partes em tons de vermelho-escarlate.
Havia duas poltronas, uma mesa de centro sustentando um vaso de flores murchas e um piano de cauda, feito do que parecia ser mogno. Nele, a figura de uma mulher magra, branca e loura dedilhava as notas mais nostálgicas de Debussy. Os cabelos de Margot Maxime, normalmente presos em suas apresentações, estavam jogados contra os ombros protegidos pelo robe de seda azul-turquesa, a mesma cor de seus olhos perdidos, que não se concentravam nas teclas que tocava, e, sim, no longo espelho retangular, emoldurado por um mosaico em ondulações de ouro, no outro lado do recinto.
Fiz um gesto de saudação tímida para discernir se aquele espectro era eco de memória ou a própria fantasma. Quando Margot não me respondeu, deduzi que era só uma lembrança sua e resolvi investigar aquilo que atraía tanto a sua atenção.
Aproximei-me do espelho e vi meu reflexo turvado pela atmosfera liquefeita, quase hipnotizada pelo meu próprio reflexo. Como uma gota caindo em um lago calmo, o tom melancólico do piano foi sendo substituído por muitas vozes mescladas e destoantes, como em uma orquestra bagunçada, as conversas em francês ficavam cada vez mais evidentes. Era um mercado, pude apurar pelos meus ouvidos, já que conhecia tão bem o Ver-o-Peso, nossa feira mais famosa. Senti o cheiro de peixe e verduras frescas, o aroma de muitas ervas e, também, de um peculiar perfume amadeirado com um toque delicado de jasmim.
Meu reflexo foi sendo substituído por uma versão de Margot mais nova usando um simples vestido vitoriano, um pouco sujo nas barras, e o espelho parecia uma tela de cinema, cuja câmera projetada fazia-me acompanhar os passos da mulher do outro lado. Ela se virou para mim e sorriu. Estava uns vinte anos mais nova, mas, de alguma forma, facilmente reconhecível. Após o sorriso travesso, Margot me deu as costas novamente, abrindo caminho para a visão de uma feira repleta de pessoas vestidas com trajes démodés. Sua caminhada abriu espaço entre tendas coloridas e algumas barracas de peixes até chegar ao seu destino: uma lojinha de ervas onde foi atendida por uma senhora, provavelmente uma conhecida, dada a pouca surpresa em recebê-la.
— Claude está aqui? — perguntou Margot, em francês.
A mulher fez um gesto de impaciência e desapareceu por uma porta atrás do balcão, onde havia vários frascos e rolhas. Não demorou muito para que um homem jovem, magro e de óculos redondos aparecesse, sua camisa de botão manchada, e seu aroma perfumado de várias essências inundou o lugar, mas o que se sobressaía era o pinheiro, a hortelã... Cheiro de inverno, como aquele que senti quando Gomes abriu os frascos minúsculos na escrivaninha de Margot.
O homem, presumivelmente Claude, mancou até Margot, segurou-a pela cintura em um abraço apertado e beijou-lhe o pescoço.
— Mon amour! Que falta você fez nos dias de inverno... — sussurrou Claude. — Preparei ótimas essências para você! Fui à floresta de pinheiros...
Animado, ele a soltou para ir até uma prateleira de madeira desgastada e voltar com uma pilha de frascos pequenos, selados com rolhas de vinho reutilizadas, cortadas em pedaços menores para tampar a pressão dos perfumes. Eram os mesmos do quarto do casal Bolognesa, sem dúvida.
— Claude, meu querido! — A voz de Margot estava embargada. Notei uma agonia incessante nela, como se guardasse algo dentro de si que precisava ser dito. — Eu... Agradeço muito seus maravilhosos perfumes.
Para provar, pegou o de cor mais vibrante, amarelado como o nascer do sol e, então, salpicou um pouco em si mesma; o cheiro de pinheiros, hortelã e pimenta espargia pelo local. Claude deu um sorriso de adoração antes de abraçá-la novamente.
— Só você para aguentar meus experimentos com aromas, Margot. Não sei o que faria sem sua aprovação... Oh, pensei em passearmos pelas colinas. Agora que é verão, os morangos estão crescendo. Eu diria que é melhor colhê-los e comê-los antes de ficarem maduros demais...
— Claude...
— Ou talvez podíamos ir na fazenda do tio Jean-Paul colher alguns figos para fazer geleia, o que me diz?
Margot afastou-se dele, seus olhos estavam marejados.
— Claude, eu vim aqui para me despedir.
Ele se afastou dela em confusão. Margot estava trêmula e parecia à beira de se desmanchar diante do homem. Claude apoiou-se no balcão, tirou os óculos de aros redondos e espalmou a mão no rosto contorcido de dor.
— Aceitaste aquela proposta infame!
— Não tive escolha! — Ela se aproximou dele em pratos, agarrando-o pela gola da camisa. — Minha família está passando fome, eu teria muito dinheiro para visitá-los sempre, e também poderia te ver, mon amour! Com esse matrimônio, posso sobressair-me na arte e, quem sabe, nem precisarei continuar casada por tanto tempo.
— Essa é uma estratégia perigosa, mon amour! — Ele tocou delicadamente em sua mão trêmula e colocou algumas mechas de cabelo louro atrás das orelhas pequenas. — Eu compreendo sua decisão, mas não posso estar feliz com isso.
— Por que não consegue estar feliz por mim? Terei uma vida de luxos, poderei mandar-te dinheiro para investir em teus perfumes e minhas irmãs não precisarão usar suas mãos delicadas para erguer um arauto como tive que fazer.
— Margot, minha felicidade é vê-la feliz... — Claude deu-lhe um beijo na testa. — Sei que essa é uma escolha que lhe agrada, mas não me faça crer que ela lhe fará feliz.
— Não se trata de escolha, Claude! — Margot afastou-se abruptamente dele, virando-se para mim, mas parecia não perceber minha presença. Ela permaneceu de costas para Claude, os lábios franzidos em uma mistura de raiva e tristeza. — Tu tens a escolha de ser o que és, de estar preso a essa loja sem futuro, de investir tempo em aprimorar aromas que não duram muito... Apenas porque não foi aceito nas lavouras.
A expressão de Margot era, no entanto, de sofrimento. Ela estava claramente mentindo, sendo cruel de propósito, mas foi tão convincente que Claude pareceu acreditar. O homem ficou aturdido com aquelas palavras, e a surpresa de ouvi-las foi sendo, gradativamente, substituída pela decepção.
— Se é o que pensas de mim, Margot, creio que não precisamos continuar a nos encontrar.
Margot estremeceu e agarrou o estômago como se quisesse vomitar. Ela inspirou fundo e ergueu a cabeça em minha direção. Assim que nossos olhos se encontraram, soube que era uma memória paginada em dores, Margot não me via, não parecia sequer perturbada em perceber alguém invadindo suas lembranças. Com um sorriso resignado, expirou todo o ar que prendera e virou-se para o homem que lhe produzia os aromas mais marcantes.
— Tens razão, Claude. Vim aqui para me despedir, e que assim o façamos, sem mais delongas.
Claude riu, um riso embargado.
— Devo parabenizá-la. Mal casou-se e já tem a postura que ele espera de ti.
Vi os punhos de Margot fecharem-se enquanto Claude levantava-se e começava a separar os frascos que mostrara à amada. Ela se adiantou:
— Eu vou querê-los... Seus perfumes.
Claude estagnou, os ombros caídos e o tronco inclinado sobre o balcão. Ele assentiu, deixou os frascos perfeitamente arrumados para ela e saiu mancando para dentro da loja, onde provavelmente residia. Não se virou mais para Margot, que se jogara contra o balcão em prantos, o choro contido para não atrair qualquer atenção.
Senti-me como se presenciasse uma cena mais íntima do que uma lua-de-mel, e não seria justo continuar espiando. Porém, assim que virei de volta à sala de música, surpreendi-me ao perceber a versão mais velha de Margot do outro lado do espelho, olheiras proeminentes ao redor dos olhos azuis, agora opacos. Ela encarava o interior do espelho com uma obsessão sombria, causando arrepios em minhas costas.
Atrás dela, uma figura magra começou a se avolumar. O Dr. Bolognesa estava com a mesma aparência que eu e Gomes encontramos no corredor: o bigode malfeito, os cabelos desgrenhados, o rosto contorcido de fúria. Ele vociferou contra o ouvido da esposa:
— Saía da frente desse maldito espelho, sua vadia louca!
Os olhos de Margot não piscaram em nenhum momento, fissurados no espelho, como se em transe. Era como se eu estivesse em uma borda que diferenciava as lembranças de Margot antes e depois de vir ao Brasil, mas, então, virei-me novamente para o interior do espelho e, para minha surpresa, estava Claude e uma figura sorridente de Margot. Ambos estavam avaliando os tamanhos de frascos espalhados sobre um tapete simples de um casebre. Madeira crepitava em uma chaminé de pedras rústicas enquanto o casal ria com o barulho bobo das rolhas saindo dos frascos, começando a criar uma melodia com cada som, até que ambos fizeram exatamente o mesmo "plop" e encararam-se antes de caírem no chão de tanto rir. Aquilo nunca existiu, certo? O espelho apresentava o passado e ilusões de um futuro de "e se..."?
Do lado do espelho, havia a cena feliz, contagiante, de risos e murmúrios de amor. Do outro lado, os gritos de um homem no limite da loucura. O som de um tapa assustou-me e virei-me para o reflexo da sala de piano. Margot estava no chão, de repente enraivecida com o Dr. Bolognesa, que continuava em pé, agigantando-se sobre ela, o dedo em riste, xingando-a em três línguas diferentes. Sua figura desnorteada arrastou-se para fugir da fúria do marido, e ele foi atrás dela, os passos pesados afundando no material do tapete.
Uma das mãos de Margot apoiou-se na parte interna do piano, e o Dr. Bolognesa fechou a capa do piano com força, arrancando da esposa um grito de dor. A fúria pela mão esmagada levou Margot ao extremo: ela pegou o vaso da mesa de centro e usou-o para acertá-lo no rosto. Ele cambaleou, caindo de joelhos antes de se recuperar, pegar um canivete no bolso e...
— Não quero que veja isso!
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¹ "Reflexos na água" (tradução livre).
[Continua na Parte 2]
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