— Deixe-as ir. — As palavras de Alma não eram um pedido, e Hadria hesitou. A manhã parecia muito curta para processar todos aqueles acontecimentos e novas informações e, mesmo assim, ali estava, deixando que a bruxa de sua visão escapasse uma segunda vez.
Havia se acostumado a sempre seguir a orientação do velho homem. Alma fora um dos poucos a realmente acolhê-la e respeitá-la quando entrou para o Conselho Mágico, e era a quem sempre recorria quando precisava de ajuda.
Mas agora sabia que aquele mesmo homem, seguindo ordens ou não, era responsável pela morte de Merlin, além de ser conivente com o exílio de Abaddon e ocultar segredos demais do Conselho Mágico.
A confiança que a feiticeira tinha nele estava fragilizada.
— Então é isso? Você vai incumbir o destino da magia a uma mera bruxa e a sua neta? Que não confiam nem uma na outra?
— Pra mim, elas parecem se dar muito bem.
Hadria revirou os olhos, andando pelo cômodo enquanto evitava encarar o conselheiro. Ele não conhecia Diana como ela conhecia. A pequena bruxa não confiava tão facilmente nas pessoas, menos ainda na neta de um conselheiro. Tinha certeza de que Lilitu seria enganada e traída na primeira oportunidade que sua antiga amiga tivesse.
E havia outras questões também.
— O que faremos, então? Ficaremos aqui torcendo e esperando que uma inimiga pública do Conselho nos salve? O que vou dizer aos outros?
— Primeiro — disse Alma, enquanto se levantava — nós vamos conversar com Edna.
— Edna? — questionou a feiticeira, confusa com a repentina menção a sua mãe adotiva. — Por quê? E como vamos convencê-la de tudo isso?
— Não vamos precisar — respondeu o feiticeiro, o sorriso habitual de volta. — Ela já sabe da maior parte.
Se Diana precisasse ser honesta, teria
que dizer que gostava mais da comida do pai do que a de sua mãe.
Mas a sopa de ervilha de Maya, especificamente, era insuperável. Só ela sabia salgar a refeição de forma que se adequasse perfeitamente ao paladar da bruxa.
E estava grata pela sorte de voltar para a casa no dia que sua mãe havia decidido fazer a ilustre sopa.
Depois de uma satisfatória refeição, em que contou muito por alto para a família sobre algumas de suas buscas dos últimos dias (ocultando todos os acontecimentos que vieram depois da Caverna de Vitalis), Diana decidiu tomar um banho para relaxar a mente e terminar de absorver todos os detalhes do que tinha visto, ouvido e vivido. Felizmente, um encantamento com a assinatura de Maya Evanora já estava disposto no pequeno reservatório do banheiro, e a bruxa agradeceu por não ter que gastar mais energia apenas para esquentar a água.
A profecia, os feiticeiros do Conselho, Hadria... era tanto, e tinha certeza de que ainda não sabia o suficiente. Não tinha informações o suficiente.
E mesmo assim, lá estava ela, se preparando para outra viagem para longe da família, escondendo coisas sem nem mesmo saber o que encontraria, mas dizendo a si mesma que era pelo bem deles.
Sempre deles.
Ela nunca entrava na equação.
“Esses pensamentos não são meus.”
“Estou sugerindo uma autocrítica.”
“Só para. Por favor.”
“Tá bom, mas saiba que só trouxe à tona coisas que você escolhe reprimir.”
E, sem mais nem menos, a voz desapareceu por algum tempo. Diana sabia que não o suficiente para comemorar sua paz, mas pelo menos o bastante para que conseguisse organizar suas coisas com calma.
Depois do banho, se vestiu como o usual: botas, calças confortáveis, cinto, um colete de couro, uma blusa por baixo e, claro, seu manto, que mais parecia uma capa, mas era um pouco grande demais para isso. Também era a única parte não exclusivamente em tons neutros, com detalhes sutis em roxo nas golas e por dentro dele.
Sabia que com dinheiro suficiente poderia garantir o mínimo, poupando-a de levar uma mala para cima e para baixo das Terras Mágicas. Sua magia também ajudava. E tinha contatos o suficiente para conseguir abrigo em alguns lugares estratégicos ao longo da viagem.
Então, pegou apenas um pequeno caderno de anotações e alguns pergaminhos da época da escola, que ainda tinha guardados, e os colocou dentro do bolso escondido do manto-capa.
Agora sim, estava pronta.
A Torre do Conselho Mágico era a
maior construção da capital, e estava equipada para atender a qualquer tipo de
necessidade que quaisquer membros da alta hierarquia tivessem. Havia salões,
para reuniões ou festividades, salas de treino, bibliotecas, piscinas de banho
quente e até mesmo quartos luxuosos e personalizados para cada representante
das oito famílias, ainda que a maioria só preferisse dormir em suas próprias
casas, provavelmente ainda mais confortáveis e com mais pompa.
Hadria, é claro, dormia no quarto da torre, reservado a representantes da família Merlin, desocupado desde que o próprio feiticeiro se fora.
Era menor do que os outros, mas garota jamais o modificaria.
Não era para voltar a seu dormitório, porém, que eles estavam na Torre.
De soslaio, a conselheira olhou para o velho homem, que caminhava pouco a frente, em um raro passo firme, se dirigindo à Biblioteca Central, a mais restrita, a que apenas os próprios representantes tinham acesso. Edna ficava bastante por lá.
Talvez pela primeira vez, Hadria cogitou que todo o comportamento esquisito que o representante da família Vitalis desempenhava fosse só uma forma de esconder sua natureza. As pessoas dali não respeitavam quase ninguém. Mesmo que Alma tivesse poder e o sangue para lhe garantir uma cadeira na mesa de reuniões do Conselho, ninguém pararia para conversar por muito tempo com um velho decrépito de chapéu engraçado e comportamento estranho.
Quer dizer, ninguém além de sua neta e da própria feiticeira da família Merlin, igualmente rejeitada pela maioria.
Vendo-o agora, com olhar confiante e sorriso no rosto, ainda enxergava o velhinho gentil que a acolhera por todos esses anos, mas com uma vivacidade e lucidez pouco demonstradas anteriormente.
Pararam diante das duas folhas da porta de madeira da Biblioteca. Ainda que fossem imensas, com pouco ou quase nenhum esforço o conselheiro empurrou com uma das mãos, abrindo uma delas, e eles adentraram no lugar.
O espaço, é claro, era imenso: com muito mais livros do que qualquer um ali leria em vida. Estantes com metros de altura, alinhadas e espalhadas por toda sua extensão. Também havia mesas de pedra branca e cadeiras acolchoadas, isso sem citar o segundo andar, onde uma estante única circundava todo o salão.
Toda essa confusão fez Hadria lembrar que, na primeira vez que tinha visto a Biblioteca, pensara imediatamente em Diana. A bruxa com certeza faria um uso melhor do que todos eles, e quem sabe realmente lesse a maioria daqueles livros com gosto e o raro sorriso que aparecia quando aprendia algo novo.
Porém, isso só havia acontecido um dia depois da formatura delas. Um dia depois da fatídica última conversa que haviam tido, oito anos antes. No dia em que Hadria assumira seu posto oficial como representante do Conselho Mágico.
Talvez Diana nunca ficasse sabendo daquele lugar, afinal.
— Edna — chamou o homem, olhando para o alto, mas para nenhum ponto em específico, esperando que o eco de sua voz alcançasse quem ele queria. Quase ninguém ficava muito por lá.
— Alma — respondeu uma voz acima, e eles olharam para trás, onde, diante de um guarda-corpo com grades foscas, uma mulher negra de tranças enroladas atrás da cabeça em um penteado elaborado, roupas brancas e azuis e brincos prateados os encarava de queixo erguido, séria. — Suponho que o momento tenha chegado.
Antes que Diana partisse, houve
tempo para que seu pai, Ramiro, chegasse em casa, e eles pudessem conversar
rapidamente. Ela lhe disse que precisava se apressar, mas o abraçou e avisou da
sopa.
— Veio num bom dia, então — respondeu ele, sorridente. A bruxa sabia que, assim como seu irmão e mãe, ele se preocupava bastante com ela, mas era o que menos a questionava. Isso porque Ramiro sempre havia sido quem mais lhe incentivou a estudar e se aperfeiçoar em magia. Não que fosse muita coisa, mas depois dela, na casa, era ele quem sabia fazer um ou dois truques para além dos encantamentos convencionais do dia a dia. Ele também sempre lhe dizia como estava orgulhoso pela mulher que ela havia se tornado, ainda que ela não sentisse ter tantos méritos assim.
Sua família se reuniu em frente à porta para se despedir, e todos deram um abraço coletivo. Diana era muito ruim com demonstrações de afeto no geral, mas tudo parecia mais fácil quando se tratava de seus pais e irmão.
— Se cuidem. Eu volto logo, viu? E se alguém do Conselho aparecer, fujam. Há instruções do que fazer caso...
— Sabemos — interromperam os três, em uníssono, rindo juntos logo em seguida. A mulher também não conseguiu conter um pequeno sorriso.
A bruxa havia dito que viajaria para “retirar o conglomerado do corpo”. Não tinha certeza se era mentira ou não, mas pareceu uma desculpa razoável. Claro, a família sabia que ela ocultava detalhes propositalmente o tempo todo, mas assim como as outras coisas, ela fazia para que pudesse protegê-los. Saber demais não seria bom para nenhum deles.
Deu uma última olhada em cada um deles, e sorriu, com um aceno. Não sabia quanto tempo ficaria sem ver aqueles rostos, então sempre gostava de gravá-los em sua mente o máximo que podia.
Finalmente deu as costas e se virou para a estrada, indo em direção à saída.
Sua família a observou enquanto se afastava sem olhar para trás, e depois de perdê-la de vista, entraram em casa novamente. Lucas foi o último a olhar mais uma vez para o horizonte, e ainda que não pudesse mais ver a irmã, sorriu e deu um último aceno, fechando a porta.
Os únicos a testemunhar a cena, porém, foram seu pai, que nada disse, e um corvo, que depois de observar tudo do telhado da casa, grasnou, voando para longe.
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