Capítulo 2 — Eu sempre chego na hora certa
Farkas, Pré-Hecatombe
― Vocês viram o Oz?
Foi a primeira coisa que Yan perguntou quando chegou ao Hall da Conflagração. A luz da manhã iluminava com o mesmo carinho os telhados azuis de quatro águas e aquela mecha loira exibindo-se entre os cabelos do rapaz, cujas ondas calmas e castanhas desciam até o meio das costas; a bolsa vinha cheia de pequenos embrulhinhos arrumados pelo irmão, um presente que trazia da visita à família.
Não tinha ficado fora por mais de dois dias. Nunca ficava. Um terceiro dia longe dali seria uma desculpa mais do que perfeita para atrair lobos até a porta de sua mãe. Não iria jogar sua sorte aos Imortais sem saber qual lobo o escoltaria de volta. Um passo em falso, sua mãe dizia ― e pelo menos nisso estava certa ―, e vão culpar o maldito sangue nivariano com que seu pai o presenteou.
― Na Casa de Repouso! ― entoaram em uníssono as três unidades de pássaros-engrenagem que vigiavam os portões centrais. Eram pequenos, do tamanho de mãos fechadas ou de exemplares recém-desabrochados de rosas-de-terra. Também tinham a mesma coloração marrom-chocolate daquelas plantas, mas sem os pontos brilhantes de orvalho.
― Eu não sei por que ainda pergunto ― Yan comentou, cobrindo a boca carnuda com as costas da mão. Seus olhos âmbar, na luz de começo de dia, eram como duas bolas grandes e douradas.
― Vocês estão esperando o quê para abrir a porta, bando de chaleiras voadoras? ― A voz vinha do cabelo de Yan, de onde a cabeça de um lagartinho branco tinha acabado de surgir. Ele mostrou a linguinha, afobando os bichos mecânicos, que voaram apressados para liberar a entrada. O bater de suas asas se misturava ao girar da engrenagem. Soavam da mesma forma artificial que o caminhar de lobos-híbridos.
Voltando no tempo, não tantos anos atrás para que a memória de Yan pudesse começar a poupá-lo das lembranças, Farkas já era o maior polo comercial entre as cinco Cidades Flutuantes. Estava a uma altura boa o suficiente para que o vórtex vermelho-azulado que se espiralava abaixo deles não provocasse tantos transtornos climáticos ou desmoronamentos quanto nas Cidades vizinhas. Mas a tecnologia, isso havia sido um avanço de Nivaria. Os autômatos que vagavam por Farkas na atualidade jamais se igualariam aos que tinha nas memórias de infância. E se já não bastasse, ainda eram espólios de guerra.
Levou a mão às costas da cabeça, apoiando o pulso sobre uma das orelhinhas para alcançar o lagarto com os dedos num afago gentil. Sua pele reptiliana rugosa era uma sensação gostosa.
— O que acha que ele fez desta vez? — perguntou em um sussurro, torcendo a boca em um sorriso tortinho, tomando o caminho até o pavilhão que recebia o nome de Casa de Repouso.
Era uma construção modesta, se comparada às outras da família Farkas, ainda que ostentasse as mesmas telhas azuis como lagos em tardes de verão. Também tinha paredes brancas limpíssimas e pomposas colunas que se apoiavam na soleira de entrada. Mas assim como eram imponentes, também exalavam um ar de silêncio e solidão — por isso o nome. E por isso, também, faziam Yan pensar que se diferia muito das casas dos Farkas. Lobos nunca eram tão silenciosos.
— Coisa boa é que não foi, vindo daquele cachorro afetado — o lagarto respondeu, se remexendo no cabelo de Yan até voltar a se esconder.
— Shu Lan… — Yan o repreendeu, afetuoso. Sentiu a linguinha do lagarto esbarrar em seu dedo e o cutucou na cabeça, bem entre as pintinhas marrons que se espalhavam dela pro dorso do corpo.
Shu tinha pouco mais de um palmo de comprimento, se ignorasse o rabo. Um palmo de mão de Yan, o que devia ser bem menor se comparado à de Oz — e os Imortais sabiam que tudo em Oz era grande.
A Casa de Repouso parecia tão pacífica que Yan duvidou da informação dada pelos pássaros-engrenagem, o que pareceu estranho. Aquelas criaturinhas podiam não ter muita autonomia, mas eram insuperáveis em pequenas tarefas.
Seu cabelo deu uma puxadinha quando Shu voltou a se ajeitar nele, enrolado perto da fita que prendia as pontas, como se ali fosse sua rede de dormir particular.
Tirou as botas de viagem perto da soleira antes de entrar, abrindo a porta que dava acesso ao cômodo principal. Encontrou uma sala vazia, exceto pelos discretos vestígios deixados por alguém: uma garrafa tombada, com algumas gotas de bebida pingando do gargalo, e um prato de migalhas. Recente, Yan pensou. E suspeito.
Ergueu o nariz, farejando o ar, mas seu olfato não era nem perto de satisfatório, assim como sua visão — por isso os óculos de bambu presos ao redor da cabeça pela fita elástica. As orelhas arredondadas se mexeram em busca de vestígios de som. Eram pequenas, cobertas de pêlos cor de creme. De seus sentidos, a audição era a mais confiável, ainda que em Nivaria e Farkas nunca tivesse sido qualquer coisa além da média.
Girou no eixo, pendendo a cabeça para o lado. A sala tinha duas portas: uma grande de madeira com abertura dupla que levava a outro cômodo vazio e a segunda, bem em frente a ela, miudinha e que dava para um armário.
Fez a escolha óbvia de abrir a porta grande.
E então franziu a testa ao não encontrar nada além de… Outra garrafa, ou os vestígios dela. O gargalo quebrado no chão formando um tapete abstrato de cacos, além de uma belíssima mancha alaranjada tomando parte da parede.
Shu se revirou enervado em seu cabelo. Yan mal teve tempo de dizer qualquer coisa e então soltou um gritinho quando um par de mãos grandes o girou pela cintura, erguendo-o no ar.
— Você achou o caminho de volta! — Oz mostrou os dentes. As covinhas surgidas com o sorriso evidenciavam a pele marrom-clara descascada pelo sol. — Eu pensei que ia ter que sair daqui e ir eu mesmo te buscar!
— Oz… — Yan bufou, então concedeu um sorriso gentil, mesmo suspenso no ar. — Foram só dois dias.
— Você sabe o que é ficar sozinho por dois dias? Eu fiquei entediado — reclamou. O sorriso se contorceu em uma careta irritada quando as mãos se apertaram um pouco na cintura de Yan. Com as costas apoiadas na parede e os pés descalços, pensos no ar, o maior movimento de Yan vinha de seu cabelo, que Shu escalava com as patinhas miúdas.
— Coloca a gente no chão, seu ogro! — Shu sibilou ao alcançar o ombro de Yan, mostrando a língua, irritado, para Oz.
— Ah. — Oz intensificou a careta. — Você voltou também, é claro. Quer ir pro chão, lagartixa? — Então o sorriso voltou, mais torto, com uma única covinha no meio da bochecha esquerda. Não demorou para que ele chacoalhasse Yan no ar como um boneco de pano. — Mas quem é que tá te segurando? Cuidado quando cair pra não ser pisado.
— Oz! — Yan voltou a chamar, apoiando as mãos por cima das dele na própria cintura. — Eu vou ficar enjoado.
O sacolejo parou no mesmo instante. Shu abriu a boquinha, irritado, agarrado com as quatro patas nas vestes de Yan, com tanta força que suas unhas fininhas se cravaram no tecido.
— Você também quer que eu te ponha no chão? — Ele rebateu, desviando o rosto, encarando a mancha cor de laranja na parede do cômodo ao lado. Tinha feito aquilo por pura irritação explosiva, embora não se lembrasse exatamente qual tinha sido o gatilho para desperdiçar uma garrafa inteira de vinho de cevada.
Yan sorriu, afagando uma das mãos dele suavemente, então estendendo um pé até poder contornar seu corpo todo com uma das pernas. A outra repetiu o movimento logo depois, enlaçando o corpo dele, atraindo-o mais para perto em um aperto selado pela forma como sua cauda cor de creme também se enroscou em Oz, a pontinha felpuda de um marrom profundo balançando devagar.
— Não precisa — sussurrou, pousando um beijinho na maçã de seu rosto, com cuidado para não espetar o rosto no imponente crânio de lobo que ele vestia preso à cabeça, como um adorno. — Você ficou sozinho aqui esse tempo todo? Por isso ficou tão nervoso?
Yan sentiu quando a atenção de Oz desviou o suficiente de Shu para que ele voltasse a se esconder em seu cabelo, resmungando. Aconteceu um mísero instante antes de os braços de Oz se ajeitarem ao seu redor, segurando-o no colo em um abraço possessivo.
— É, foi logo que você saiu. — Ele bufou. Foram as primeiras palavras a saírem de sua boca num volume mais baixo. Yan tinha anos de experiência em amaciar aquele lobo especificamente. — Eu odeio a desgraça da magia daqui. Não tem nada pra fazer além de mofar até liberarem a porta. Quando eu for líder, vou mandar demolir essa droga de prédio! Se alguém precisar aprender uma lição por qualquer porcaria, eu posso muito bem ensinar com meus próprios punhos. Não preciso de uma prisão mágica estúpida.
— Eu fico feliz que ela exista, sabia? — Yan comentou, deitando o rosto de lado em seu ombro enquanto Oz reclamava. — Porque você é o morador principal daqui, o que quer dizer que se a punição fossem socos, eu teria muito mais trabalho. — Segurou um sorriso, erguendo o olhar de lado. Daquele ângulo, tinha a visão limitada ao maxilar largo dele e ao brinco espiralado feito de cristal verde-água, dentro do qual parecia haver uma eterna tempestade de neve. — E você ainda conseguiu que os lobos contrabandeassem duas garrafas.
— O plano original eram cinco — ele resmungou. Yan o distraiu com uma mordidinha leve no pescoço, que o fez rosnar.
Desde a adolescência, a Casa de Repouso era como um segundo quarto para Oz, de tal maneira que já havia sido levantada a discussão de mudar sua moradia permanentemente para lá em, pelo menos, duas ocasiões. Para Ravi, contudo, não havia sentido para que aquele pavilhão fosse qualquer coisa além de tedioso e enfadonho. Aquilo, mais do que qualquer outra coisa, era uma punição correta para seu filho.
— Você lembra… — começou, a voz baixa e suave de quem sabia que entraria em terreno perigoso. — Que quando a gente era mais novo, você não costumava ficar tão sozinho aqui. Era sempre você e…
— Não ouse — Oz levantou a voz novamente. Tinha um rosnado preso no fundo das palavras como um eco ameaçador. Ele enroscou os dedos no cabelo de Yan e o puxou, sem violência, afastando-o até que pudesse olhá-lo nos olhos de novo. — Eu já te disse mil vezes pra não falar sobre ele. Eu não quero ouvir sobre memória alguma. Ele é um traidor. Um traidor morto. Pertence ao passado.
— Ainda assim… — Yan arriscou, traçando um caminho sutil com os dedos pelo cabelo de Oz até sua orelha, tocando o cristal que pendia dali. — Você usa um presente dele até hoje.
— Eu nunca nem lembro que foi dele. — Oz bufou, irritado, soltando Yan no chão. — Obrigado por me lembrar. Agora eu vou ter que queimar essa coisa. E vou fazer isso melhor do que ele! — Apontou para o pulso de Yan, perto da abertura da manga, para a extensa cicatriz de queimadura que tomava parte de seu antebraço.
— Você sabe que não foi ele quem fez isso. Não teria qualquer sentido.
— Ainda assim, é culpa dele. Você não teria algo assim se ele fosse mais rápido!
— Desculpa — Yan pediu, sem muita emoção. Não era a primeira vez que Oz se irritava ao falar sobre o ornamento. Porém, nunca o tirava. Com frequência, fazia ameaças mais vazias do que os cômodos daquele pavilhão.
Tinha visto, no caminho até ali, os sinais de mais um Festival da Vitória: tendas que logo seriam finalizadas, o cheiro de comida apimentada, as bandeirinhas laranjadas — a cor de Farkas ― e o brasão estampado com o rosto de Ravi ao centro, lembrando a todos quem dera nome e poder à cidade; quem a protegera do inimigo. Já se haviam passado dez anos desde o cerco à Nivaria, mas o ódio das pessoas continuava igual.
— Você não me disse o que fez pra vir parar aqui desta vez — Yan retomou o assunto. Tinha caminhado os poucos passos até o cômodo adjacente e se abaixado, recolhendo os cacos de vidro, tomando cuidado para não pisar em nenhum.
— Nada que justificasse dois dias de punição, como sempre. — Oz tinha se afastado, os braços cruzados contra o peito e um olhar firme na direção da porta do pavilhão. Uma névoa translúcida transformava a paisagem lá fora em um borrão de cores. Era como sabia que a magia ainda estava ativa e não o deixaria sair. Quando os olhos rodaram pelo aposento de volta até Yan, ele grunhiu, avançando a passos largos. — Sai daí! — falou alto.
A forma como ele voltou a erguer Yan do chão como se ele não pesasse mais do que uma pluma era desconcertante.
— Você pode pisar em um caco assim. Além disso, limpar a minha zona não é o seu trabalho. — Encarando os olhos de Yan com firmeza, continuou: — Eu tenho certeza que existem outras pessoas para fazerem algo assim.
— Você podia experimentar limpar a própria bagunça um dia desses. — Yan sorriu, não resistindo quando Oz tomou os cacos de sua mão, voltando a jogá-los no chão úmido.
— Eu até consideraria, mas não tem uma lixeira por aqui, certo?
— E também não era para ter uma garrafa. Aposto que os lobos trariam isso também se você pedisse. — Beijou-o no rosto, considerando o assunto como encerrado.
— Você não voltou pra me dar sermão sobre assuntos domésticos… — Oz resmungou. Yan pensou em responder, mas só até vê-la no meio de sua bochecha: a covinha tinha voltado. — Ficou com saudade?
Yan riu, deixando que Oz voltasse a ajeitá-lo no colo, uma mão mais ousada descendo até a base de suas costas.
— Quem estava com saudade? Eu… — Aproximou o rosto até que o nariz tocasse a lateral do dele antes de sussurrar: — Ou você?
Oz mostrou os dentes. Tinha a mão perigosamente perto do laço que prendia as vestes trespassadas de Yan no meio das costas. Sorriu, aproximando a boca da dele, deixando-a percorrer a linha do seu maxilar até o pescoço. Prendeu entre o indicador e o polegar a ponta do laço que sustentava a longa túnica de Yan, com a intenção de puxá-lo. E então foi mordido.
— Tá com pressa, ogro? — Shu Lan provocou, rindo quando Oz rosnou irritado, erguendo a mão e vendo as marquinhas da boca do lagarto bem na curva entre os dois dedos.
— Eu vou matar essa lagartixa! — gritou, ignorando o riso de Yan enquanto tentava alcançar o animalzinho que guinchava entre os cabelos dele.
A súbita presença de um pássaro-engrenagem foi uma interrupção precisa.
— Ravi procura Yan! — ele alertou, se repetindo com a frequência de uma sirene enquanto planava ao lado do grupo.
— Oz, eu preciso ir — Yan pediu sério, se segurando em seu pescoço para descer de seu colo, um pé depois do outro, ajeitando as vestes logo depois.
Tinha acabado de voltar, mas se Ravi o procurava em pleno dia de festa, sabia que deixá-lo esperando não seria uma escolha interessante. Recuperou a bolsa deixada perto da entrada e saiu para recolocar as botas. O pássaro o esperava na soleira, como se Yan ainda precisasse de um guia
Havia algumas décadas que não era um visitante.
Oz o seguiu, primeiro com o olhar e então com os passos emburrados. Quando Yan saiu até a soleira, sorriu de canto ao observar sua silhueta pequena calçando os sapatos. A névoa que protegia a porta havia se dissipado. Estava livre para sair daquela prisão entediante. E assim o fez, se esticando em um alongamento exagerado assim que pôs os pés para fora.
— Então quer dizer que meu pai quer nossa presença? Não vamos deixar ele esperando.
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