Depois dessa crise de ansiedade, Alice foi direto para a casa da mãe com a companhia de Tayná. Ela não deixou a amiga ficar por muito tempo por ali com receio do que a mãe poderia falar para a filha, do que a mãe iria falar de Tayná ou falaria para Tayná.
O medo da mãe estragar a recém construída relação é tanta que supera o desejo de estar mais tempo com a amiga.
— Até amanhã, Tayná!
— Até! Fique bem!
— Obrigada!
Alice entrou na casa, esperando que a mãe esteja ocupada para não a ver usando sua jardineira amarela de saia com as estampas de flores e a camisa rosa claro que estavam por baixo da blusa de frio de uniforme da escola, a qual já tirou e colocou na mochila.
Se a mãe a ver vestida desse jeito, o tanto de besteira que ela vai ter que escutar com certeza vai a fazer chorar novamente e dessa vez ainda pior.
Achando que tinha se livrado dos comentários da mãe, bem na hora que ela está passando para o quarto, Teodora saiu do escritório, a vendo.
Nesse momento o coração de Alice congelou, ela sabe o que vem agora e nunca está preparada o suficiente apesar de sempre se preparar para quando vê a mãe. Mas acontece que não importa quanto você se prepare, uma situação ruim continua sendo uma situação ruim e continua tendo plena capacidade de te magoar.
A capacidade de algo te magoar é ainda maior quando vem de alguém que supostamente deveria se importar com você, cuidar da tua saúde e do teu bem-estar. Ser a pessoa que te apoiaria apesar das adversidades do mundo, que estaria sempre do teu lado.
Esse papel de mãe não é algo que Teodora Andrade se vê na obrigação de cumprir. Sempre acostumada a moldar o mundo a sua vontade e quando quer, sempre vencer em todos os seus casos.
A mulher de 42 anos acha que a filha tem que ser o que ela quer que seja, o que ela planejou para que Alice siga e se comporte. O jeito de se vestir, falar, se comportar, cada coisa dessas, Teodora quer moldar.
Na visão dela, só sendo do jeito que ela planejou desde que soube que estava grávida que a filha vai conseguir alcançar algum sucesso na vida. Mas, para isso, ela acha que a filha deve deixar “A bobeira de ser LGBT.”, nas palavras dela, de lado.
— Lucas.
Mesmo com todos os anos que passaram desde que Alice se assumiu e mudou de nome, Teodora segue se recusando a chamá-la pelo nome correto. Se recusa a aceitar a filha, faz objeções constantes ao pai da menina.
Ela briga com Antônio toda vez que o vê falando que ele fica colocando bobeira na cabeça da garota, que ela só se comporta assim porque dá liberdade para que veja “Essa bobeira de modinha de querer ser de outro gênero.”, como ela costuma dizer.
A mulher amarga considera que ser LGBT é algo que a juventude tem feito para contrariar os pais e os bons costumes de uma sociedade civilizada. Que deveria ser proibido por lei porque fere a vida das pessoas de bem.
Um orgulho mesquinho que ela criou e nutriu desde pequena sobre ser melhor e mais importante que alguém que está fora do que é considerado normal pela sociedade brasileira.
— Oi, mãe?
— Deixa eu ver a sua roupa.
Alice se aproximou relutante, sabendo que vão vir muitos comentários maldosos com o objetivo de feri-la até sangrar.
— Você foi para a escola vestido desse jeito?
— Sim… - falou de maneira relutante, olhando para baixo.
— Você não sente vergonha de sair assim?
— Não.
— Aaah! Você é um garoto tão bonito. Se vestir dessa maneira é uma vergonha, você me envergonha e envergonha seu pai. Envergonha a sua família inteira.
— Isso não é verdade.
Teodora tem um olhar e uma maneira de falar que contamina as pessoas, o jeito dela é uma das coisas que faz ela ter grande sucesso na carreira. A forma como ela escolhe as palavras de forma a ferir e deixar os outros desconfortáveis, os fazendo desistir de ideias, planos e causas.
Parece que ela usa a filha especialmente para treinar essa habilidade que os clientes chamam de abençoada, mas que apenas amaldiçoa a vida da filha e das pessoas com que a mulher se relaciona.
Ela é do tipo de pessoa que ninguém se sente bem perto. Crítica a tudo, faz os outros se sentirem mal sobre qualquer coisa que ela considere fora do seu ideal. Por causa disso todos os relacionamentos dela fracassaram.
Alice nunca entendeu como o pai conseguiu casar e sustentar um relacionamento de sete anos com essa mulher.
Antônio é o tipo de pessoa completamente contrária de Teodora. Ele é gentil, acolhedor, faz as pessoas se sentirem bem perto dele.
O que Alice sabe apenas por alto, sem todos os detalhes, é que o pai e a mãe transaram uma vez por causa do calor do momento e a camisinha estourou, um tempo depois a mãe dela descobriu que estava grávida. A família dela exigiu que eles se casassem e ele sustentou o relacionamento por causa que acreditava que a filha ia crescer melhor com um pai e uma mãe no mesmo lar.
Mas com os absurdos que Teodora começou a fazer e falar quando Alice começou a deixar o cabelo crescer, ele percebeu que era melhor separar e afastar um pouco a filha da mãe. Ele não sabe todos os absurdos que ela passa com a mulher, então ainda acha que é bom para a garota passar os finais de semana com ela porque acha importante crianças terem os dois pais na vida delas.
— Você me envergonha muito. Devia cortar esse cabelo e parar com essas atitudes de garotinha.
— Mas eu sou uma garota.
— PARA DE BESTEIRA!
— Mas…
— Eu já mandei parar de dizer essas coisas.
Alice nesse ponto dessa conversa torturante já está com os olhos cheios de lágrimas, tremendo. Ela está ansiosa, aflita, com medo do que pode acontecer a mais.
As palavras da mãe estão a contaminando como veneno. Em sua cabeça já estão passando pensamentos como “Será que ela não está certa e eu estou apenas fingindo?”, “Eu deveria mudar e aceitar o que ela diz, iria ser mais fácil.”.
As incertezas de Alice sobre seus sentimentos sobre si, sua disforia. Seu autopreconceito. Todas as coisas ruins sempre afloram no convívio com a mãe.
Ela pensa que se escutasse a mulher, teria menos problemas, teria menos medo. Mas toda vez que começa a pensar isso a voz do pai vem em sua mente “Mas você seria feliz?”. Isso é o que ele sempre perguntou a ela nos primeiros anos desde que se assumiu quando estava incerta sobre tudo, quando ainda convivia com várias pessoas que sabiam quem ela era antes.
— Agora você vai chorar? Isso é coisa de mulher e ainda mulher fraca. Você é um homem, se comporte como um!
— Eu não sou um homem! - Alice gritou sem querer.
Ao perceber o que fez, o medo tomou o coração da garota. Se tem uma coisa que a mãe odeia que façam é que levantem a voz para ela.
Teodora, como esperado pela garota, a pegou pelo braço e puxou até onde ela guarda a vara de goiaba que ela já tem há uns anos. Essa vara foi colhida um tempo depois da separação dos pais e foi usadas algumas vezes por ano.
Alice foi tomar banho chorando no dia, dolorida e marcada. Depois de tomar banho, ela se deitou sem jeito na cama por causa da dor nas coxas. Novamente a força foi o suficiente para romper parte da pele, criando mais uma marca permanente nela.
Toda vez que isso acontece, Alice se culpa por ter gritado, por ter discordado da mãe. Além da agressão, a mãe ainda a obriga a pedir desculpas de joelhos, reconhecendo que só Teodora sabe das coisas.
Ela está tão mal que nem mandou mensagem para Tayná para saber do encontro do dia seguinte. E a mensagem que recebeu da garota dormiu não lida no celular.
O dia amanheceu e mais uma mensagem preocupada de Tayná se encontra no celular de Alice.
“Você está melhor?” - Mensagem do dia anterior.
“Alice, quando puder responder, me fala se está tudo bem. Ok?” - Seis da manhã.
“Você ainda não chegou, aconteceu alguma coisa?” - Oito e meia da manhã.
O que aconteceu que a sempre adiantada Alice ainda não está no local do encontro?
Alice, depois de se arrumar, teve a infelicidade de encontrar com a mãe na cozinha, logo antes de sair para encontrar com Tayná.
A conversa ainda fresca do dia anterior voltou para a mente da mãe e ela forçou a filha a voltar para o quarto, trocar de roupa e depois limpar a casa toda como castigo.
— Você não aprende, Lucas?
— Eu me chamo Alice.
— Não me responda!
— Mas…
— Sem mas. - Teodora interrompeu a filha. - Agora que terminou tudo que eu mandei e já se arrumou decentemente como o rapaz que é, você pode sair.
Alice esperou a mãe se ocupar com o trabalho e trocou a roupa para a saia plissada preta e camisa branca de gola com manga longa e uma fita em um laço no cabelo que estava vestindo anteriormente e correu para encontrar Tayná, torcendo para que a garota não tenha desistido de a esperar.
O motivo dela não ter respondido as mensagens de antes da amiga é porque acordou tarde por ter ficado chorando a noite toda e ter dormido mal por causa da dor.
Então, quando acordou, resolveu se arrumar toda, tomar café e escovar os dentes o mais rápido que podia para responder Tayná em seguida. Mas os planos foram frustrados pela mãe.
Alice chegou no local do encontro quase uma hora inteira depois do combinado. Tayná não está no local e ela já começou a pensar que a amiga vai achar que ela deu um bolo completo.
— Hey, sumida. - Tayná disse de trás dela.
Ela se virou e viu a cara de cansada e preocupada de Tayná. Ela ficou entediada de esperar, mas quando estava pensando em ir embora viu a silhueta de Alice na distância. Além disso, ela esperou esse tanto porque está preocupada de verdade com a amiga.
— Oi… Desculpa a demora. Eu acordei muito tarde porque fui dormir depois da hora ontem.
— Tudo bem. Eu só fiquei preocupada porque você não respondeu minhas mensagens.
— Desculpa por isso também. Eu não estava bem para conversar.
— Tudo bem, não tem problema. Você está melhor?
— Um pouco.
— Eu ia embora, mas o Sol empacou e ficou fugindo de mim, como se soubesse que você estava chegando.
— Ele sabia. Porque a mamãe nunca vai deixar de vê-lo o máximo que pode.
Elas sustentaram o olhar uma na outra por um tempo, não exatamente olhando para os olhos. Depois riram sem graça.
— Você está linda. - Tayná elogiou.
— Obrigada! Você também está!
Tayná está vestindo uma camisa de botão com gola branca e listras pretas por baixo de uma camisa preta e com suspensórios brancos presos a uma calça de flanela preta com listras verticais brancas. Além do coturno habitual. Hoje os brincos são todos de bolinha.
Apesar de ter elogiado primeiro, ela acabou ficando sem graça com o elogio da amiga, porque Alice a olhou inteira avaliando o visual.
Sol está com sua guia roxo escuro com bolinhas coloridas nas cores do arco-iris. Assim elas formam um trio de beleza que se destaca no local em que estiverem.
— Obrigada!
— Peço desculpas de verdade por ter te deixado no vácuo e por ter me atrasado.
— Tudo bem, não faz mal.
— Podemos sentar um pouco? Eu estou cansada porque vim correndo, não é meu costume me atrasar e nem correr para algum lugar.
— Claro.
As duas se sentaram no banco com Sol entre elas. Tayná percebeu que Alice está com dificuldade para se sentar e fica se mexendo toda hora, mostrando claro desconforto.
Ela ficou pensando se deveria perguntar o que houve, se a amiga se machucou ou algo assim para não estar conseguindo sentar direito. Mas está com receio de perguntar demais, falar demais.
Alice percebeu que está sendo encarada com preocupação, com a mesma cara que o pai e Kleber fazem para ela quando estão pensando se devem ou não falar alguma coisa.
Ela começou a tentar elaborar alguma desculpa na cabeça para explicar o desconforto ao sentar. Pensando o que dizer que não seja “Minha mãe me bateu com uma vara de goiaba e exagerou um pouco na força. Mas eu mereci. Haha!”, que é o que está passando na cabeça dela nesse momento.
— Você se machucou?
— Não, só está crescendo um furunco na minha perna e isso está deixando difícil achar uma posição confortável.
— Nossa, furunco é uma coisa terrível, né?! Eu tinha vários quando menor, mas tem uns bons anos que eu não passo por essa tortura.
— Sorte a sua. Mas tinha algum tempo que não passava isso, a última vez que tive um furunco foi há dois meses.
— Nossa, recente então. Você deveria ver um médico para saber porque está tendo tantos deles.
— Ah, não tem problema, estou quase totalmente acostumada com eles.
— Você não deveria se acostumar.
Alice ficou quieta, pensando o que a amiga diria se soubesse o que são os furúnculos dela de verdade.
Na cabeça da garota, qualquer pessoa concordaria com a mãe dela. Porque, afinal, ela que levantou a voz primeiro, então acha que mereceu tal punição. Mesmo a mãe falando maldades como a de ela não ser uma garota.
Mas se ela falasse a verdade, teria que dizer porque ela levantou a voz em primeiro lugar. E Alice não está preparada para perder uma amizade e o gatinho dela ao mesmo tempo por ser trans, como sempre acontece quando descobrem isso.
— O que a gente vai fazer hoje? - Tayná perguntou.
— Não sei, eu meio que não quero tomar sorvete hoje.
— Justo.
Enquanto as duas conversam, sem tirarem os olhos do Sol ou soltar a guia dele. Sol está brincando com uma pedrinha que achou no chão jogando ela para tudo que é canto e correndo atrás, até o limite de onde vai a extensão do que o prende.
Quando a pedrinha foi longe demais e ele percebeu que as garotas não estavam vendo, ele usou um de seus poderes e trouxe a pedrinha para perto novamente e voltou a brincar com ela como se nada houvesse acontecido.
Ele está deixando as duas conversarem bastante para se aproximarem mais, não exigindo a atenção delas. Mas em um dado momento, simplesmente parou, se sentou e ficou olhando para as duas.
— Você quer andar um pouco, meu filho? - Alice perguntou.
Sol fez que sim com a cabeça e depois miou baixinho.
Alice se levantou do banco e agachou perto do gato, fez carinho na cabeça dele e depois pegou a guia da mão de Tayná ao mesmo tempo que a puxou para ficar de pé e irem andar.
Elas andaram pela praça, olhando as plantas, os velhinhos jogando xadrez. Comentaram sobre o Seu Zé, que é um velho barrigudo, negro de bigode cinza que vive ali sem camisa como se as pessoas fossem obrigadas a ver a barriga proeminente e o peito peludo dele. E riram sobre fantasiar que ele é um lobisomem disfarçado no meio dos velhinhos só escolhendo uma vítima.
Tayná falou de uma senhora que vai na mesma igreja da mãe dela e que ela tem certeza que é uma bruxa do mal, que faz coisas para fazer mal aos outros. Mas que tem uma comida muito gostosa e a garota acha que é gostosa porque considera que a senhora coloca encantamentos para fazer as pessoas se viciarem na comida.
Alice ficou admirada com a imaginação da amiga, a garota gosta de criar histórias para cada pessoa que vê. Então assim elas seguiram o dia, apontando para um local e inventando uma história para ele. Vendo uma pessoa e imaginando o que está se passando na vida dela.
Mas, como tudo que é bom dura pouco. Depois de almoçarem juntas, Alice pagando novamente, elas se despediram e foram cada uma para sua respectiva casa.
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