Capítulo 4 ― O segredo são duas colheres de mel
Farkas, Pré-Hecatombe
― Oz.
Ravi estacionou ao lado do filho, a mão mecânica firmemente plantada em seu ombro em um recado velado.
― Você era muito jovem da última vez em que nos encontramos com o Senhor Instrutor, mas…
― Oh, é o seu garotinho? ― Kuí interrompeu, aproximando-se de Oz em um movimento tão fluido que foi como se deslizasse pelo chão. ― Já é um lobo e tanto, Ravi, querido. Eu ficaria de olhos abertos no seu lugar. Não dizem que lobos dessa idade estão prontos para roubar um território? ― O sorriso infantil de Kuí pareceu ficar ainda maior. ― Não faça essa careta, querido, eu estou brincando.
— Para alguém que acabou de me chamar de garotinho, você parece ter altas expectativas sobre mim. — Oz tinha os braços cruzados. O sorriso de canto era ácido e contido, o suficiente para não subir aos olhos. Era como sorria quando estava bravo.
― Ou baixíssimas sobre o seu pai, tolinho. Pense nisso. ― Kuí piscou, charmoso, envolvendo o braço de Ravi com as mãos no meio de uma gargalhada. ― Vamos, me mostre como estão as coisas, você sabe como é minha memória.
Oz revirou os olhos, olhando ao redor. À primeira vista, as cobras tinham sido um desconforto. Poucos minutos depois, aquela criatura já tinha feito seus dois répteis parecerem bem mais agradáveis.
Suas memórias sobre o Instrutor eram imprecisas, varridas para longe pelos ventos do trauma, mas a silhueta dele pontuava algumas poucas lembranças de sua juventude, como uma sombra indistinta.
— Pai, não vai esperar o Yan? Ele desceu para buscar o seu treco pra dor de cabeça.
― É um sinal de que ele ainda tem pernas para me encontrar ― Ravi grunhiu. ― Esteja pronto antes de escurecer, Oz. Te quero ao meu lado na cerimônia de abertura. Você também, Senhor Instrutor ― exigiu, recebendo de volta um sorriso aveludado.
― Eu adoro os assentos especiais, querido.
— Aposto que adora — Oz grunhiu baixo, se afastando uns passos até perto da escadaria, o olhar vigiando o caminho que levava aos aposentos comuns. — Eu vou me arrumar, então. Pra estar pronto na hora. Seria indelicado demais deixar a visita esperando. — Ameaçou mostrar os dentes, mas se conteve. O tom enfático marcava como o via: como um forasteiro. Alguém com pouquíssimo tempo em Farkas para chegar com tantas opiniões.
E, ainda assim, não seria de bom tom tratá-lo com descaso. A Ópera do Fim do Mundo não era apenas uma pomposa trupe de artistas, mas a principal comitiva de diplomatas das Cidades Flutuantes. As lideranças de todas as cidades agiam com cautela quando a Ópera chegava em seus territórios: poderia ser vantajoso; também poderia ser trágico.
Farkas era uma cidade alimentada por sussurros. Anos antes, esses mesmos sussurros tinham colaborado para a destruição de Nivaria. Agora, estavam muito mais dispostos a dedicar energia a espalhar a fama do tal Instrutor. Um ser antigo e muitíssimo bem relacionado, com seu sorriso calmo e a fala doce. Uma criatura agradável aos que bem o cortejassem, mas com palavras venenosas o suficiente para causar problemas nas fronteiras.
Como líder da cidade, era esperado que seu pai dedicasse a ele não menos do que uma boa dose de atenção. Oz ainda não tinha essa obrigação. Teria no futuro, quando fosse líder. Então pensaria em como estabelecer uma relação melhor com aquela criatura e sua ópera metida. Por agora, podia apenas se afastar. E então caminhar alguns passos atrás durante a noite e aproveitar as festividades do seu próprio jeito.
*
― Eu trouxe alguns presentes, querido ― Kuí comentou depois de visitar o Salão Memorial dos Farkas e prestar suas homenagens aos Imortais e aos antepassados da família. ― Garrafas daquele rum vulcânico de que você tanto gosta, diretamente da minha terra natal. ― Uma das cobras ergueu a cabeça, a língua brincando com a lateral de seu rosto. Ele deixou o tom de voz abaixar até um doce sussurro. ― E uma aliada, com segredos de outras fronteiras.
― O rum já seria um presente incrível — Ravi entoou, a voz alta e provocativa dos lobos, o tom de alguém que não tinha inimigos por perto. Ainda assim, ele se inclinou para ouvir a segunda parte da conversa. — Quem é essa aliada e que segredos me traz?
― Você já deve ter ouvido falar sobre ela, querido, bem informado como sei que é ― Kuí cantarolou. Sua entonação era sempre musical, um dialeto macio que se misturava ao de Farkas. O brilho no olhar era como o das crianças diante de uma brincadeira nova.
― A Sereia? ― Ravi arriscou, com a voz contida, vendo Kuí concordar. ― E eu terei o prazer de conhecê-la ainda hoje, imagino.
― Ela adoraria, meu bem, mas temo informar que uma voz tão única veio aliada a uma saúde frágil. Um lobo forte como você não entenderia, mas criaturas mais delicadas costumam ficar amuadas depois de viagens longas. ― Kuí deu um passo para mais perto de Ravi, como se não o incomodasse tamanha proximidade em um espaço aberto. ― Mas pensamos em apresentá-la no último dia do festival, em um espetáculo exclusivo para a sua família. Parece a forma certa de comemorar dez anos sem aquela gente horrorosa, certo? Não é bem esse o foco desta linda festa?
Um pássaro-engrenagem os alcançou em um dos pátios internos. Fora dos portões das dependências da família, o som e os cheiros das festividades começavam a tomar as ruas. Ravi estendeu a mão para que o pássaro se aproximasse. Em suas garras, trazia uma bandejinha sustentada por quatro fios de cobre com um pequeno bule fumegante e um copo de cerâmica escura.
— Um momento, meu amigo — Ravi pediu, se interrompendo para se servir de um copo de chá, liberando o pássaro enquanto voltava a caminhar carregando ele mesmo o bule e o copo, que pareciam ainda menores e mais delicados em suas mãos. — Parece que meu curandeiro mandou um emissário para me entregar o chá. — Balançou a cabeça com humor. — É isso que dá criar alguém assim como um convidado dentro dos meus muros. Ele toma certas liberdades.
— Seu curandeiro pessoal não é de Farkas? — Kuí ergueu uma sobrancelha. — Você não cansa de me surpreender, meu bem.
— Não é, mas foi por uma boa causa. — Ele tomou o primeiro dos goles. As ervas daquele tipo de chá costumavam deixar na garganta um rastro amargo, mas Yan sempre fazia questão de adoçar seus preparos com um bom tanto de mel, de forma que Ravi nem precisasse se incomodar com sabores ruins. — Você deve tê-lo visto nos meus aposentos quando chegou, meu amigo. Uma criaturinha pequena. Com orelhas de arminho.
― Oh! ― Kuí não fez questão de esconder a surpresa. ― Então você cria mesmo um nivariano debaixo das patas?
― Mestiço. — Ravi corrigiu sem hesitar. — Um curandeiro com uma habilidade boa demais para desperdiçar com nivarianos. Tem vivido aqui desde que era adolescente. Tirando as orelhas, quase consigo me esquecer de onde veio.
— E esse chá aromático é o remédio que ele preparou? Deve ser mesmo especial, se supera o talento de todos os curandeiros da sua bela cidade.
— Não se faça de rogado. — Ravi abriu o sorriso, orgulhoso, oferecendo-lhe o copo de cerâmica. — Tome um gole você mesmo. Nem vai sentir como se fosse um remédio. Ainda assim, basta um pequeno bule e minhas dores sempre se vão.
Kuí tomou o copo nas mãos, bebericando o que havia restado do chá ― apenas o bastante para uma breve degustação do sabor de ervas e mel.
― É certamente muito agradável, querido. ― Kuí tocou a cabeça de sua cobra ao vê-la armar o bote contra o passarinho-engrenagem que havia se aproximado para recolher a louça. Erguendo a mão, devolveu o copo vazio. ― Mais uma vez você mostra o quanto é sábio nas decisões. Ah, meu bem, mas chega de conversa. O som da música lá fora está me deixando ansioso. Ainda vamos demorar a sair?
━ • ✿ • ━━
— Você ainda vai ter muitos dias pra fazer isso — Yan cantarolou, o rosto apoiado nas mãos enquanto observava Oz do canto da barraca.
Ravi tinha ordenado que Yan cobrisse as orelhas. De fato, ele tinha escolhido um chapéu para usar naquela noite, feito de palha clarinha, com abas largas em formato circular, que se prendia ao seu pescoço por um belo laço de fita lilás.
Não o usava na cabeça, entretanto, mas caído para trás, cobrindo a nuca e os ombros. As orelhinhas arredondadas continuavam à mostra, vítimas de um ou outro olhar, mas não de comentários. Yan sorriu em silêncio, vendo Oz testar o peso da machadinha na mão com um sorriso largo no rosto. Alguém teria que ser mesmo muito burro para falar qualquer coisa enquanto andasse por aí exibindo suas perigosas orelhas nivarianas ao lado do herdeiro de Farkas.
— Mas eu quero hoje! Você tá com pressa? — Oz perguntou animado.
Tinha todo o espaço da barraca para si e um pequeno aglomerado de pessoas ao redor, assistindo suas tentativas enquanto davam gritos de suporte. Ele girou a machadinha na mão uma última vez antes de arremessá-la contra o boneco de madeira no centro do alvo. A arma passou tinindo ao lado da cabeça, arrancando uma lasca gorda de madeira de onde estaria uma orelha, mas se fincando atrás, no cenário.
Oz soltou um rosnado irritado, acertando um soco tão potente no tampo de madeira que a estrutura toda da barraca balançou.
— Quantas chances ainda tenho? — perguntou alto para o vendedor. Tinha substituído o sorriso por um olhar ameaçador, o que costumava significar que estava começando a perder a paciência.
— Quantas precisar, jovem mestre. — O vendedor respondeu de prontidão com a voz abobalhada. — Um herdeiro Farkas já nasce um herói. Nem precisa perder mais do seu tempo se não quiser. Só me diga qual prêmio deseja.
— Está insinuando que não posso ganhá-lo por mim mesmo? — Ele mostrou os dentes.
Yan cobriu o rosto com as mãos, escondendo um sorrisinho. Se continuassem assim, talvez passassem a noite toda em uma barraca só.
“Não acerta um mamute se estiver morto na frente dele”. A voz em sua memória pareceu de súbito tão clara que Yan quase olhou para os lados, esperando encontrar por ali um par de olhos da cor da geada.
— Oz — ele chamou baixo. Se levantou, indo até ele e tocando seu braço num gesto afetuoso. — Eu tô com fome. Podemos fazer uma pausa?
O céu começava a ganhar os tons de bronze que adquiria quando a capa escura dos Imortais começava a cair, anunciando o fim das horas claras. Não havia sol, lua ou estrelas no céu das Cidades Flutuantes, mas aquelas criaturas conheciam o conceito de dia e noite ainda assim, dado que os Imortais mantinham um fluxo quase constante de luz e trevas no mundo. Nos numerosos templos e pequenos oratórios espalhados pelas quatro Cidades, sacerdotes cuidavam para manter velas, incensos e oferendas sempre frescas nos altares, o que era sensato. Brincar com o humor dos Imortais sempre poderia significar longos períodos de escuridão, o que arruinaria as prósperas colheitas de Farkas.
De longe, o som dos sinos marciais anunciava que novas oferendas acabavam de ser feitas. Durante o Festival, Ravi era ainda mais generoso com seus templos. A vitória contra Nivaria havia sido uma grande prova de que tinha os Imortais ao seu lado.
— Fome? Nós acabamos de chegar… — Oz ergueu o olhar no meio do resmungo. Pela cor do céu, estava errado, mas não diria em voz alta. — Tudo bem. Eu não quero ser conhecido como o lobo que deixa seu acompanhante com fome. Minha última tentativa, e vamos te comprar comida.
— Tá bem — Yan arriscou outro sorrisinho, ameaçando um passo para se afastar quando Oz o segurou pelo pulso.
— Não, fica aqui. Fica pra me dar sorte — demandou, em um tom que era muito mais de ordem do que de pedido.
Yan ficou, apoiando novamente o rosto na mão enquanto esperava pela jogada. Oz testou a machadinha na mão pela centésima vez, deu dois passos para a direita e então de volta para o centro, fechou e voltou a abrir um dos olhos. Enfim, ergueu a machadinha, mirando-a na cabeça do boneco e…
— Cuidado, cachorro fedido! — Shu Lan gritou. Tinha se esgueirado para fora do cabelo de Yan e se esticado sobre seu chapéu.
Pego pelo susto no meio do movimento, Oz lançou a machadinha em diagonal, fazendo-a passar voando sobre a cabeça do vendedor e se fincar na viga que sustentava o toldo.
Yan arregalou os olhos. Ao redor da barraca, ninguém ousou se manifestar. Ninguém, além de Shu, que soltou um sonoro “he-he” antes de voltar a se esconder, o rabinho branco coberto de manchinhas chacoalhando na lateral do chapéu.
— Eu vou… — Oz respirou fundo, fechando os olhos e a mão em um punho. — Eu vou cortar esse bicho em três algum dia, Yan. Fazer espeto de lagarto e dar de comer pros lobos!
— Até os lobos vão ganhar comida antes de mim? — Yan fez um biquinho, se aproximando e beijando sua mão. Os ombros dele perderam um pouco de tensão.
— Foi um bom arremesso, jovem mestre! — O vendedor aplaudiu, enquanto o sangue voltava ao rosto depois do susto. E apontou para a machadinha fincada no fundo da barraca. — Vejam quão poderoso é o herdeiro Farkas! Ninguém nunca acertou uma machadinha tão… longe! Foi essa força que dizimou centenas de nivarianos!
— Chega — Oz não ergueu a voz. Pelo contrário. Soou assustadoramente sério, enquanto a mão se fechava ao redor do pulso de Yan. — Vamos. Esta barraca é um saco.
Os dois se viraram para sair em meio a uma pequena plateia que se dispersava. Da aba do chapéu de Yan, Shu mostrou a língua para o vendedor ainda calado.
Por onde passavam, eram seguidos por uma multidão de olhares. Não só porque Oz tinha a estatura do clã principal da cidade e uma onda farta de cabelos negros a se espalharem pelas costas, mas também porque suas vestes — trespassadas na altura do peito, em um tom de índigo destinado apenas àquela família — chamavam atenção em meio à decoração laranja.
Yan, ao seu lado, não usava aquelas cores, mas uma túnica simples e branca, com bordados delicados em fio cor de ouro.
— Aqui — Oz chamou sua atenção, exibindo sobre a palma da mão um pequeno bolinho de gemas doces que havia acabado de comprar de uma vendedora ambulante. — Pra você.
Os olhos de Yan se ergueram até os dele. O sorriso que ofereceu foi gentil e íntimo, mas não muito animado, nem mesmo enquanto comia o doce aos bocadinhos e o oferecia a Shu, em seu ombro.
— Foi o que ele falou, não foi? — Oz perguntou, mostrando o canino afiado numa careta torta. — Sei que essa festa é pesada pra você. Se quiser ir pra casa, digo ao meu pai que você estava cansado da viagem.
— Eu quero ficar mais um pouco, mas talvez aceite a ideia de perder a cerimônia — respondeu, se encostando no peito de Oz para comer o último pedaço de doce. — Mas ainda tem um tempo, não é? Nós podemos comer aquele pão de carne no vapor. Eu senti o cheiro do preparo enquanto chegava hoje cedo.
— É verdade, você sempre gostou desses — Oz voltou a sorrir. Pousou a mão sobre a orelha de Yan em um afago suave. — Vamos. Vamos lá pegar os seus pães. Você acha que uma dúzia daria conta?
— Eu como dois, no máximo… — Yan sorriu, deixando que ele o puxasse novamente pelo pulso em direção às barracas centrais, de onde emanava o vapor cheiroso de comida de festa.
— Uma dúzia, então. Parece perfeito.
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