INTERLÚDIO
Era quase impossível enxergar no escuro, mas à meia luz, seus cabelos refletiam os raios dourados que vinham da janela acima da geladeira, enquanto sua respiração rítmica era tudo que eu ouvia, além da minha própria voz. Nada mais restava naquele apartamento. Não havia mais materiais de arte, projetos inacabados, nem o banquinho que um dia me sentei para desenhá-lo.
Só eu e você.
— Jesse — falei seu nome, como se quisesse agarrá-lo, como se dizer seu nome pudesse de alguma forma torná-lo tangível. Não me atrevia a tocá-lo. Sua imagem era pálida, como se eu visse de fato um fantasma à minha frente, fruto saído de meus pesadelos mais profundos, e no limiar da minha consciência, eu queria saber. — O que você viu na ponte naquele dia? O que o fez subir no parapeito, no meio da chuva, com nada para se segurar?
Achei que receberia apenas o silêncio como resposta, com seus olhos azuis inexpressivos me encarando de volta, mas sua voz, como eu me lembrava, falou.
— Eu vi uma luz. Um alien. Sei lá. Foi tudo, e foi nada.
— Você sempre esteve buscando coisas inalcançáveis.
Você sorriu, mas não de verdade.
Eu me levantei, e acendi outro cigarro.
E o vento que saiu de seus lábios veio misturado de meus pensamentos, suas verdades, e palavras nunca ditas.
***
Eu era uma supernova.
Uma estrela que um dia brilhou nos céus, mandando sua luz para toda a galáxia, e agora, depois de uma explosão, estava aos poucos se transformando, consumindo tudo ao seu redor.
E levaria todos comigo no processo.
Uma merda de supernova.
Para piorar, o dia estava congelante, o ônibus lotado, então a volta para casa foi mais torturante que o costume. Não que eu tivesse opções. Kurt tinha decidido me ignorar até agora, e eu estava puto com ele o suficiente para não aparecer em sua casa sem aviso, então precisava voltar para algum lugar. Com sorte, Chase não estaria em casa. Meu irmão era popular. Ele tinha lugares a ir, pessoas a ver. Não-namorados para foder.
Ele não me esperaria em casa.
Eu nem me preocupava com a possibilidade de Nama estar lá. Seu cronograma de trabalho era tão fodido, por ser uma enfermeira trabalhando em um hospital público, que raramente a via. Honestamente, era uma benção. Estar em sua presença era um martírio que preferia evitar. Podia simplesmente me esgueirar pela porta da frente, e quando tinha o azar de sua presença em casa, pular da janela do segundo andar onde ficava meu quarto. Não seria a primeira vez que escapava desse modo, nem seria a última. Não que considerasse a casa onde minha mãe e meu irmão moravam meu lar.
Mas eu já não poderia voltar mais para o número doze das ruas da Margaridas.
Não depois daquilo.
Suspirei.
Eu estava fedendo, também. Trabalhar três dias seguidos sem tomar um banho decente, e principalmente depois de uma foda com um estranho não eram as circunstâncias mais ideais. Claro que eu não poderia ter previsto que toda a merda ia atingir o ventilador desta maneira, mas…
Olhei pelo vidro do ônibus. Ah, eu tinha tomado banho na casa do tal Alex, não era? Alex Morris. Carinha interessante. Bonito. Meu tipo, com certeza. Só que… Não estava interessado em mim, mesmo com todo aquele discurso para me dar seu telefone. O papelzinho queimava dentro do bolso da minha calça, e eu, acima de tudo, tentava ignorá-lo. Dizia a mim mesmo que só o pegara para não deixar lixo em cima da mesa de trabalho. Que o jogaria fora assim que chegasse em casa. Melhor, colocaria fogo nele.
Só assim teria paz.
— Rua das Margaridas — a voz eletrônica anunciou, e eu acionei o botão de parada, me erguendo para sair do ônibus. Passei por várias pessoas no caminho, e desci. O ar frio de Novembro me abraçou, e despejei meu desespero nele.
Eu não queria voltar para aquela casa.
Mas que escolha tinha?
Caminhei devagar, tentando pensar. Escolhia as palavras com cuidado, repassando cenários em mente. As possibilidades que aconteceriam assim que eu girasse a chave e viesse me encontrar com meu irmão. A verdade é que a briga estava muito enevoada nas minhas memórias. Eu mal me lembrava do que eu havia dito ou deixado de dizer, porque eu havia bebido e muito. Mas sabia que havia magoado meu irmão, da pior maneira que eu poderia tê-lo magoado. Não poderia ir e consertar aquilo.
É difícil “destirar” alguém do armário.
— Merda…
Ainda parei alguns minutos na frente da casa. Imponente. Anos quarenta. Imperial. A típica casa dos sonhos perfeitos, com cerca branca e tudo. Um dia, fora de meus pais, antes do divórcio, antes do desastre completo. Um casamento perfeito, dois filhos gêmeos, um cachorro ou um gato. Netos. Este era o futuro com o qual Nama Bennett sempre sonhou.
Bem, olha só o que ela conseguiu.
Uma supernova prestes a explodir.
Girei as chaves mais uma vez nas mãos antes de dizer:
— Foda-se.
E abri a porta mesmo assim.
O calor e o silêncio me receberam. Pensei que teria paz, que conseguiria ir para o meu quarto tranquilamente quando notei a figura no sofá da sala, que me pegou. Um xingamento escapou da minha boca ao mesmo tempo que meu nome saía dos lábios dele:
— Jesse.
— Merda, Chase. Que susto.
— Precisamos conversar.
Estava aí a frase que eu mais temia ouvir. Teria ele esperado a manhã e começo da tarde inteira até que eu chegasse em casa? Ele não conhecia a minha rotina de trabalhos, visto que eu recebia meu cronograma semanalmente, e eu não anunciava para ninguém em casa para onde eu ia nem o que iria fazer. Eu tentava ser o mais livre e desimpedido possível.
Aparentemente, isso não impedia o meu irmão gêmeo de querer saber onde eu estava.
— Achei que você não queria mais falar comigo. — Bem, eu faria de tudo para escapar daquela “conversa”. Não estava pronto. Achei que estava, mas só de falar aquela frase, sentimentos se embolaram em minha garganta, como se uma pedra estivesse a travando, e me senti pronto para vomitar. Tirei meus sapatos e com eles em mãos, tentei correr escada acima, passando com estrondos pelos retratos de família que minha mãe insistia em pendurar, e eles insistiam em cair conforme passávamos pelas escadas.
(Não havia ele nas fotos).
— Eu sei o que eu disse, por que você tem que ser sempre assim?
Chase parecia decidido, no entanto, porque se levantou de supetão do sofá e foi em minha direção. Não subiu as escadas, ficando no andar de baixo e me olhando de baixo para cima.
— Você não precisa fazer isso — eu fui categórico.
— Claro que preciso. E você sabe o porquê?
Eu não queria saber.
eu queria
— Porque no fim, você é meu irmão. E eu te amo. Eu ainda não consigo te perdoar pelo que você fez, porque me magoou muito. Talvez, no futuro, eu conseguirei. Acho… Tentarei me esforçar para isso.
Estava encarando o corredor escuro do segundo andar, mas aquelas palavras me trouxeram lágrimas aos olhos. Eu fazia o máximo de esforço para não chorar na frente de Nama ou de Chase, mas ter uma réstia de perdão, ou uma possibilidade, me animou.
Eu não podia errar mais.
— Desculpe-me, Chase — eu pedi, baixinho.
— Se você quiser conversar mais sobre o que aconteceu… — Chase ofereceu sua mão.
Mas eu não podia. As palavras estavam emboladas. Todas juntas. Todas presas.
Não podiam sair.
— Se estiver tudo bem com você, eu prefiro ir para o meu quarto. Eu preciso resolver algo.
Chase baixou o olhar, mas sorriu.
Ele sempre sorria.
— Claro, claro. Fique bem, Jesse. Foi mal o soco. Não devia ter me exaltado, mas…
você mereceu
Ele apontou para o próprio olho, sabendo que eu era seu reflexo quebrado.
— Tá.
Aquilo encerrava o assunto, e corri de volta para meu quarto.
***
Meu quarto era o meu refúgio. O local onde supernovas nasciam. Um pequeno universo em miniatura e no escuro, não havia estrelas brilhantes ou galáxias que se desfaziam. Era apenas eu, e meus pensamentos cíclicos. Meu próprio buraco negro.
E como me desintegrava a cada palavra não dita.
Não acendi as luzes. Ainda estava com uma réstia de luz vinda da janela, mas como era Novembro, eu sabia que iria anoitecer em breve. Eu não me importava. Eu queria a escuridão. Era bem-vinda. Já estava em meu interior, poderia muito bem vir visitar meu exterior, também.
Deixei o conteúdo dos meus bolsos em cima da minha cômoda, o que incluía meu celular, minha carteira, e minhas chaves. Comecei a tirar a minha roupa e decidi que um banho estava em ordem, mas não agora. Estava sem forças. Joguei-me na cama, fechando os olhos contra o travesseiro.
Eu queria morrer.
Aquele pensamento era recorrente, e não tinha lugar algum para ir. Eu queria morrer, mas não me esforçava para viver, ou sequer me matar. Existia em um limbo, um dia de cada vez.
Na realidade, o que eu mais desejava era não existir.
Será que tinha algum botão no universo para criar um buraco negro bem ali, que apagasse a minha existência do espaço-tempo? Desse modo, eu não atrapalharia as pessoas ao meu redor. Não seria mais um fardo, ou ao menos, seria apenas uma despesa financeira por uma última vez. Deixar de ser um problema pelo qual as pessoas falavam pelas costas.
Eu só queria desaparecer.
Não sei estimar quanto tempo fiquei ali. Apenas vi as horas passarem, olhando o teto, o dia virar noite.
No escuro, uma estrela se acendeu.
Meu celular.
Devia ser mensagem de Kurt…
Ergui a mão o suficiente para pegar o celular da cômoda, mas algo caiu em frente aos meus olhos. Não apenas algo — um pequeno pedaço de papel. O maldito com o número de Alex Morris.
Eu ia jogá-lo fora, não é mesmo? Não ia ter mais contato com ele. Não iria arrastá-lo também para o vórtex que era a minha vida. Ele parecia ser gentil. Importava-se demais com as pessoas, apesar de declarar diversas vezes o contrário.
Só que…
Ele falou que eu podia mandar mensagem, não é?
Jesse: Ei.
Você disse que eu podia mandar mensagem a qualquer hora.
É o Jesse.
Me senti estúpido ao enviar porque era, acima de tudo, uma mensagem estúpida. Ele nunca veria aquilo. Sem falar que era uma frase vazia. Promessas vazias. Revirei os olhos, e recoloquei o celular em cima da cômoda.
O celular acendeu de novo.
Peguei-o como se fosse um bálsamo.
Alex: E aí. Como está, Jesse?
Bem, ele poderia melhorar a cantada dele.
Jesse: Poderia estar melhor ;)
Alex: Pois é, o tempo está horrível.
Jesse: ????
Alex: Achei que quisesse se concentrar em outra coisa. Estou errado?
Ponto para ele.
Jesse: Você está certo.
Alex: Estou à disposição.
Encontrei-me sorrindo pela primeira vez naquele dia. Quem diria que Alex Morris teria aquele efeito em mim. Era bonitinho, sim, pela foto de perfil. Talvez…
Alex: Ei, você quer sair qualquer dia desses? Acho que começamos errado, e eu quero te ver fora da faculdade. Quer sair pra tomar um café?
Considerei bastante aquele pedido. Talvez fosse errado me envolver com ele, talvez fosse o que eu precisasse. Talvez eu simplesmente estivesse de saco cheio. Talvez...
talvez eu quisesse viver, afinal.
Jesse: Estou livre na Sexta.
Comments (0)
See all