[Continuação da Parte 1]
O impacto da explosão nos jogou para o outro lado da sala, e eu caí rolando, batendo de mau jeito meu pulso direito.
— Louise! — Gomes correu até mim, segurando meu pulso dolorido. Grunhi de dor e tentei imobilizá-lo ao mesmo tempo em que tentava me afastar dela, incapaz de encará-la depois que ela dissera tão nitidamente que se arrependia da noite mais importante de minha vida.
Alheios aos nossos problemas internos, Margot e o marido pararam de se engalfinhar, encarando-se assustados antes de se virarem para nós duas, confusos.
— Vocês precisam partir! — disse Gomes, serena. — Não podem ficar aqui por mais tempo, caso contrário, esse palacete de memórias se tornará uma Casa-Amaldiçoada. É isso que vocês querem que um patrimônio tão importante de vocês se torne?
O Dr. Bolognesa levantou-se, perturbado.
— Não posso permitir que nosso lar se torne um monstro. — Ele abaixou-se para a esposa. — Mas, no fim, ela é quem decide.
Margot estava ainda no chão, olhando desamparada para o que tinha sobrado do espelho quebrado.
— Claude... — sussurrou, lágrimas escorrendo dos olhos. Ela enterrou a cabeça no carpete, o corpo sacudindo em soluços. — Claude!
— Margot, siga em frente, que eu irei! — rosnou o Dr. Bolognesa, apontando para ela. — És o grilhão que me prende neste palacete. Tire-nos daqui!
Soltei-me de Gomes e, cambaleando, aproximei-me de Margot, ignorando a confusão no rosto do Dr. Bolognesa, com sua expressão tornando-se inquisidora em poucos segundos. Com a mão sem dor, massageei os ombros da fantasma, sem conseguir odiá-la, mesmo depois de tudo.
— Margot, eu gostaria que tivesse sido diferente pra ti. — disse eu, e ela encarou-me ainda chorando, mas ao menos atenta. — Eu lamento por tudo: por tuas escolhas erradas, pelas circunstâncias que te levaram a elas... E pelo que deixaste pra trás.
Margot fungou, assentindo.
— Agora está na hora de deixar isso para trás também. — Percorri os olhos pela sala, mas imaginando todo o palacete do casal. — Aqui não há nada além de suas memórias amargas, salpicadas de muita dor e sofrimento. É melhor revivê-las eternamente ou se arriscar no incerto que te espera no pós-vida?
— O melhor é viver com Claude!
— Quem é Claude? — questionou o Dr. Bolognesa.
— Mas Claude é teu passado — disse eu, pressionando seu ombro. — O espelho só se alimentava dos teus desejos. Dê a ti mesma um pouco de paz, Margot.
Não sabia precisar quanto tempo tinha passado, se segundos ou minutos, mas, aos poucos, seus olhos azuis cheios de dor foram se tornando mais lúcidos e resignados. Ela inspirou, erguendo-se e encarando o marido com desgosto.
— Até que a morte nos separe — disse ela, imponente. O Dr. Bolognesa devolveu o olhar com altivez.
— Ela já nos separou.
Encarando-se como se o ódio fosse o único fio que os conectava, seus corpos começaram a emitir um brilho nas bordas. Antes que seu semblante desaparecesse em um rompante de luz, Margot olhou para mim. Seus olhos agradeciam-me em silêncio, uma compreensão sensível que só duas pessoas que viram os maiores erros e acertos uma da outra conseguiriam alcançar.
— Adeus! — despedi-me, e seus fantasmas foram consumidos pela luz, uma brisa fresca e singela rodeando a sala.
Gomes já estava sobre a cena do crime, observando a forma como os corpos estavam dispostos no chão, o sangue ainda de cheiro intenso impregnando o local de tal maneira que me perguntei como ela não se incomodava de estar tão perto das poças do líquido viscoso.
— Como está a mão? — perguntou, tocando com leveza metade do vaso quebrado que Margot usara para acertar a têmpora do marido, após colocar uma luva que certamente saíra de algum de seus muitos bolsos.
— Nada que uma tala, gelo e um anti-inflamatório não possam resolver — respondi, a voz embargada, enquanto usava a mão direita para limpar algumas trilhas de lágrimas, que só naquele momento percebi existirem. Funguei, e Gomes levantou-se para vir ao meu encontro, apertando meus ombros.
— Louise, acredito que precisamos conversar sobre o que vimos. — Ela parecia determinada, muito diferente da pessoa que havia dito que se arrependia de ter se confessado.
— Não há nada para dizer — falei, séria, e ela soltou meus ombros como se tivesse levado um choque. — Continua tua investigação, Gomes. O espelho ainda não foi analisado, por sinal. — Gesticulei em direção ao objeto.
Gomes hesitou por alguns segundos, antes de assentir, cabisbaixa, e dirigir-se em direção à moldura, a única parte do espelho ainda intacta. Evitei encará-la e preferi ver os corpos mortos do casal com uma morbidez quase apática.
— Como suspeitei... — disse ela, parecendo irritada. Dessa vez, virei-me para saber do que falava. — "Produzido em Londres, no ano de 1988, este espelho reflete o meu maior desejo. Renovo meus votos de estima ao novo casal. Com fraternos cumprimentos, L. M.".
Talvez fosse a dor ou, ainda, o que restou de mim depois de tantas emoções e memórias, mas não consegui entender sua conclusão repentina.
— Não compreendi.
Gomes saiu de trás da moldura do espelho com uma expressão sombria.
— Foi o mesmo ano em que Lady Morgana obteve os utensílios que está leiloando e, curiosamente, o ano em que Bolognesa anunciou estar trazendo Margot Maxime para Belém. Ou seja, deve ter sido em 1888 que ele rejeitou Lady Morgana para ficar com Margot. E eles ainda viajaram no mesmo navio na ocasião, então é possível que Lady Morgana tenha vindo ao Brasil já com o presente de casamento amaldiçoado. Ela estava com o coração partido e o orgulho ferido. — Gomes grunhiu de raiva. — É lógico que ela sabia sobre o espelho amaldiçoado, já estava de olho neste palacete quando Bolognesa começou a construí-lo, ela era uma musa inspiradora para a arquitetura do local e sempre gostou de colecionar imóveis luxuosos. É seu passatempo favorito há mais de quinze décadas, se meus dados sobre seu domínio de boa parte dos palacetes e mansões em Edimburgo estiverem corretos.
Quis inquirir Gomes sobre suas acusações, afinal já estava acostumada com suas elucubrações contra Lady Morgana, mas me lembrei do presente que encontramos no antiquário do Dr. Bolognesa, o relógio prateado, junto à carta que não deixava margens para presumir um relacionamento no mínimo íntimo suficiente para não dizer apenas "amizade".
Mas eu e Gomes tivemos um momento íntimo e ainda éramos consideradas amigas. Talvez, para o Dr. Bolognesa, o que ele e Lady Morgana tiveram não era nada além de uma aventura entre amigos. Senti-me enojada por comparar Gomes ao Dr. Bolognesa, contudo, ela não estava fazendo nada que pudesse justificar o contrário.
Gomes encarava-me em expectativa, um olhar animado dizendo-me para inquiri-la mais sobre suas conclusões, sobre sua missão e suas ideias.
E eu estava farta.
— Uma hora e meia de efeito, certo? Já deve ter dado o tempo necessário. — Dirigi-me para fora da sala. — O delegado já deve estar nos aguardando a essa altura.
Saímos em silêncio, passando pelo corredor iluminado por lustres, o que nos permitiu ver em detalhes os mosaicos brancos e azulados no chão. O palacete inteiro estava exatamente do mesmo jeito que fora deixado quando os donos faleceram.
Diferente de quando entramos, o sol já estava se pondo lá fora, pintando o céu de um laranja esfumaçado, quase terroso, devido às fumaças dos zepelins. Algumas viaturas estavam ao redor do imóvel junto a um carro que trazia a logo de um dos jornais da cidade. Uma entrevistadora animada veio em nossa direção, e eu prontamente me desviei dela, mas não antes de sentir a mão de Gomes no meu cotovelo. Virei-me, seu olhar pedindo-me para ficar, ao mesmo tempo que ela tentava desviar do radiofone que a entrevistadora enfiou debaixo do seu queixo, enchendo-a de perguntas surpreendentemente pertinentes sobre como ela havia conseguido soltar os grilhões dos fantasmas do Dr. Bolognesa e de Margot.
Com meu silêncio taciturno, Gomes desistiu e voltou-se para a entrevistadora com um sorriso confiante, respondendo-lhe tudo com a velocidade de uma vitrola. O Delegado Astrogildo, quase dois palmos mais baixo que eu, estava em seu típico fraque cor de manga, usando um chapéu panamá. Ele veio falar comigo com suas bochechas rechonchudas e com covinhas, agradecendo-me.
— Tenho mais uma missão pra essa dupla infalível! — disse ele, todo sorrisos.
— É com ela, senhor delegado... — Indiquei Gomes com a cabeça — ... sempre. A mim só compete ajudá-la, quando necessário.
Ele pareceu confuso, e já ia vir com uma saraivada de perguntas, quando notei, atrás das viaturas, um novo veículo. Senti minha pressão cair ao perceber que se tratava do carro dos meus pais, e quando a luz do pôr do sol desceu sobre a carranca mal-humorada de minha mãe saindo do banco do carona, eu sabia que tinha cometido uma grande gafe.
— Eu posso explicar — sussurrei antes de ouvir o sermão, aproximando-me dela.
— Não há explicação pra essa pouca vergonha. — Toquei com leveza no meu próprio braço, os lábios trêmulos. — Louise, veja só como estás, minha filha. Mais uma vez! Quanto mais podemos aguentar? Em breve estarás tão machucada que nem andar vais poder.
— Maman, eu...
— Ainda por cima, como se jogas nessa investigação fajuta hoje? Logo hoje, ma fille, que Norberto chegou de viagem! Era para tu estares conosco na Estação das Docas esperando por ele! Perdeste a prova do próprio vestido de noiva hoje!
— Eu sei. — Minha voz saiu mais embargada do que eu queria. Ela tinha razão em estar tão enraivecida, ela se dedicava de corpo e alma ao meu casamento, enquanto eu sequer podia comparecer à prova do meu próprio vestido. — Sinto muito.
— Sente muito? Imagine o peso nos nossos bolsos por pagar adiantado a prova. — Ela grunhiu, encolerizada. — Vais amanhã, sem falta, Louise Beauregard Doyle, e dê um jeito nesse pulso.
— Podemos adiar — sugeri, esperançosa. — Até meu pulso melhorar.
— Mais uma vez, Louise? Norberto está, neste momento, reservando um jantar no La Massile, ansioso para te ver. Que falta de consideração da tua parte não estar lá para recebê-lo quando desembarcou. Tinhas que ver! Ele trouxe um lindo buquê de orquídeas, tuas favoritas...
Não era verdade. Orquídeas eram lindas, mas eram as favoritas de maman, embora ela dissesse a todos que nossos gostos eram iguais. Eu, por minha vez, sempre preferi lírios brancos como as nuvens. Talvez a única pessoa que soubesse disso era aquela que tanto me machucara naquele dia.
— Em vez disso — ela continuou —, veio se machucar em uma missão com essa... — Ela engoliu, sabendo que não me agradariam seus xingamentos direcionados a Gomes. Ainda assim, não se conteve: — Essa dissimulada e inescrupulosa detetive!
— Eu... — Tentei encontrar forças para contrariá-la, mas a verdade é que ainda sentia o peso de muitas imagens e palavras ecoando em minha mente. — Achei que seria rápido — menti, sentindo-me culpada de repente. — Sinto muito. Havia esquecido que ele retornaria hoje, e que tínhamos agendado a prova do vestido.
Outra mentira. Eu estava me tornando especialista nisso. Maman resmungou antes de entrar no carro, incrédula com minhas desculpas esfarrapadas e chateada com meu aparente desinteresse pela prova do vestido. Antes de entrar no carro, virei-me para Gomes, que havia finalmente terminado a entrevista e conversava com o delegado, a mão no queixo em concentração, enquanto ouvia o que poderia ser mais uma missão.
Enquanto eu a observava, seus olhos de citrino me encararam por alguns segundos. Naquele breve momento, perguntei-me por que ela ainda era meu grilhão, quando até mesmo uma amante apaixonada e correspondida soube dizer adeus às suas memórias afetivas no pós-vida. Eu posso ter sido correspondida por um instante que perdurou uma madrugada inteira, mas a que preço e como? A que peso e por quê?
Tantas perguntas e, como sempre, eu sentia que somente Gomes poderia respondê-las. Os únicos enigmas que ela não sabia decifrar eram aqueles que envolviam o que ela sentia por mim, o que levou às nossas confissões imaturas e entusiasmadas naquela noite de 1905. A ironia era que eu, como sua parceira de investigação, tinha o dever de auxiliá-la a chegar em suas conclusões, mas, na mais crucial das dúvidas, fui apenas o pivô de suas incertezas.
Tudo isso para que eu escutasse "Eu queria que aquilo nunca tivesse acontecido". Cerrei o punho enquanto seu olhar atento ainda vagava sobre mim. Queria me vingar, puxá-la daquela conversa com o delegado, empurrá-la contra a parede e dizer-lhe com todas as forças que também me arrependia, que eu não a amava e nunca amei, que eu tinha encontrado o amor em uma pessoa que era melhor para mim, que ela era culpada por nos destruir... Queria machucá-la como ela havia me machucado, ao mesmo tempo que queria demonstrar exatamente o contrário de todas aquelas palavras.
Eu não sabia o que ela enxergou em meus olhos ao trocarmos essa faísca introspectiva, mas sua expressão ao retomar a conversa com o delegado era exatamente a mesma de quando Gomes queria chorar. Fiz menção de avançar até ela para abraçá-la e dizer que tudo ficaria bem, que ela não precisava se sentir daquele jeito, mas senti um punho firme ao redor do meu pulso machucado. Gemi de dor e encarei os olhos astutos de minha mãe no interior do carro, uma severidade que me corroía e paralisava.
— Entre no carro, Louise. Vamos encontrar teu noivo — disse, sem espaço para um "não". Adentrei o veículo, só depois notando a presença de meu pai, que sorriu para mim e me perguntou algo que não ouvi, ou, se ouvi, talvez tenha respondido de forma automática.
Sentia como se a dor em meu pulso estivesse anestesiada por uma dor ainda pior, que não vinha de qualquer lugar que eu pudesse diagnosticar, e sentia que tampouco levaria a algum lugar.
Mas, como dissera minha mãe, havia alguém me esperando, alguém com certezas, e aquilo deveria ser o suficiente.
Fim.
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CRÉDITOS
Autora: Giu Yukari Murakami
Edição: Bárbara Morais e Val Alves
Preparação: Val Alves
Revisão: Gabriel Yared
Diagramação: Val Alves
Título tipografado e montagem da capa: Fernanda Nia
Ilustração da capa: Maiara Malato
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