Alma retornou da cozinha trazendo uma bandeja com um bule, um pequeno pote e algumas xícaras. Para além do fato de já ter bebido chá com Lilitu mais cedo, Diana não estava com humor nenhum para ingerir qualquer coisa naquele momento.
Não era o caso de Hadria, que se apressou em se servir quando o homem apoiou a bandeja em cima da mesa.
— Então, esse Abaddon — começou a feiticeira, enquanto virava o líquido escuro do bule em uma xícara, e o forte cheiro de café atingiu o olfato de Diana — por que acha que quer nos destruir? O que ele fez?
— O que fizemos com ele, você quer dizer — respondeu o homem, também se servindo. A bruxa observou enquanto Hadria virava delicadamente o açucareiro em sua bebida, gesto dispensado pelo outro conselheiro. — Como eu já disse, ele era membro da família Vocatio, que é muito tradicional e rigorosa. Sua linhagem sempre foi especializada em magia de invocação, mas...
— Mas...? — questionou Lilitu, se ajeitando ao lado da bruxa. Nem mesmo ela conhecia aquela história?
— O menino nunca conseguiu fazer um feitiço desse tipo. Ele tinha um bom domínio geral dos fundamentos, mas quando tentava invocar algo, não dava em nada. Depois da morte da mãe, o pai o tolerou por alguns anos, até que se cansou e o exilou do país.
— “Tolerou”, é? — indagou Diana, mais para si mesma do que para alguém da sala. Não esperava algo diferente dos feiticeiros, mas a crueldade da alta hierarquia aparentemente se estendia mesmo aos seus familiares se estes não atendessem às suas expectativas. Para sua surpresa, até Hadria parecia congelada no lugar depois do relato, encarando fixamente a própria xícara.
— E ninguém foi atrás dele depois disso. Ou fez qualquer coisa. — Não era uma pergunta. A voz de Lilitu ainda era firme, mas o tom que usava estava diferente. Diana olhou para ela e viu que a feiticeira encarava Alma, os olhos estreitos.
Ela estava com raiva.
Sem encará-la de volta, o homem apenas assentiu, bebendo um pouco de seu café puro.
Depois, abriu e fechou a boca várias vezes, como se pensasse no que dizer, mas não encontrasse as palavras.
Não que ela precisasse ouvi-las.
— Vocês acham que ele está vindo até a capital para se vingar? — questionou, e o homem subiu o olhar até ela.
— É a teoria mais forte. No mínimo, está tramando algo.
— Muito bem, então — respondeu, se levantando. Não se sentia em suas plenas capacidades, mas já tinha se recuperado o suficiente para sair dali. — Estou indo.
— Espera, indo? — indagou Alma, a testa franzida em confusão. — Ainda tenho coisas a dizer. E precisamos de um plano. E você também precisa aprender feitiçaria!
— Eu me viro. Ainda mais agora que sei que é possível. — Diana caminhou até a prateleira onde Hadria havia apoiado o livro dos Vitalis e o pegou. — Vou encontrar Abaddon, assim não precisamos trazer o conflito pra cá. Também vou ficar com isso.
A bruxa se dirigiu até a porta, ciente do olhar do homem sobre si. Porém, alguém se pôs em seu caminho.
— Não escutou uma maldita palavra? — Algo no semblante da feiticeira ainda parecia abalado. Ainda assim, Hadria fazia o melhor para retomar sua postura habitual. — Precisamos nos ajudar.
Talvez a risada de Diana tenha saído um pouco alto demais, considerando o espanto no rosto da conselheira, porém não pôde se conter. E nem quis.
— Acho que prefiro que a magia acabe — respondeu, se recompondo. Talvez estivesse exagerando, mas a ideia de colaborar com Hadria e outro conselheiro para resolver um problema que eles mesmos tinham causado soava absurda.
Claro, também era perigoso ignorar a situação, por isso lidaria com ela.
Em seus próprios termos.
Hadria estava prestes a dizer alguma coisa, então Lilitu se aproximou, se interpondo entre elas pela segunda vez naquela manhã.
— Vou acompanhá-la.
— Mas...
— Sei o suficiente de feitiçaria para ensinar e lutar. O plano da Diana faz sentido. Vocês são conselheiros, então precisam ficar aqui. Nos deem cobertura.
E, dizendo isso, Lilitu pegou Diana pelo braço e a puxou para fora.
— Sabe que nunca concordei com isso.
— Provavelmente não aceitariam seu plano se fosse sozinha. E você ainda não é páreo para dois conselheiros.
— E você tem tanta credibilidade assim?
— Na verdade, não — respondeu Lilitu, com um sorriso para a bruxa. — Mas meu avô tá se sentindo culpado, então vai ceder por agora. Quando perceber que a ideia é ruim, já vamos ter saído da capital.
As duas já caminhavam pelas ruas de Pendragon, que agora estavam cheias de comerciantes e pessoas se adiantando para iniciar suas rotinas. Ver tantos adeptos da magia andando pelas ruas de uma cidade cujo nome homenageava o falecido rei Arthur sempre deixava um gosto amargo na boca de Lilitu. Mesmo que fosse uma forma de Merlin reforçar a paz com o reino de Camelot, as Terras Mágicas só existiam em primeiro lugar porque esse mesmo reino falhara em acolher e proteger os semelhantes do antigo feiticeiro. Estampar o título Pendragon na capital da nova morada desse povo sempre parecera uma decisão estúpida para ela.
Ainda pior quando se considerava que Camelot ruíra alguns séculos depois.
— Então minha ideia é ruim? — questionou Diana, séria, tirando a feiticeira de seus devaneios, e ela não pôde deixar de rir. A bruxa não estava insegura, estava ofendida.
— Eles devem achar que sim, mas tenho confiança no seu plano. Além disso, não pretende só tentar enfrentar Abaddon, não é? Quer conversar com ele.
A expressão da bruxa revelou surpresa, mas para Lilitu era bem óbvio. A maior inimiga do Conselho tinha descoberto que havia mais uma pessoa tentando destruí-lo. Para completar, ele ainda tinha um passado triste.
— Está indo para me impedir se eu tentar uma aliança?
— Estou indo mais pela curiosidade, eu diria — respondeu, enquanto se divertia com as mudanças de expressão de Diana. — Mas também me parece uma ideia ruim só confrontá-lo sem mais nem menos. O que fizeram com ele foi injusto.
— Não conhecia essa história?
A pergunta provavelmente era por desconfiança, mas Lilitu só conseguia se sentir frustrada.
— Eu conhecia Abaddon. Não conversávamos nem nada, a diferença de idade era muito grande, mas costumava vê-lo quando eu ainda frequentava os eventos da alta hierarquia. Ele sempre parecia triste. — Haviam parado para aguardar uma carroça passar, mas os olhos descombinados de Diana permaneciam fixos nela. — Quando ele sumiu de repente, cheguei a perguntar ao meu avô o que tinha acontecido. Ele pareceu assombrado pela pergunta, mas tudo que disse foi que provavelmente não o veríamos mais. Eu era muito nova pra insistir na questão.
A bruxa encarou a rua, parecendo refletir sobre o relato.
— Mas se ele parecia tão abalado desde o início, por que não fez nada?
— A pergunta de um milhão de moedas — respondeu Lilitu, sorrindo pesadamente. — Nunca achei meu avô perfeito, mas sei que tem alguma coisa por trás disso tudo. Também é parte do motivo pelo qual estou indo.
Não tinha certeza do que Diana estava pensando, mas em um instante a bruxa pareceu se resignar com a situação toda, e se virou para ela mais uma vez, decidida.
— Me encontra na saída Leste da cidade em duas horas.
— Duas horas? O que você vai fazer?
— Preciso passar em um lugar. — E, sem mais nem menos, ativou um encantamento e sumiu, deixando Lilitu sozinha em meio à multidão.
Diana ficou feliz por ter energia para realizar a magia de auto invocação, já que não queria mostrar a Lilitu para onde iria. Ainda assim, logo que chegou, sentiu um tremor nas pernas, e soube que deveria evitar mais encantamentos pelo resto do dia.
Não seria uma preocupação pelas duas horas seguintes, pelo menos. Estava em casa, afinal.
Mais precisamente, dentro do próprio armário, de onde saiu para vislumbrar seu quarto. Não que normalmente o deixasse bagunçado, mas era impressionante o trabalho que faziam para mantê-lo arrumado enquanto estava fora.
Nas paredes, prateleiras e mais prateleiras de livros. Além das despesas da casa, a maior parte do dinheiro que conseguia com seus “serviços de bruxaria” era investido neles. A grande maioria sobre magia e história, mas um ou outro de ficção que havia comprado para agradar sua mãe, que reclamava que ela não relaxava nunca.
“Você morar com a família era a última coisa que eu esperava.”
“Eu passo a maior parte do tempo fora, mas tudo que eu faço é por eles.”
“Quase tudo, você quer dizer.”
Diana se sentiu confusa com a resposta do conglomerado, mas não insistiu. Quanto menos conversasse com alguém dentro da própria cabeça, melhor.
Olhou para a cama com lençóis recém-trocados e para a escrivaninha, que tinha mais alguns livros empilhados de maneira simétrica. Apoiou o livro dos Vitalis na pilha, tentando manter o padrão.
É verdade que quisera ficar com o livro, mas já o tinha lido mais de uma vez. Não precisava levá-lo para a viagem.
Ouviu a porta se mover, e um menino de cabelos escuros a encarou. Seus olhos verde-água se arregalaram, e ele correu em sua direção, sorrindo.
— Diana! — disse com um abraço, e ela se abaixou para retribuir o gesto. Antes que dissesse qualquer coisa, porém, ele se afastou assustado, mas ainda segurando seus braços. — Que que aconteceu? Por que você tá assim? Ainda me enxerga?
— Ainda te enxergo, sim, Lucas — A bruxa sorriu, achando graça. Mesmo que perdesse a visão dos dois olhos, jamais deixaria de ver o próprio irmão. — Mamãe e papai tão aí? Preciso falar com eles.
— Você sempre precisa falar com eles — respondeu o menino ao soltá-la, fazendo uma cara emburrada.
Era verdade que a bruxa não era uma irmã tão presente quanto deveria. Voltava para casa quando precisava, e raramente ficava muito tempo, mesmo em datas comemorativas. Mas tudo que fazia era para tentar construir uma sociedade mais justa para Lucas e o resto da família, e esperava que um dia ele compreendesse isso.
E que não tivesse os mesmos problemas que ela tivera.
— Eu vou fazer uma viagem longa, por isso preciso falar com eles. Vou sair da capital por um tempo.
— Vai sair da capital?! — A atenção do menino logo foi retomada. — Aonde vai? O que vai fazer?
— Isso é segredo, mas, quando eu voltar, passo um final de semana inteiro com você. Eu prometo.
— Não sei, não...
— E trago presentes.
O rosto do garoto se iluminou e ele saiu correndo do quarto, gritando pela mãe deles. Diana não pôde deixar de sorrir mais uma vez. Em alguns momentos com a família, até conseguia esquecer o mundo de desigualdades e injustiças que o sistema vigente construíra ao longo das eras, o que havia tornado os poderosos mais poderosos às custas dos menos favorecidos.
Mas claro, só em alguns momentos mesmo.
Com o dinheiro que conseguia, ficava feliz de fornecer uma situação mais confortável a eles, e para Lucas uma infância mais tranquila do que a que tivera. Mas ainda passavam apertos vez ou outra.
E continuariam a passar, a menos que alguém mudasse as coisas.
A bruxa decidiu ir até a cozinha, onde encontrou a mãe remexendo uma panela cujo cheiro Diana conhecia bem. Ao lado dela, Lucas se desbocava a falar, vez ou outra tropeçando em algumas palavras.
— E o cabelo dela tá branco! Não branco tipo velha, branco tipo algodão mesmo.
Diana achou que talvez a mãe não estivesse dando muita credibilidade para o que ele dizia, porque a mulher se assustou ao se virar, e os olhos dela correram pelas mudanças em seu rosto. Rapidamente largou a panela e foi até Diana, segurando seu rosto com as duas mãos, de um lado para o outro, enquanto tentava olhar melhor.
— O que aconteceu, filha?
— Longa história. Preciso viajar e vou ficar um tempo fora.
— Mais tempo?
— Ela vai pra fora da capital! — gritou Lucas, pulando. Diana não sabia se ainda era ânimo pelas promessas feitas ou se estava feliz por a mãe ver que falava a verdade sobre a irmã.
— Isso é verdade? — indagou Maya, sem tirar os olhos da bruxa.
— Sim. Vou deixar no quarto de vocês uma quantia que tinha reservado. Não sei quando volto, então desculpa por isso, mas se vocês puderem ter cuidado com os gastos...
— A gente se vira, boba. — Sua mãe cortou, a abraçando. — Sei que já tá decidida, mas toma cuidado. A gente sente saudade, sabia?
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