[Continuação da Parte 1]
Ofeguei ao escutar uma voz feminina atrás de mim. Margot estava novamente na loja de Claude, mas dessa vez sozinha, os braços cruzados e a expressão quase serena para alguém que acabara de me mostrar uma parte de suas piores lembranças enquanto viva.
— Ma... — Pigarreei ao perceber minha rouquidão. — Margot Maxime.
— E tu... quem és? — Seu sotaque francês ainda era carregado como me lembrava de escutá-la se apresentando em seus concertos no Theatro da Paz.
— Louise Doyle. — Pensei em como poderia me apresentar a uma fantasma, mas não consegui dizer nada além do nome. Deveria dizer que sou médica se ela já estava... morta? Ou talvez informá-la de que era parceira de uma detetive que deliberadamente entrara em sua residência sem permissão, violando inúmeros códigos penais e tratados de direitos pós-vida? — Estou aqui para entender o que houve em sua... hm... partida, para que possamos proceder com a liberação do palacete.
Margot assentiu e, então, sentou-se sobre o balcão da loja, parecendo à vontade mesmo em uma lembrança. Ela estava jovem, iluminada por uma aparência de alguém em plena felicidade, muito diferente da Margot do outro lado do espelho, aquela que estava, naquele instante, sendo assassinada pelo marido.
— Lamento dizer, mas não pretendo liberar este lugar.
— Não se trata de uma vontade tua, Margot — impus-me. — Esse palacete precisa ter suas correntes liberadas para pregão, caso contrário, ganhará vida como uma Casa-Amaldiçoada.
Não precisava explicar a Margot o significado daquilo. Mansões e casas amaldiçoadas com a presença de antigos moradores falecidos poderiam se tornar monstruosas personificações dos traumas e grilhões que prendiam as almas em seu interior, tornando o imóvel detentor de direitos enquanto uma personalidade jurídica autônoma que sempre causava alvoroços pelo seu tamanho e atividades paranormais. Casas-Amaldiçoadas eram comuns em cidades do interior, onde as burocracias costumavam ser ainda mais rígidas, mas, em centros urbanos, isso nunca havia acontecido.
— Não há motivo para preocupação. — Margot tinha um sorriso travesso moldando seu rosto bonito. — Casas só ganham personalidade enquanto Casas-Amaldiçoadas quando passados muitos anos...
— Enquanto isso, seus empregados continuam sem dinheiro e seus vizinhos sofrem com a agonia do Dr. Bolognesa — lembrei-a, na esperança de fazê-la sentir um pouco de empatia.
— Eu não sou dona do lugar, quero lembrá-la. — Margot deu de ombros. — Meu marido é! Ele quem escolhe ficar aqui ou não.
— No entanto... — Aproximei-me dela devagar. — ... Parece-me que ele só sairá se tu se libertares deste recinto. És o grilhão dele.
— Estou presa a ele contra minha vontade.
— Não, não está. — Apontei para o espelho atrás de mim, em que a cena infame continuava ocorrendo, gritos de socorro e gemidos de dor reverberavam longe, como se os sons fossem abafados por água. — Ficas aqui vendo essa cena se repetir diante dos teus olhos?
Margot negou com a cabeça e olhou atrás de si, para um corredor estreito, enfeitado por prateleiras de frascos de perfumes, um vulto magricelo e manco avaliando cada uma delas com precisão.
— Não estou aqui para ver repetidas vezes a cena de minha morte que, em verdade, foi minha libertação. — Margot desceu do balcão e entrou no corredor, e eu a acompanhei. Claude a recebeu com um sorriso. Ele parecia alguns anos mais velho, exibindo o mesmo semblante gentil e acolhedor. Claude estava completamente alheio à minha presença, como se fosse um manequim à exposição. — Estou aqui por Claude. Sempre estive.
Margot acomodou os braços ao redor da cintura dele enquanto deitava o queixo em seu ombro, fechando os olhos com um suspiro. Vê-la perdida naquele abraço, existente somente naquele tempo e espaço criados por ela, deixou-me desamparada. Como lidar com uma pessoa que só descobriu a felicidade em uma ilusão após a morte?
— Margot, não quero privar-te de teus desejos, mas deves saber, melhor do que eu, que isto aqui, do jeito que está, do jeito que estás sentindo, nunca aconteceu.
Margot soltou-o para me encarar com seriedade.
— Se estivesses em meu lugar, entenderia.
— Eu entendo.
— Não, não entendes. Se entendesses, me deixarias ficar. Se entendesses... — Ela foi se aproximando de mim enquanto eu andava para trás, tensa com sua repentina mudança de humor. — ... me daria as costas, sairias deste espelho abençoado e arredarias o pé deste palacete. Se entendesses, Louise Doyle, me permitirias viver.
Bati contra o balcão e apoiei-me com as mãos. Um toque frio atraiu-me e encarei o frasco cilíndrico que estava próximo de minha mão esquerda. Era vermelho-sangue e cintilava. Seu formato e cor lembraram-me de alguns banhos-de-cheiro que Gomes estava utilizando em algum lugar daquele palacete, procurando por mim, talvez em desespero. Foi como entrar em um banho de igarapé, com a água gelada despertando-me para o horror que eu mesma enfrentaria, quando a solução passou pela minha cabeça.
— Margot. — Ela parou quando a chamei. — Eu sei como te sentes. Se me permitires te mostrar, acredito que compreenderás o que quero dizer.
Ela ergueu uma sobrancelha, descrente de minhas palavras. Inspirei fundo e torci para que minhas deduções estivessem corretas. Se aquele espelho entre a vida e a morte carregava um mar de memórias, talvez não só as de Margot estariam acessíveis, já que águas são voláteis e, até mesmo com o cruzamento delas, é possível criar um o estrondo poderoso como o da pororoca, o fenômeno amazônico do encontro do mar com o rio.
Fechei os olhos, deixando-me afogar na água que nos circundava, as moléculas perfurando minha epiderme plasmática enquanto sentia dentro de mim o medo de afundar cada vez mais naquilo que tanto lutei para enterrar no fundo do oceano de minha alma. O abissal que era invisível havia tanto tempo foi transformando-se em um conjunto de detalhes minuciosos da noite de 21 de julho de 1905, em Mosela, onde Sarreguemines estava estonteante em seu verão, principalmente após a despossessão fantasmagórica da casa à beira do rio.
Era como se eu estivesse lá novamente, naquele quartinho, o único que conseguimos com financiamento do governo após Gomes ser convidada para a investigação. O cheiro de flores infestava o lugar pelas frestas das janelas de madeira, e vez ou outra uma mariposa dançava pelo recinto antes de voltar para a natureza.
— Onde estamos? — indagou Margot, surpresa e perturbada, sua voz ressoando como se estivesse dentro de um recinto abafado e revestido por uma parede d'água. — Onde está Claude?
— Estamos em Sarreguemines, no departamento de Mosela — expliquei, nem um pouco surpresa com meu tom de voz no mesmo estado etéreo, éramos duas pessoas em uma memória. — Estamos em uma de minhas lembranças.
Continua...
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CRÉDITOS
Autora: Giu Yukari Murakami
Edição: Bárbara Morais e Val Alves
Preparação: Val Alves
Revisão: Gabriel Yared
Diagramação: Val Alves
Título tipografado e montagem da capa: Fernanda Nia
Ilustração da capa: Maiara Malato
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