Victor acelerou a Harley pela rua da Consolação. Tomás tinha as mãos apoiadas em sua cintura, suavemente apertadas na frente de sua regata, por baixo da jaqueta, como ele disse que podia.
Quando respondeu a pergunta dele dizendo que tinha mesmo que ir para casa daquela vez, havia toda uma lista de pequenas coisas que não imaginava sobre ele. A primeira, que se ofereceria para levá-lo.
Estava tarde, ele tinha dito. E era verdade. Tarde demais para deixar que Tomás voltasse sozinho para a Liberdade quando tinha a possibilidade de levá-lo até em casa. Não ia recusar. Ainda que fosse a carona de um estranho, era uma carona. E Victor podia ser grande, mas não era nem de longe tão intimidador quanto o centro de São Paulo depois do pôr do sol.
A segunda coisa que pegou Tomás de surpresa foi o endereço de Vi. Quando ele lhe ofereceu a carona, sua primeira reação foi perguntar se a moto tinha ficado na Roosevelt. Não, Vi tinha dito, com um sorriso charmoso. Estava na garagem. O prédio era grande e bonito, com uma janela ampla que dava vista para a avenida. Resistiu ao impulso de vê-la por dentro quando disse que esperaria no hall de entrada. Não confiava em sua própria força de vontade para voltar para casa se aceitasse subir mesmo que por alguns minutos, não com ele o olhando com aquele sorriso miserável.
A terceira e última coisa da lista tinha sido aquela moto, uma surpresa só um pouco menor por já ter visto o apartamento. Nunca tinha andado em uma moto tão grande. Combinava com ele. Tinha a mesma pompa irritante e atraente daquele cara grandão e barulhento.
Quando a moto acelerou na entrada do viaduto, o ronco reverberou pelo corpo de Victor até suas mãos. Tomás sentiu um suspiro preso na boca, um que teria que esperar até a próxima chance de vê-lo, se ela fosse mesmo acontecer.
— É aqui? — Vi perguntou quando parou a moto na ruazinha estreita, em frente a um restaurante de lámen de aparência antiga.
— Ali — Tomás corrigiu, apoiando a mão sobre o ombro dele e apontando um comércio fechado. Sobre a porta de metal, o nome Pedacinho de Céu estampava uma placa coloridinha, adornada com pequenas nuvens brancas.
Vi deixou a moto descer um pouco mais na rua, devagar, até estar de frente para a porta certa. Tinha o farol alto iluminando a rua vazia quando tirou o capacete brevemente, esfregando a mão pelos cabelos. E segurou a moto para que Tomás pudesse descer e se livrar do capacete reserva.
— Tá entregue — anunciou, abrindo o sorriso mais de lado quando Tomás se aproximou para beijá-lo em agradecimento. — Sabe onde me achar se precisar de companhia. Vou tentar incluir essa atividade no CNPJ da loja.
Tomás riu, balançando a cabeça lateralmente.
— A gente marca um dia melhor na próxima — sugeriu, a boca perto da orelha de Vi permitia um quase sussurro. — Um dia em que eu possa subir, se você me chamar de novo.
— Combinado, então. Me diz um dia bom na rotina de médico — brincou, virando o rosto para mordê-lo de leve no queixo. — Vai lá, antes que a sua vó escute e venha me dar um couro.
— Não sabia que você já conhecia a vovó. Isso foi bem preciso — Tomás respondeu no mesmo tom, dando um último beijinho suave em Vi antes de sacar as chaves do bolso lateral da mochila e se afastar até a porta.
Ouviu o ronco da moto acelerando assim que fechou a porta por dentro, tão alto que poderia acordar algum vizinho. Aquilo quase o fez rir.
Procurou pelo celular no outro bolso enquanto subia as escadinhas estreitas que levavam à sobreloja onde morava com a avó. Uma notificação acima das demais atraiu sua atenção. Uma mensagem de Lótus, de alguns minutos antes.
“Oi, bichinho <3 como foi a noite com sua avó? tô com saudades, dorme bem!”
Tomás mordeu o canto do lábio, ajeitando os óculos. Ele não o tinha visto, tinha? A hora da mensagem era perfeita, mas Lótus sempre mandava alguma por aquele horário, ou um pouco mais cedo.
“Foi tranquila! E já to deitadinho mesmo. Boa noite. 😴”
Teria a chance de compensá-lo pela mentirinha inofensiva quando o visse no começo da semana seguinte.
━ • ✿ • ━
― Eu posso encostar nela?
Lótus ergueu os olhos para a mocinha de moicano que havia parado diante dele. Sentado na calçada do shopping com um frappuccino de morango em mãos, suado após quase quarenta minutos de performance, ele ainda conseguia ter a aura animada de um diabrete.
― Na Cremilda? ― questionou, tocando a cobra que descansava ao redor de seus ombros. Não era um animal grande, mas o corpo vermelho com manchas alaranjadas servia para chamar atenção.
Antes que pudesse falar que sim ou não, a garota já avançava sobre o bicho.
― As dessa espécie têm um veneno que te faz bater a caçuleta em três minutos, doçura.
A mão da garota ficou suspensa no ar, com uma expressão incrédula que poderia ser culpa do sorriso largo de Lótus ao falar tão calmamente sobre a peçonha do bichinho que carregava nos ombro, ou ― e ele apostaria nessa hipótese ―, simplesmente por não ter entendido o que quis falar.
― Não mexe, não ― completou, o corpo se inclinando para frente de um jeito íntimo que não era acolhedor.
Acompanhou os passos da moça até ela sumir de vista, rindo então, os dedos finos, de unhas bem esmaltadas, fazendo carinho em Cremilda.
Cobras-de-milho não eram peçonhentas. Na realidade, eram tão dóceis que, às vezes, Lótus pensava que se havia um deus, ele ao menos deveria tê-las dotado com um pouco mais de ânimo para morder.
Cremilda, ainda por cima, era social demais.
No geral, Lótus gostava bastante da atenção que ele e suas cobras recebiam em performances, mas estava se sentindo amargo de um jeito que nem o frappuccino de morango já pela metade conseguiu aliviar. Puxou o celular do bolso pelo que deveria ser a décima vez em menos de dois minutos. Nada.
Tinha a esperança de que a conversa com Tomás não morresse ali, naquele boa-noite. Que ele enviasse mais uma mensagem com um “viu, eu sei que acabei de falar que tava com a minha avó, mas na verdade tava me agarrando com um galalau saído diretamente de uma webcomic de omegaverso, acho que você merecia saber”.
Não o incomodava o fato de ele ficar com outras pessoas, mas a mentira. Lótus era um metidinho: o suficiente para fazer questão de ser sempre mimado por todos, mas gastar suas energias apenas com um grupinho bastante exclusivo. Não se esforçava tanto para não ser retribuído, muito menos para ser retribuído daquela forma.
Viu os dois antes de começar a performance. A noite tinha aquela promessa gostosa de liberdade que havia aprendido a curtir em São Paulo, do tipo que pode te cobrir com uma capa de invisibilidade ou te colocar nos holofotes, uma promessa que derreteu feito sorvete no sol quente quando pousou os olhos em Tomás e seu acompanhante. Perder a compostura, no entanto, sequer fazia parte da natureza de Lótus. Ao seu redor, uma multidão meio aparvalhada parecia pronta para lhe oferecer atenção, e ele tinha sua música preferida engatilhada no celular.
Deu a Tomás mais vinte minutos de oportunidade, enquanto terminava de beber o frappuccino em golinhos modestos. Nada.
Depois de uma rápida pesquisa no Google, abriu uma segunda aba e buscou o site de uma floricultura badaladinha, escolhendo um belo arranjo de gerânios vermelhos. Escolheu a data de envio para dali alguns dias, quando encontraria Tomás, e no espaço para o recado que seguiria com as flores, digitou “um presentinho para te deixar pensando em mim”.
Gerânios, sua pesquisa garantiu, eram repletos de pólen.
Continua…
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