Avisos: esta obra menciona relacionamentos e comportamentos tóxicos, machismo, gaslighting, homicídio, sangue, objetos afiados, agressões física e verbal, e violência doméstica. Alguns capítulos contêm cenas de susto e fazem alusão a conteúdo sexual.
O motivo da morte do casal, a forma como faleceram... Curiosamente, aquela investigação não era sobre isso. Na verdade, sequer se tratava de buscar respostas a uma indagação referente às mortes diretas. Tínhamos, na verdade, uma tarefa a ser feita, e isso envolvia uma solução mais emocional do que racional.
— Eu tive algumas escolhas, diferente de você, mas resolvi seguir em frente, de acordo com o que fui criada a fazer — sussurrei sem tirar os olhos do corpo morto do Dr. Bolognesa, tentando manter a proximidade emocional com Margot. — Gomes foi o sacrifício que fiz pelo que era melhor para mim. A única coisa que tive que deixar para trás em toda minha vida foi ela. Eu posso não entender como se sentiu quando teve que tratar Claude daquela forma para afastá-lo, para que ele se sentisse menos traído pelas circunstâncias que rondavam vocês. Tinhas uma vida mais complicada que a minha, certamente.
Margot negou, chorosa.
— Não.
— Perdão?
— Não se trata disso. — Margot cruzou os braços, encarando o próprio corpo morto, largado sobre o tapete com sangue escorrendo pelo torso. — Eu me sentia culpada justamente porque não acreditei que conseguiria seguir com Claude. Ninguém o respeitava, nem mesmo sua própria família. Ou eu, ou uma de minhas irmãs se casaria com o nobre estrangeiro rico... — Ela riu, suas mudanças de humor abruptas preocupando-me. — Na verdade, fui a primeira a me voluntariar por ser a mais velha. Acreditava que partir com ele me daria condições de ser uma pianista de renome.
— E foste essa pianista!
— A troco de quê? — Ela encarou-me, enraivecida. — A troco de viver no passado, arrependida da minha escolha? Deixei meu marido definhar, enlouquecido, sem cuidados que uma esposa deveria ter com ele.
— Não tinhas obrigação de ser essa pessoa que ele tanto queria. — Impus-me sobre ela.
— Se não fosse esse maldito espelho, talvez nosso casamento não tivesse tido um fim tão trágico... — Ela aproximou-se da moldura em prata. — Foi uma fixação que começou a crescer com o passar dos anos. Eu só conseguia pensar em retornar para esta sala, tocar a música que meu Claude tanto amava. Só conseguia querer cruzar esse vidro para me jogar em seus braços e perder-me no tempo...
Na medida que descrevia suas desventuras com o espelho, os reflexos do dito cujo mudavam, mostrando-lhe Claude abraçando-a protetoramente. Aproximei-me dela para afastá-la do espelho, mas assim que fiquei logo atrás de Margot, a superfície de vidro tremeluziu até me mostrar uma versão minha e de Gomes um pouco mais velhas, caminhando de mãos dadas, risonhas na Praça Batista Campos, as garças sobrevoando no final de tarde.
Meu coração saltou de um jeito inesperado, sufocando-me. Ergui a mão para tocar no vidro e frustrei-me por não conseguir atravessá-lo.
— Podemos ficar aqui, Louise Doyle — sussurrou Margot, ainda encarando o reflexo de uma versão sua e de Claude juntos. — Desfrutar da companhia de quem verdadeiramente amamos...
Ver-me tão feliz ao lado de Gomes despertou uma euforia paralisante. Ajoelhei-me perante o espelho, adorando a imagem que seguia em repetições. Aquilo poderia acontecer um dia, então? Talvez não mais, não com um casamento sendo elaborado, não com a expectativa de minha família sobre a minha união com Norberto. Mas, e se talvez, talvez eu pudesse levar aquele espelho comigo? Então, quando Norberto estivesse viajando, eu poderia viver meus sonhos não vividos com Gomes. E se...
— "Abre caminho!"
Fumaças azuladas preencheram a sala, sufocando-me. Margot soltou um berro de susto que reverberou pelo espaço. Atrás das fumaças, próximo da porta, Gomes surgiu com um par de cordas salpicadas de sal grosso que lançou sobre Margot. As cordas encantadas enrolaram-se em seus pulsos e tornozelos.
— Louise!
— Go... — Arrastei-me até ela enquanto os gritos de Margot causavam-me um tremor no corpo. Ainda estávamos ligadas por nossas memórias compartilhadas, então, cenas repetidas do assassinato misturadas àquelas que vivenciamos começaram a nublar minha visão focada em Gomes, que me segurou pela cintura, ajudando-me a levantar. — Agatha, precisamos sair daqui!
— O que aconteceu?
— Margot não vai embora. O espelho... — Apontei para o maldito. Estava sacudindo, apresentando uma variedade de memórias do que fora e do que podia ter sido. Ora era Claude e Margot sorridentes na loja de perfumes, ora éramos eu e Gomes emaranhadas por um lençol branco sob o luar ... — Gomes, eu...
Se ela viu o que vi, optou por não me fazer perguntas. Estava encarando a cena do assassinato na sala: o corpo de Margot contorcido próximo ao piano, uma abertura ensanguentada no robe indicando a perfuração pelo canivete do Dr. Bolognesa.
— O grilhão é ela. — Gomes concluiu sem que eu precisasse explicar e, então, encarou a fantasma contorcendo-se em suas cordas mágicas. — Margot, precisas ir embora!
— Não, não posso deixar Claude.
— Quem é...
— Margot, você e Claude nunca... — Tentei acalmá-la, mas a breve menção de que tudo o que via e sentia no espelho era mentira deixou-a sem controle.
O grito não resignado ecoou pelos corredores.
— Se havia uma chance de o palacete inteiro não despertar para nossa presença aqui... — disse Gomes com uma calma que eu sabia que ela não estava sentindo. — Já era. Precisamos pegar o beco...
O interior da sala começou a se tornar mais viscoso, pesado, como se estivéssemos dentro de um aquário de óleo, ao invés da leveza fluida que senti quando entrei no recinto. Os objetos começaram a flutuar, e a gravidade mudou, tornando nossos corpos leves demais para aquele lugar. Gomes distraiu-se o suficiente para que Margot conseguisse puxar a corda que a prendia, desfazendo o nó com agilidade. Ela começou a se arrastar até o espelho, como uma pessoa no deserto sedenta pelo oásis, e eu a segui, tentando respirar, ainda que o ar estivesse denso demais para um corpo humano vivo. Eu não tinha forças sequer para ficar de pé, então engatinhei, aproveitando o atrito do carpete, tentando alcançar o espelho antes de Margot.
A energia da fantasma estava a níveis perigosos. Seus desejos materiais tinham criado uma atmosfera de tensão tão forte com a realidade que o palacete parecia se submeter às emoções dela, agora sombrias e mais nebuladas do que nunca. Aqueles sentimentos revestiam o lugar como uma âncora, tornando cada vez mais difícil distinguir as leis da física naturais e o surrealismo do mundo de uma alma morta.
Antes que eu ou Margot pudéssemos chegar ao espelho, Gomes arquejou. O corpo sem vida do Dr. Bolognesa começou a se mover do chão, sua expressão ensandecida, combinada com o rosto coberto de sangue e a perfuração no pescoço, dava-lhe um aspecto quase demoníaco. Não parecia ser um eco de suas lembranças, e sim o fantasma do próprio Dr. Bolognesa, despertado pela agitação na sala onde se originou o estopim para sua morte.
Gomes sacudiu o cordão de banhos-de-cheiro em busca de algum que funcionasse, mas não antes de o morto Dr. Bolognesa avançar sobre mim, seus dedos ensanguentados enroscando em meu pescoço, como se fosse eu seu alvo.
— Desgraçada, eu te achei!
Enquanto ele se distraía comigo, Margot aproveitou a oportunidade para continuar sua trajetória em direção ao espelho. Lágrimas acumularam-se em meus olhos com a força com que Dr. Bolognesa sufocava-me, o ar começando a ficar escasso.
— Gomes... — Engasguei tentando me soltar. — ... não deixe Margot chegar ao espelho!
Agatha estava correndo até mim quando parou, assombrada com minhas ordens. Então, retirou um de banho-de-cheiro, girou para ganhar impulso e jogou o frasco em direção a Margot.
— "Quebra-Feitiço"!
O líquido amarelado tremeluziu e explodiu sobre Margot. Ela, a fantasma mais poderosa do palacete, havia conseguido nublar os sentidos até mesmo do espírito do marido por quase dois dias inteiros. Com o "quebra-feitiço" de Gomes agindo no sobrenatural, Margot perdeu sua regência sobre os nossos sentidos. A sala começou a se modificar aos poucos, voltando ao estado original do momento da morte.
O Dr. Bolognesa me soltou, e eu pude respirar aliviada o ar menos carregado que antes, embora com um nítido cheiro de sangue. Gomes apressou-se em se ajoelhar ao meu lado, os olhos franzidos de preocupação. De relance, percebi o corpo fantasmagórico do engenheiro investir-se contra a esposa.
— Sua vadia desgraçada! — gritou ele, agarrando Margot pela cintura. — Não vais escapar de mim de novo!
— Fique longe de mim! — vociferou Margot. — Seu desgraçado! Tiraste minha vida e ainda me persegues no pós-vida! Me deixe em paz!
— Sua cadela imunda! Se não fosse tua obsessão por esse espelho... — Ele atracou-se nela, tentando enforcá-la do mesmo jeito que fizera comigo, mas Margot segurou-o pelos cabelos, afastando-o. Embora fantasmas, ambos pareciam sentir dor física, como se os ecos da última briga ainda refletissem neles.
— Precisamos destruir esse espelho... — disse Gomes, em conclusão lógica.
Encarei o vidro, o reflexo mostrando as imagens que eu tanto queria vivenciar. Parecia que a moldura de prata esboçava um sorriso vitorioso sobre mim, instigando-me a protegê-lo, chamando-me pelos meus sonhos. Não consegui controlar minha língua:
— Não, não podemos — sussurrei, o reflexo de uma vida que eu nunca teria começava a passar como filme pelo espalho. — É um espelho raro. Precisamos guardá-lo.
Gomes pegou meu queixo e virou-me para ela, seus olhos castanhos sérios e preocupados.
— Louise, seja lá o que viu ali, não é real.
Suas palavras me perturbaram. Minha mente gritava para ter paciência, para entender o que ela queria dizer com aquilo, mas tudo o que senti foi uma angústia sufocante, uma solidão que corroeu meu estômago de medo. Tentei soltar-me dela, sentindo-me como se estivesse afogando em mar aberto, buscando uma superfície que não conseguia alcançar.
— Não! Solte-me, Agatha!
— Louise, por favor, pare! É o efeito do espelho, olhe pra mim. — Ela me apertou ainda mais contra si, puxando minha cabeça para longe do espelho.
Gomes encarou o casal que brigava à nossa frente, próximo do objeto amaldiçoado. Pareceu ficar em dilema por alguns segundos, os dedos tamborilando um frasco de banho-de-cheiro vermelho-vivo. Debati-me um pouco mais porque sabia exatamente o que se passava em sua mente tão inteligente.
— Agatha... — Segurei seu rosto confuso com as duas mãos, minha voz desesperada em soluços. — Por favor, não!
Ela fez uma careta de dor, e eu, conhecendo-a tão bem, sabia que sofria por me ver naquele estado. Suas mãos seguraram as minhas, apertando-as como se quisesse mantê-las em suas bochechas, enterrá-las em segurança.
— Louise, o que você vê?
— Eu... Eu vejo nosso "e se...", aquele que não tivemos — sussurrei, convincente, aproximando-me dela e colando nossas testas. Parte de mim queria gritar para que ela jogasse aquele banho-de-cheiro explosivo contra o espelho, mas a outra queria, enlouquecida e desesperadamente, que ficássemos daquele jeito para sempre, encarando uma realidade que não tínhamos conseguido construir. — Agatha, por favor, não nos destrua novamente!
Aquilo foi cruel. Eu não queria dizer aquilo, eu não queria. Eu sentia, é verdade, eu culpava Gomes por não estarmos juntas, mas não era justo! Não podia dizer-lhe o que sentia sobre nós daquela forma, naquele estado febril de desespero.
Gomes não interpretou da melhor forma. Ela se retesou, soltando minhas mãos e empurrando-me com leveza, ainda tão gentil, mesmo quando seus olhos esboçavam uma dor e um ódio que não lhe eram comuns. Ela vociferou:
— Sim. Tens razão, Louise, não posso nos destruir novamente!
Ela ficou de pé, ignorando minhas lamentações, e o máximo que pude fazer foi me agarrar aos seus calcanhares. Só ouvi sua voz gritar "Égua do calor!" antes de jogar o frasco contra a superfície vítrea, onde havia um retrato perfeito da noite em que Gomes havia me dito tanto naquele quartinho escuro em Sarreguemines.
— Eu queria que aquilo nunca tivesse acontecido — disse ela, em claro e bom som. Soltei seu calcanhar, mais em choque pelas suas palavras do que pela explosão que o banho-de-cheiro provocou ao atingir o espelho, espalhando estilhaços ao redor.
[Continua na Parte 2]
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