— E ele simplesmente sumiu?
— Foi. Como um fantasma.
O copo em minhas mãos fez um barulho estranho, indicando que eu havia terminado meu frappuccino de caramelo, enquanto Dave ainda aquecia as mãos enluvadas no seu mocca. Estávamos naquela cafeteria há vários minutos, e eu escolhi aquele momento para contar tudo sobre meu “encontro quente” da noite anterior.
Claro, Dave devorou cada detalhe como as migalhas do croissant que comprei para ele.
— Jesus — foi seu veredito final. — Eu te arranjo um date, e você me volta amaldiçoado, Alex.
Dave Collins era meu melhor amigo, ou algo parecido. O mais próximo que você poderia chegar disso quando se tratava de minha pessoa. Eu o conheci quando ele ainda trocava as fraldas — bem, um pequeno exagero. Ele tinha seis ou sete anos, e estava prestes a começar a escola nova. Os pais dele o levaram à igreja, assim como minha mãe me levou para a mesma catequese. Nós ficamos no mesmo grupo de crianças, e estávamos lá no dia do acidente.
as pedras sobre nós
o rosto assustado de Dave
as mãos que agarrei
Senti um arrepio na espinha só de me recordar daquilo. Quando eu olhava para Dave, todas as memórias vinham, sempre. Era uma culpa que eu não conseguia expiar.
Talvez Deus tivesse me amaldiçoado desde aquele dia.
— Bem, eu, de fato, dormi com alguém.
— Mas só dormir não conta. Você está sendo literal para distorcer os fatos.
— Não fiz o que você pediu na aposta? Cumpri todos os termos. “Aceitei um encontro quente, e dormi com um rapaz”. Mais sorte no Mario Kart da próxima vez.
Dave fez um muxoxo, e sorveu mais do mocca. Ele ficava realmente adorável quando contrariado, e por Céus, era uma das coisas que eu achava mais divertida de fazer: antagonizá-lo. Dave era três anos mais novo que eu, e ele tinha os olhos amendoados cor de mel com a expressão de cachorro abandonado mais fofa que eu já tinha visto. Lógico, isso sempre amolecia meu coração duro e frio como gelo, mas hoje não.
Hoje, eu era vitorioso naquela nossa aposta.
Mesmo de uma forma estranha e especialmente esquisita.
— Eu diria que você estaria mentindo para mim, se não fosse uma história completamente fantástica e inacreditável — ele disse, por fim. Vi-o remexer no celular e olhar pelo visor da câmera frontal, checando a franja tingida de púrpura, assim como todo o cabelo.
Eu sabia que aquilo não era um sinal de vaidade, porém. Dave era a última pessoa a ser vaidosa. Quando estava assim, era porque…
— Nunca iria mentir para você, e você sabe disso. — Dei meu melhor sorriso para ele, tentando mudar de assunto. Ele parou de encarar o celular, e virou o visor para baixo. E sorriu. Bom. Aquilo era um ótimo sinal.
— Bem, saiba que nossa aposta ainda está de pé. Você ainda tem que sair em um encontro com alguém.
— Ei!
— Mas sabe… — Ele colocou a mão no queixo, e afagou sua barba imaginária. Eu apenas ri. Dave não tomava hormônios a tempo suficiente para crescer barba. — É como o roteiro de um livro, sabe?
— Como assim?
— Vocês na chuva, um encontro…
— Está mais para um agarro.
— Que seja. Um encontro do Destino, eu colocaria assim. Como almas gêmeas destinadas a se encontrarem, akai ito. Sei lá. Meio romântico.
Eu dei de ombros. Por alguma razão, aquelas palavras me pareciam muito além do escopo.
— Eu só achei que ele precisava de alguém. Poderia ser qualquer pessoa. Poderia ser você, no meu lugar, indo a um encontro quente.
Dave pareceu refletir.
— Mas foi você, Alex. É o que importa.
O que eu podia fazer?
Eu suspirei.
— Bem, destino ou não, não irei procurar mais trabalho do que já tenho agora. — E apontei para Dave, que apenas sorriu, parecendo um pouco culpado. — Deixarei ao acaso.
— Bem, você tem um nome e um rosto. É a época das mídias sociais. Encontrá-lo não seria tããão difícil assim.
— Acaso, Dave. Se for para ser, assim será. Se era mesmo para nos encontrarmos, se os nossos Destinos estavam traçados no mesmo tear da Vida, tenho certeza de que nos encontraremos novamente.
Dave pigarreou, rindo.
— Você é mesmo um romântico incorrigível. Tudo bem, mas espero não ser um fantasma.
Minha gargalhada ecoou pela cafeteria, e alguns alunos me encararam, sua paz perturbada pela minha inconveniência: portanto eu era um estranho chato.
Eu não me importava de chamar a atenção. Era o que quase dois metros de altura, uma tatuagem no rosto e cabelos pintados de vermelho vivo desde os treze anos faziam a você. Eu era uma criança problema desde que me entendia por gente. Podia não ter muitas amizades e tinha mania de afastar a todos com exceção de Dave, e era melhor assim, mas a atitude permanecia. Eu não me importava com as pessoas.
Dave, no entanto, se importava e muito com o que os outros pensavam. Como era mais novo do que eu, lógico que admirava a minha estética e me adorava, mas… ele não tinha a minha autoconfiança. Ou como chamava, o meu poder de mandar as outras pessoas se foderem. Ele ainda se escondia atrás de moletons maiores que seu tamanho e mangas que se estendiam além dos seus dedos, fingia mexer no celular a maior parte do tempo, e quando as mãos não estavam grudadas no aparelho, estavam segurando firmemente as alças da mochila púrpura, igual ao cabelo, da qual não se separava nunca.
Comparado a Dave, você era menos tangível. Mas...
— Espero que não tenha sido um fantasma. Eu me lembro bem do seu toque.
As sobrancelhas de Dave se ergueram e quase se juntaram ante aquela nova informação.
— Alex Morris, você não me disse que “tocou” ele.
Bem, acho que dei detalhes demais. Peguei meu celular, tentando disfarçar.
— Olha a hora. Acho que tenho que levar você para a sua aula. — E comecei a me levantar, pegando a minha mochila e o copo vazio, indo em direção ao lixo comunal para descartá-lo.
— Alex Morris! Volte aqui e me conte essa história direito!
— Dave Collins, hora de sofrer junto com seus coleguinhas do curso de escrita criativa!
Dave chegou ao meu lado, e ainda segurando seu mocca, e eu peguei em sua mão. Era apenas um hábito, mas pela temperatura fria das mãos de Dave, eu sabia que ele precisava. Ele segurou firme contra mim, e seguimos até o prédio em que sua aula era localizada, em silêncio.
Eu sabia que quando ele ficava assim era porque mil pensamentos passavam por sua mente, e eu tentava mudar de assunto, tentando estimulá-lo, como sua psiquiatra sugeriu anteriormente, mas Dave continuava em silêncio logo em seguida, então eu fiquei calado também. Não queria forçar nada. Só de tê-lo ali, ao meu lado, era o suficiente.
Naquela época, eu não sabia de nada.
— Chegamos — eu anunciei. Eu sabia onde eram suas aulas. Se eu sabia onde eram todas as minhas aulas? Claro que não. Era quase o final do semestre, e eu ainda precisava checar o portal do aluno para andar por aí. Só com Dave eu tinha uma atenção especial. — Está pronto?
Ele parou em frente à porta. Estávamos um pouco afastados, então pude observar um pouco do grupo de seus colegas. Eu os conhecia mais ou menos, Dave falara um pouco sobre eles. Ele os observava, mas não fez amizade com ninguém até então.
Isso era outro problema que eu evitava pensar.
— Eu acho que sim. — Ele assentiu, olhando no celular de novo para ver sua aparência. — Estou bonito?
Eu sabia que ele estava perguntando aquilo apenas por ansiedade, mas eu não diminuiria seu ego apenas por brincadeira. Eu apertei o nariz dele e disse:
— Você é a pessoa mais bela que eu conheço.
Ele riu.
— Pare de puxar meu saco, Alex. Eu nem tenho um.
Levei minha mão para seus fios arroxeados e arrumei-os mais ainda, como uma mãe faria. Kate ficaria orgulhosa de mim. Ao menos, ela admirava o modo como eu cuidava do filho dela. Ela gostava de dividir aquele fardo, já que era uma mãe solo, e o filho era um poço de problemas. Bem, Dave era uma gracinha.
— Vai dar tudo certo. Eu te espero depois da minha aula. Você sabe onde é?
— Eu sei. — Ele fez um muxoxo, arrumando o próprio cabelo. — Você sabe onde é?
Eu apontei para a enorme pasta de desenho que carregava.
— A única aula que vale a pena. Anatomia.
— Aaah, ver gente nua. Acho que você realmente está precisando disso.
— Não depois de ontem à noite.
Dave fez outro muxoxo.
— Você realmente está omitindo muitos detalhes do que aconteceu. Prometa que vai me contar tudo depois da aula!
Eu apontei em direção a uma pessoa que vinha pelo corredor, e dei alguns passos para trás.
— Olha, aquele não é seu professor? Entra logo na sala, antes que você não possa mais entrar… Estou atrasado para a minha aula!
Ele lançou um olhar para a pessoa, e simplesmente desistiu, mas não antes dizer:
— Você está sempre atrasado, Alex.
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