Capítulo 5 — Bichinho
São Paulo, 2023
A sala de descanso da enfermaria cheirava a café e margarina, um aroma agradável que fazia Tomás lembrar-se da época pré-vestibular e de como sua avó sempre acordava ainda mais cedo para preparar seu café da manhã em uma mistura inusitada de sabores brasileiros e chineses. Houve até uma época em que sua comida predileta eram os pãezinhos cozidos a vapor, sem recheio, mas cortados ao meio e passados na chapa com margarina, como os de uma padaria de bairro.
Apesar do tecido grosso da roupa privativa, os pelos de seus braços se arrepiaram quando parou na porta. Ele olhou para o visor do ar-condicionado barulhento e amarelado, que marcava 19ºC. Espalhados entre os sofás de courino cinzento meio descascados estavam umas poucas pessoas assistindo a um programa de variedades de meio de tarde.
― Viu só, doutorzinho? ― Marieta, uma das enfermeiras mais antigas, foi a primeira a notá-lo e fez sinal para que ele entrasse. Gostava de chamá-lo daquele jeito, doutorzinho, porque era tão pequeno que às vezes desaparecia na multidão de alunos andando pelos corredores. Ela apontou a televisão. ― A gringa tá falando que sonhou com as músicas do álbum dela que estão bombando. Agora pergunta se a gente aqui sonha com os números da Mega-Sena.
― Ah, pois sempre que sonho e jogo no bicho, acerto ― completou a mulher de cabelos acaju ao lado dela. Seus lábios pintados de um rosa elétrico se rasgaram em um sorriso. ― E por falar em sonho, o nosso menino dos sonhos tá lá na pediátrica hoje, tão sabendo? ― Apesar de lançar a pergunta para os colegas, os olhos dela estavam sobre Tomás.
― Oh, glória! ― Marieta exclamou, com as mãos para o ar. ― Vai ser uma noite calma, então. O menino sempre deixa as crianças molinhas feito bonecos de pano. Tem até médico que fica mais manso…
― Você presta bastante atenção, Marieta… ― Tomás interrompeu, escondendo um sorrisinho atrás das costas da mão enquanto apertava a pasta de prontuários contra si numa tentativa de ignorar o rubor no rosto.
Nos últimos meses, um grupo de contadores de história aparecia com frequência na ala pediátrica da oncologia, e o que a princípio foi recebido com ressalvas pela equipe médica acabou virando um dos melhores momentos das crianças. Havia, no entanto, uma pessoa entre eles que parecia ter o poder de aliviar o incômodo da molecada apenas com palavras.
― Ow, é real isso aí de que o cara coloca as crianças em nirvana só contando a história dos três porquinhos? ― perguntou um jovem aprendiz com um muxoxo descrente.
― Se ele falasse com aquela vozinha no meu ouvido, eu ia ficar em nirvana também ― cabelo-acaju comentou entre risadinhas.
― Pois você tire o cavalinho da chuva, nêga, que se o moço fosse sussurrar no ouvido de alguém, ia ser no do doutorzinho. ― Marieta se inclinou sobre o braço da poltrona na direção de Tomás, de um jeito cúmplice. ― Você sabe que os dois são a novela favorita aqui da enfermagem, né? O moço já te chamou pra sair?
Tomás negou com a cabeça. O rosto queimava de vergonha agora porque aparentemente não tinha sido óbvio o suficiente para receber um convite, mas o bastante para ser alçado ao status de novela.
— Tomás está aqui? — Uma das recepcionistas apareceu à porta da sala, sorrindo ao vê-lo. — Ah, que bom. Chegou um presente pra você, meu bem. Olha.
O ramalhete era discreto, não muito cheio, mas bonito. Envoltas em papel de seda cor-de-rosa, as flores vermelhas eram decoradas com tufinhos de grama e folhagens.
— Parece que o Tomás tem outro namoradinho. — Cabelo-acaju ajeitou de volta uma mechinha caída no coque, virando-se com interesse para analisar as flores. — Não quer dividir um pouco desse mel com a gente?
Recebendo as flores, ele sentiu primeiro o rosto ganhar um rubor diferente, culpa dos olhares sobre si. O nariz ficou vermelho em seguida, um pouco antes de soltar o primeiro espirro.
— E que contatinho é esse que não sabe que você é alérgico, hein? — Marieta se levantou, meneando a cabeça em reprovação. Tomou as flores, localizando o cartão para pousar de volta nas mãos de Tomás. — Pronto. Você fica com esse e deixamos as flores aqui. É bom ter um pouco de cor, pra variar.
— Obrigado — Tomás suspirou, trocando o peso do corpo de um pé para outro de um jeito desconfortável. — Eu devo ter me esquecido de falar pra ele…
Mas não tinha. E nem precisava abrir o cartão para saber que aquele embrulhinho rosa vinha de Lótus.
A mensagem no cartão era a cereja do bolo, cuidadosamente colocada.
“Um presentinho para te deixar pensando em mim.”
Ele os viu, então. Suspirou. E espirrou de novo, buscando na mochila o pacote de lencinhos.
Não tinha uma reação muito forte, só um incômodo chato que deixava seu nariz coçando por algum tempo, e os olhos lacrimejando. Passaria logo.
— Já deu meu horário. Eu vou me trocar pra ir. — Apoiou o lenço no canto do olho, secando uma lagriminha insistente enquanto ia até o banheiro para lavar o rosto e se arrumar.
Aquilo suavizou um pouco a reação. Quando saiu do banheiro, o vermelho na ponta do nariz se camuflava um pouco no blush suave do rosto.
— Tá melhor, doutorzinho? — Marieta perguntou, já contendo um sorriso esperto que pairava no canto da boca, esperando que ele concordasse. — Que bom. Nada que uma água na cara e um pouco de perfume não resolva, né?
— Eu vou indo — ele desconversou, escondendo o riso.
— Manda um beijo nosso pro menino dos sonhos.
— Mando, sim. Pode deixar. — Tomás riu, e deu uma corridinha para fora da sala antes que Marieta pudesse voltar a chamá-lo.
— Sem vergonha! — Ouviu, já do corredor.
Seu rosto corava por pura manha. Aquele caminho já era batido. Se havia contação de histórias, então daria pelo menos uma passada por lá. Fazia isso sempre. Não virou uma das metades da novela favorita da enfermagem à toa.
A ala pediátrica ficava no andar de baixo, e a sala onde as crianças recebiam visita dos contadores estava logo no começo do corredor decorado com cartazes, desenhos coloridos e pôsteres médicos com frases encorajadoras que serviam mais aos pais do que à molecada. Tomás saiu do elevador e ajeitou a mochila sobre os ombros. Ainda tinha alguns minutos até que Lótus chegasse para buscá-lo — e teria que conversar com ele sobre flores e mentiras ―, então sobrava um tempinho para passar por ali.
Reconheceu a voz dele na primeira das salas em meio a risadinhas infantis. Quando se aproximou, acenou para a enfermeira responsável e então se encostou no batente para não interromper. De onde estava, tinha uma boa visão do amontoado de cabecinhas atentas. E tinha o rosto de Yue bem de frente para si.
Parte do charme de Yue com sua plateia em miniatura estava no fato de que ele não contava histórias sentado. Se mexia de um lado para o outro com os movimentos vigorosos de alguém acostumado ao palco. O rosto era expressivo, como se Yue se transformasse em cada personagem da história à medida em que os citava. Não erguia muito a voz, e ainda assim conseguia atrair todos os olhares para si, como se a próxima palavra pudesse revelar algum tipo de segredo mágico.
― Qual a história da vez? ― Tomás perguntou baixinho para a enfermeira ao seu lado.
― O rei macaco, se entendi bem.
Quando tornou a encarar a cena, trombou com o olhar de Yue por um instante, ganhando um sorriso e um aceno de cumprimento.
― Sun Wokong esperava um convidado, lembram? ― Yue perguntou para as crianças. Seu timbre era suave e grave, como um abraço apertado. Ele apontou a cadeira vazia no meio do mar de crianças. ― Doutor Zhu, por favor. Não é esperto deixar o rei macaco esperando.
Tomás se adiantou a passos polidos, como o convidado de alguém importante. Se Yue falaria com ele dentro da história, então sua resposta seria dada da mesma forma. Tomou seu lugar depois de uma reverência bonita que foi imitada pelas crianças menores.
— É verdade, crianças — reafirmou em um tom cortês, lançando a Yue um olhar dedicado por trás dos óculos. — Eu não o deixaria esperando.
― O tio Yue disse que o rei macaco pode virar 72 coisas diferentes, tio Tomás! ― uma garotinha disse, tentando mostrar como fazer 72 usando as duas mãos.
— É um número bem grande. Nós vamos precisar de oito pessoas pra mostrar. — Contou as cabecinhas ao seu redor. Ali, eram sete. Então sorriu, pedindo que todos mostrassem as duas mãos abertas. Complementou ele mesmo com os dois dedos que faltavam. — Tudo isso! — Virou o olhar de volta para o contador de histórias. — Que tipo de coisas?
― Ele não seria o mais esperto de todos se qualquer contador de histórias pudesse revelá-las ― Yue respondeu, dando uma piscadinha amistosa.
— Você não é qualquer contador, tio! Você é o melhor! — Um dos menininhos ergueu a voz, se levantando apoiado ao encosto da cadeira de Tomás. — Tio Tomás, pede pra ele contar o fim da história!
— É, ele sempre conta quando você pede. — Uma garotinha entrou para o coro de pedidos, se jogando em uma brincadeira dramática no colo de Tomás, fazendo-o rir.
— Eu não acho que um pedido meu faria diferença para o grande Sun Wokong… — Tomás fez um beicinho. — Faria? — A pergunta foi para Yue, num tom manhoso parecido com o das crianças ao seu redor.
Yue havia se ajoelhado para conter a explosão de energia de um dos garotinhos, agora agarrado em sua cintura. Embora tivesse um rosto naturalmente sério, vez ou outra seu olhar se iluminava como se às vésperas de um sorriso.
― Vamos descobrir no fim da história.
Um fim que não chegou, no fim das contas, menos pela disposição de Yue e mais pelo limite de horário. O grupinho caiu numa reclamação coletiva quando as enfermeiras avisaram que estava na hora de voltarem para os quartos, uma barulheira de que ninguém naquele hospital reclamaria: Yue parecia devolver a energia que as crianças perdiam nas longas horas de exames, procedimentos médicos e quimioterapia.
Ele recuperou a mochila assim que a sala esvaziou. Era um trambolho pesado e meio esfarrapado, coalhado com todo tipo de bottons, de desenhos de artistas indie à bandeira não binária ao lado de uma estrelinha vermelha com a sigla do PT.
— Minha avó gostaria imediatamente de você se visse — Tomás sorriu, apontando casualmente para aquele último bottom enquanto ajeitava a própria mochila nos ombros.
― Ela é sábia.
Longe do “palco” que as crianças ofereciam, Yue voltava a usar poucas palavras naquele tom sussurradinho. Tomás achava que os sussurros combinavam com ele da mesma forma como a barulheira combinava com o moço que conheceu na Roosevelt.
Colocou sua atenção naquele ali desde a primeira vez em que o viu contar histórias. Ainda assim, a conversa nunca tinha saído daquela ala do hospital. Nem mesmo quando o seguiu no Instagram algumas semanas antes. Teve esperança quando ele o seguiu de volta, mas não tinha recebido interação nenhuma além de algumas curtidas nas fotos de café que postava quase todos os dias.
— Como vão seus trabalhos? — perguntou enquanto caminhavam pelo corredor em direção ao elevador. Sem as crianças, o lugar ficava calmo e silencioso, quase mesmo como um sonho. Foi um dos motivos para o apelido dado por Marieta.
— São só bicos — ele respondeu. — Chato, chatão e pior. — Revirou os olhos, bufando pelo canto da boca em direção ao cabelo, fazendo a mechinha voar um pouco fora do lugar.
Entraram no elevador. Tomás se encostou na parede perto da quina enquanto Yue apertava o botão para o piso térreo. Viu quando ele sacou uma caneta do bolso, que girava displicentemente entre os dedos da mão quando se encostou na barra do elevador, perto o suficiente para que não parecesse só uma escolha casual.
Tomás suspirou, acompanhando os poucos números decrescendo no painel luminoso. Foi tomado dos pensamentos pelo toque de Yue, o nó de seu dedo tocando-o na pontinha do nariz.
— Você tá ok? — A voz era gentil e a forma como seus olhos encontraram os dele, sustentando um olhar atento, já começava a deixá-lo fraco. Não entendeu a pergunta súbita até sentir o nariz coçar um pouquinho e se lembrar que ainda devia estar meio vermelho.
— Sim. É só alergia — respondeu, vendo Yue afastar a mão. A pele era áspera e meio arranhada, especialmente nos nós dos dedos, e Tomás se perguntou qual seria a razão.
— De quê? ― o rapaz perguntou pouco antes de as portas do elevador se abrirem.
— Flores.
— Hm — Yue assentiu. Demorou um segundo para completar. — Vou lembrar disso.
Havia algo na forma como ele falava, fosse na economia bem pensada de palavras, no tom acolhedor e firme dos sussurros ou mesmo no jeito como seus olhos não titubeavam no contato com os dele que fazia Tomás sentir as pernas moles.
Era como uma antecipação.
Parou para encher a garrafinha de água logo na saída do elevador. Yue deteve-se para esperá-lo, colocando as mãos nos bolsos.
Ele era alto. Não tanto quanto o Vi, mas, perto de Tomás, o suficiente. Sua avó iria mesmo gostar do bottom do PT, mas conseguia imaginar a careta que ela faria para aquela aura punk, para os coturnos cansados de guerra ou para a corrente presa ao cinto. Não conseguia imaginar o que pesaria mais num primeiro momento. Quase podia ouvir a voz dela fazendo algum comentário sobre como ele ficaria mais bonito com um corte de cabelo mais ajeitado ou roupas mais adultas.
Tomás tinha sua própria percepção sobre o que deixaria Yue ainda mais bonito, mas não se atreveria a vagar o pensamento naquela direção agora.
― Tom, encheu ― ele disse, apontando para o gargalo, e Tomás virou o rosto, sentindo a água vazar um pouquinho sobre seus dedos.
— Ah. — Recolheu a garrafa, os dedos pingando gotas lentas de água. Não queria secar na roupa.
— Aqui. — Yue pegou sua mão. O primeiro contato de seus dedos espalhou eletricidade em um estalo.
— Ei — Tomás chamou, dobrando os dedos num reflexo, sentindo o rosto corar um pouco. — Você deu choque.
— Desculpa — ele respondeu. E passou o polegar sobre seus dedos úmidos, eliminando os últimos rastros de água.
A forma como Yue jogava os cabelos por cima da cabeça deixava o undercut mais à mostra. Ele balançou a cabeça, bagunçando-o. Sempre que fazia isso àquela distância, Tomás sentia o cheiro dos seus cabelos. Aquele odor musgoso e fresco fazia seu coração dar uma acelerada.
— Vai pro metrô? — Yue apontou a porta.
Aquele era um pedido por companhia? Parecia um. De todos os dias, ele escolheu justo aquele para chamá-lo.
Tomás negou com a cabeça.
— Não, eu tenho carona hoje — respondeu.
— A gente se vê. — Yue esboçou um sorriso, ajeitando o cabelo atrás da orelha. — Valeu por ter passado na sala. — Ele ergueu os cantos do sorriso num movimento sutil. — As crianças gostam que você apareça.
— As crianças? — Tomás perguntou, forçando um beicinho.
— Eu também.
Tomás deixou o olhar na nuca dele por alguns passos e então suspirou, quando se convenceu de que Yue não podia mais ouvir. Tinha a estranha impressão de ser observado. Quando virou o pescoço, encontrou alguns rostos da ala de enfermagem espiando de perto das escadas, Marieta entre eles.
— Tá um dia bem tranquilo, né? — Tomás perguntou, cruzando os braços para disfarçar o rubor. Devia estar, se sobrava tanto tempo para ver novelas.
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