São Paulo, 2023
― Obrigada, doutora. ― Sob a gaze que ainda segurava contra a narina, a voz da paciente saiu anasalada. Tinha a cabeça levemente tombada, o coque grisalho quase se desfazendo.
― Não precisa agradecer por algo que não foi um favor.
A pessoa em pé no ambulatório tinha a voz melodiosa e um sorriso gentil, perceptível mesmo com a máscara hospitalar. Os olhos se curvaram um pouco para cima, por trás das lentes dos óculos, quase escondendo as íris cor de âmbar.
― E eu ainda sou estudante, não médico ― a pessoa continuou, terminando uma anotação no prontuário. Então completou, abaixando o tom de voz. ― E nem mulher.
― Oh… ― A paciente voltou a endireitar a cabeça, pega de surpresa. O tom de suas bochechas mimetizou as manchinhas vermelhas de sangue na gaze. ― Perdão, mocinho. Eu não quis soar transfóbica.
― Eu sou um homem cis ― ele se divertiu, mordendo o canto do lábio. ― Seu nariz… ― Apontou com o olhar, voltando a se aproximar. Tocou a mão da mulher, guiando a gaze com calma até a narina, de onde ainda escorria um rastro fino de sangue.
O cordão que pendia do pescoço tinha se embolado e virado o crachá ao contrário. Com a mão livre, ajeitou-o, esperando que a paciente tivesse tempo de ler seu nome abaixo da foto. Tomás Zhu, estagiário.
― Tomás é um nome bonito, mocinho. ― Ela continuou, sem graça, numa tentativa de melhorar a impressão que tinha causado. Tomás não ligava de verdade. Não seria a primeira vez, e nem a última, em que alguém o confundia assim. Poderia culpar a voz por isso, ou a estrutura óssea que o tinha presenteado com ombros tão delicados. ― Combina com você, assim como essa mecha estilosa.
O cabelo. Tomás mal conseguiu conter um riso breve desta vez. E optou por assentir em um agradecimento silencioso. Era melhor do que explicar que aquele estreito tufo de cabelo loiro tinha só decidido espontaneamente nascer assim. Se isso fizesse o sangramento voltar uma terceira vez, teria que abrir um novo pacotinho de gaze.
― O seu caso não foi nada preocupante. Se precisar de um atestado, posso chamar um dos plantonistas.
― Não precisa, querido. Eu agradeço. E desculpa, de novo, pela… Confusão. ― Ela se levantou. Podia ter apenas saído, mas a culpa pelo mal-entendido era subitamente mais relevante do que a ida ao ambulatório. ― É que você é muito bonitinho, sabe? É difícil encontrar homens bonitos assim.
― A senhora é lésbica? ― perguntou. O tom de voz baixo e o sorriso que alcançava os olhos faziam parecer uma brincadeira. Ao menos, o suficiente para que ela risse.
― Você é uma graça. Tenha uma boa semana, querido.
Esperou ela sumir na curva do balcão da recepção antes de deixar que o sorriso morresse. Aquele era seu último atendimento, e durou mais tempo do que deveria, portanto estava atrasado.
Acenou para o plantonista quando passou por ele a passos apressados rumo ao Conforto Médico. Tirou as roupas e se livrou da máscara descartável. Seus lábios grossos estavam secos. Ele buscou a manteiga de cacau na mochila antes mesmo de terminar de se vestir.
Seu celular estava junto, no mesmo bolso, junto com a latinha de balas de cereja que tinha ganhado de Lótus no último encontro. Abriu um sorrisinho mais animado e puxou o celular, digitando uma mensagem:
“A paciente disse que eu sou bonitinho demais pra ser homem 🌸”
A resposta chegou tão depressa que foi quase como se a pessoa do outro lado estivesse esperando.
“Bichinho, algumas pessoas diriam que foi um elogio!”, dizia a primeira mensagem e a segunda veio logo atrás: “(você é bonitinho demais pra existir, como é possível?)”.
Tomás mal tinha conseguido sair do hospital e já estava rindo. Sempre tinha a sensação de que Lótus esperava a hora exata do fim de seu expediente para responder sua primeira mensagem, ou então enviar ele mesmo a primeira, se Tomás demorasse.
“Você vai ter que falar isso pessoalmente pra eu acreditar 🥺”, enviou. E sorriu, balançando os cabelos e arrebitando o nariz. Os espelhos pelos quais passava ao longo do dia diziam o mesmo, mas ouvir da boca das pessoas era sempre uma sensação agradável.
Deu a sorte de ver seu ônibus assim que chegou no ponto. Estava a poucas quadras de casa, mas precisava cumprir aquela disciplina opcional carinhosamente encaixada no horário da sexta à noite. Tinha dito a si mesmo que daria conta quando se inscreveu no começo do semestre e nem podia mais largar, ou sua avó ganharia a aposta ― que fez consigo mesma ― de que ele não seria capaz de comprometer todas as suas noites de sexta com mais aulas.
Ela parecia acreditar que havia algum lugar onde o neto gostaria de estar mais do que na faculdade que exigiu anos de dedicação ― antes e depois de passar. Como se uma noite de sexta-feira perdida fosse ser mais importante do que o seu próprio futuro.
O celular ainda estava na mão quando recebeu a notificação no grupo da turma avisando que não haveria aula. O suspiro que deixou escapar foi muito mais aliviado do que gostaria de admitir ― e era uma sorte que sua avó não pudesse ouvi-lo de casa.
Ainda dava tempo de descer do ônibus. Não tinha passado mais do que dois pontos, uma mísera caminhadinha de uns oito minutos. Ou…
Podia continuar naquele ônibus e descer perto da Paulista. Era sexta à noite, afinal, e estava casualmente livre.
Havia mais uma mensagem perdida na pilha de notificações, cuja prévia já passava a ideia do conteúdo. “Se for o caso, eu posso…”
Pode ir vê-lo, claro. É o que Lótus diria, em resposta à sua provocação, e foi mesmo o que disse, acrescentando exclamações animadas no fim do texto.
Tomás abriu um sorriso afetuoso. Lótus era uma das suas companhias preferidas. Desde a primeira vez em que saíram, alguns meses atrás, tinha sido coberto de toda a atenção que precisasse, fosse por mensagem ou pessoalmente. Tinham um encontro marcado para dali a alguns dias e estava subitamente livre e desimpedido em uma noite em que ele claramente podia vê-lo.
Tocou o polegar na tela em um carinhozinho sobre o avatar que Lótus usava, uma selfie com um fundo cor de rosa afetado. E então digitou a resposta:
“Não posso hoje 😢. Vou ficar com a vovó”.
Mordeu o interior da boca, apoiando o celular no queixo. Fazia tempo que não tinha uma noite de sexta livre. E tinha um lugar onde gostaria de ir.
━ • ✿ • ━
A molecada reunida na escadaria da Cásper Líbero era uma imagem que sempre fazia Victor sorrir. Havia qualquer coisa de mágico naquela gente reunida sob o cheiro discreto de cigarro e maconha, falando alto debaixo da luz da avenida Paulista. Alguém assoviou no meio daquele círculo, chamando sua atenção: dois garotos com quem tinha trombado em algum bar, e que compraram um instrumento ou outro da sua loja. Era sempre assim, mal tinha conhecido uma pessoa nova e já aproveitava a chance para pontuar sobre os novos produtos da LoboMuamba e passar o link para o seu site. Tinha uma presença de liderança inibidora que sempre funcionava para angariar o que precisava, fosse um puxa-saco, um cliente ou um afeto temporário.
― Tá tudo bem? ― um dos garotos perguntou, apontando para algo em seu rosto que Victor demorou para entender.
Uma sombra de um púrpura violento descia do cantinho da sua boca até quase o queixo. Quase já nem se lembrava dela, por mais recente que fosse, de tão acostumado a arranjar coisas parecidas.
― De boaça, não esquenta.
― Cola aqui! ― o outro chamou por cima da animada cacofonia de sexta, fazendo um gesto para Victor se aproximar, que ele recusou com um aceno de mão.
― Eu preciso passar em casa, mano. ― Não lembrava o nome do garoto, Carlos ou Joaquim, alguma coisa com jeito de herdeiro. Também não se lembrava de qual das categorias ele fazia parte, então escolheu mentalmente categorizá-lo como puxa-saco. ― Mas cola na Roosevelt mais tarde que com sorte tu me tromba.
Seu supertrunfo era o sorriso. Nunca parecia um fora quando falava daquele jeito, com as covinhas pontuando um sorriso que se erguia de canto e então se espalhava. A mão ainda erguida foi para trás da nuca num gesto charmoso. Os garotos concordaram, o seguindo com o olhar como se Victor fosse algum tipo de celebridade local.
O prédio dele ficava praticamente ao lado da Cásper. Pulou os quatro degraus da entradinha, segurando o elevador às vésperas de a porta fechar.
― Ah, muito bom encontrar você por aqui, mocinho.
Sua mãe precisaria cumprimentá-lo pela força de vontade em não revirar os olhos até o branco aparecer. A vizinha. De novo. A lista de reclamações incluía, mas não se limitava a: 1. as pessoas pouco religiosas que frequentavam sua casa; 2. suas incursões com a guitarra, embora tentasse respeitar os horários de silêncio do prédio (quando estava sóbrio); 3. o cheiro do cigarro que fumava no janelão da sala.
― … E você ainda carrega isso como se fosse bonito! ― ela comentou, a voz ficando mais e mais aguda. Apontava para o brinco em forma de cigarro em sua orelha.
Daquela vez a reclamação era o cigarro, então.
― Dona Rita, já disseram o quanto a senhora ficou gata com esse cabelo? ― Victor deu uma giradinha, segurando a mão da mulher para beijá-la num exagero que, ainda bem, a emudeceu. ― Eu sei que a senhora só quer que eu seja um cavalheiro, certo? Se faz tanta questão, posso ser.
Ele saltou em seu andar antes que a mulher pudesse recuperar a cor e a compostura, dando um tchauzinho enquanto a porta voltava a fechar.
E por falar em portas…
― Veio assaltar a minha geladeira de novo, cuzão? ― gritou da entrada do apartamento.
A porta de casa estava entreaberta, vazando música para o corredor ― Tom DeLonge cantando Late night, come home. Work sucks, I know. She left me roses by the stairs. Surprises let me know she cares.
― Eu vou tirar teus privilégios de portador da chave se continuar deixando a porta aberta assim, caralho.
Estava tentando segurar o carão, mas quando Yue surgiu na porta da cozinha ― vestindo um chamativo macacão azul, com uma cabeça de Fofão numa mão e uma banana na outra, feito o membro perdido da Carreta Furacão ― tudo o que conseguiu fazer foi gargalhar.
— Que porra é essa agora? — Victor perguntou, fechando a porta atrás de si. Por instinto, sacou o maço de cigarros do bolso, pronto para dar mais motivos para reclamações dos vizinhos.
― Pagou bem pela hora.
No começo, quando era moleque e conheceu Yue, vivia reclamando da dor de cabeça que era entendê-lo, menos pelo sotaque, que nunca o abandonou, e mais porque ele insistia em falar tão baixo quanto um monge em prece. Com o tempo, Victor ficou inclinado a acreditar que era proposital: Yue falava aos sussurros para atrair a atenção do interlocutor. Já tinha visto o desgraçado berrar vezes o suficiente para entender que aquela garganta era potente.
― Vai ficar por aqui? Eu tô pensando em pingar na Roosevelt mais tarde, lá no Costela. ― Victor abriu o janelão da sala, de frente para a avenida, inclinando-se para espiar o movimento lá embaixo. ― Eu pago todas as tuas bebidas se cê colar desse jeitinho por lá.
― Bebida fácil ― Yue o respondeu, pousando a cabeça de Fofão sobre a mesinha de centro. Aquele troço feio parecia saído diretamente de um slasher de baixo orçamento. ― Mas vou trabalhar. Num bar da Augusta. O dos drinks milionários.
As frases de Yue sempre saíam curtinhas assim, como se ele quisesse economizar palavras ou fôlego. Victor deixou que ele tomasse o cigarro da sua boca e desse um trago. Em momentos assim, o mesmo pensamento bobo sempre o assaltava: o de que dividia coisas com ele há tanto tempo que estranharia se, de súbito, aquilo acabasse.
― Se pá eu colo lá pra cê me arranjar birita chique.
― Vai bem vestido.
― Que é isso, irmão! ― Victor ergueu as mãos e deu uma voltinha, exigindo a avaliação de Yue. ― Cê não acha que eu tô no estilo?
Yue devolveu o cigarro e não gastou palavra nenhuma com o assunto. Victor guardou uma risada, acompanhando com os olhos o amigo recuperar a cabeça decepada do Fofão e caminhar em direção ao banheiro. Nem precisaria perguntar para saber que a mochila de Yue estava jogada em algum lugar do quarto e que ele iria se arrumar por ali mesmo antes de sumir em mais algum bico aleatório.
Havia meia dúzia de contatinhos que poderia chamar para acompanhá-lo, gente bacana que seria boa companhia, mas… Ele riu com o cigarro no canto da boca antes de matá-lo contra o cinzeiro em formato de pulmão (aquele tinha sido presente de Yue em seu último aniversário?) e decidir que, naquela noite, ia dar um rolê sozinho.
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