No metrô, Yue entrou no Instagram. O primeiro story que abriu foi uma foto que Tomás tinha postado de manhã: uma xícara de café encimada pelo trecho de uma música da Lana Del Rey: Tell me all the things you wanna do. I heard that you like the bad girls, honey. Is that true?
Clicou no coração no canto da tela, como sempre fazia.
Você gosta de café, né? A gente devia ir tomar um qualquer dia.
Não eram assim tantas palavras. E estavam bem na ponta dos dedos, o que era mais cômodo. Mesmo assim, não conseguiu se convencer de enviá-las. Desistindo, abriu o Telegram, dando de cara com uma foto enviada por Vi, fazendo graça na academia. Rolou os olhos tão discretamente que eles quase não se mexeram.
“Vai bem a vida de socialite, né?”, comentou.
A foto era de três horas antes, mas Vi começou a digitar a resposta logo depois. Sempre on-line, é claro. Sempre disponível. Devia ser mais fácil sem uma sequência de bicos todos os dias.
“Pra caralho. Trampo foi de boa?”
“Uhum”, começou. E então emendou: “Viu, como é que vc chama gente pra sair?”
“Mandando um BORA SAIR, como eu faço ctg.”
“Se pá que tem um carinha”, enviou.
“E você chamou?”
“Não.”
“Para de enrolar, caralho. Se vc tá a fim, então chama. Eu sempre meto essa se tô a fim de alguém.”
“Mais um dia na vida de Victor Lobo 🙄”, implicou, guardando o celular em seguida. Ele sempre chamava, é claro. Não era surpresa. Cansou de ouvir os casinhos do melhor amigo, tantos que chegou ao ponto de pedir pra que ele só voltasse a comentar se fosse importante.
Ele sempre chamava se estava a fim. Não era tão simples quanto Vi fazia parecer. Yue acompanhou o sinal luminoso do metrô, guardando celular para fazer a baldeação. O misto de pequenos incômodos rodando sua cabeça era incompreensível e não tinha tempo para isso.
━ • ✿ • ━
Sentado na ponta do sofá, Lótus terminou de calçar as alpercatas amarelas e esticou um dos pés para analisar. Os dedos eram meio tortinhos, com unhas curtas pintadas de preto para disfarçar os hematomas debaixo delas. Sapatilhas estavam entre suas coisas favoritas, mas deixavam machucados tenebrosos, como todo comprometimento verdadeiro deveria deixar.
― Você vai calçar isso? ― sua mãe questionou, erguendo os olhos da pasta de croquis sobre o colo, incapaz de esconder a expressão contrariada.
― A botinha da Miu Miu que quase arranca o chaboque do meu dedo é que eu não vou ― ele respondeu, o olhar cândido indo dela para a mulher ao seu lado. ― Não é bonita, tia Elaine?
― Certamente é… Exótica. ― Ela abriu um sorriso meio nervoso, desviando o olhar de Lótus logo em seguida. Alguma coisa na expressão do rapaz sempre conseguia deixá-la desconfortável. ― Eu ouvi falar que virou acessório it por esses tempos, não foi? Rococó nordestino ou algo do tipo. Até considerei aderir.
― Viu, mãezinha? Eu continuo sendo o it boy de sempre. ― Lótus se levantou com a fluidez de um bailarino, ajustando as alças do macaquinho marrom, e logo depois o pesado colar bronze em forma de cobra. ― Mas toma cuidado, tia Elaine, que precisa de bastante tutano pra sustentar um rococó assim.
Ele ouviu a mãe suspirar, as mãos se fechando sobre a pasta de desenhos. Lótus tinha certeza de que, nessas horas, ela estava resgatando toda a força de vontade que a impedia de rachar contra a parede a cabeça do único filho que lhe restara. Em resposta, o rapaz saltitou até a mesa de centro, onde trufas licorosas descansavam, e roubou três delas. Duas foram para o bolso da frente do macaquinho, a terceira, levou à boca, mordendo com satisfação. Eram as favoritas dela, os únicos doces que Sônia se permitia comer ― e Lótus tinha quase certeza de que era menos pelo açúcar e mais por cada trufa praticamente equivaler a um shot.
― Eu sei que digo isso toda vez, mas é tão bonitinho o jeito que ele fala, Sônia ― Elaine emendou, achando que isso poderia amenizar a tensão que ganhava escala naquela troca de olhares.
― Valha, e tu acha bonito só porque eu falo com palavras, é? Se eu me comunicar por sinais tu vai achar bonito também?
Sabia que era: o sotaque que se recusou a perder, com as vogais abertas, os “os” virando “us” e toda a musicalidade. Ele e a mãe tinham se mudado de Sobral para São Paulo há quase dez anos, logo depois do divórcio. Em favor de Sônia, ela havia feito milagre em uma cidade inóspita, erguendo seu pequeno império em torno de vestidos exclusivos para noivas, mas ao preço de uma naturalização forçada que também tinha tentado impor a Lótus: ela não podia parecer cearense, falar como uma cearense, se expressar como uma cearense, e abandonara tudo ― ritmo e sotaque ― com o intuito de parecer paulista. Tinha dado certo, e suas clientes mais importantes costumavam falar, cheias de um orgulho condescendente, que Sônia nem parecia do Ceará.
Lótus não havia comprado aquele descabimento. Sobral era uma lembrança distante agora, mas lá estavam algumas de suas melhores memórias.
― Não foi o que eu quis dizer… ― Elaine começou.
― Então nem diga ― Lótus cortou, o sorriso fazendo seus olhos se fecharem.
― E onde nós pretendemos comemorar seu aniversário? ― Sônia interrompeu com a voz monótona que assumia quando estava às vésperas de gritar.
― Nós não vamos para lugar nenhum, mãezinha, mas eu vou encontrar um amigo.
― É o seu aniversário…! ― ela meio sussurrou, meio exclamou.
― E justo por isso eu não vou te querer de mutuca até no jeito que eu respiro.
― Pelo amor de Deus! ― Sônia explodiu, levantando numa bagunça de papéis, as mãos se agarrando aos cabelos, em fúria. Aquela criatura tinha o condão de tirá-la do sério, e sempre fazia isso na frente das clientes. ― Quando você vai parar de falar assim?
― Assim como? ― ele questionou, inspecionando as unhas curtinhas, esmaltadas com um rosa suave. Depois ergueu os olhos para a mãe, abrindo seu sorriso de socialite. ― Sério, eu não entendi.
Ele roubou mais uma trufa diante do olhar escandalizado de Elaine. A pirraça definitivamente lhe caía bem.
― Sem falar que tu tá toda alterada, mãezinha. Eu te vi bicando aquele rosê desde o começo da tarde. Pega mal sair trocando as pernas por aí.
Deixou para trás um cenário de guerra, com a mãe gritando que ele já era adulto e iria expulsá-lo de casa, e Elaine aos murmurinhos tentando acalmá-la. Por sorte a porta do quarto estava trancada, então não havia chance de ela ir descontar a fúria em Cremilda e Clotilde, as suas cobrinhas. Mais tarde, quando voltasse, encontraria Sônia mergulhada em um sono embriagado e teria mais algumas horinhas de paz.
Moravam em Higienópolis, e o elevador era praticamente privativo, sendo um apartamento por andar. Lótus se encarou no espelho, apertando as pontas dos cabelos para definir um pouco mais as poucas ondas que se formavam. Passou os dedos pela franja curta e bicolor ― metade preta e metade rosa ― e limpou o cantinho de um dos olhos para corrigir uma pequena falha no delineado.
― Você gosta de cobras? ― o taxista perguntou depois de ser informado sobre para onde iriam. Olhava o colar de Lótus com interesse.
― Eu amo! Tenho duas cobras-de-milho, o senhor conhece? Elas são inteligentes que só. ― O sorriso se alargou, cheio de uma energia juvenil. Sabia como parecer mais novo e mais bobo. ― Quer que eu conte um pouquinho sobre?
Era tudo parte do charme: o jeito como o sotaque caía bem em seu rosto redondo, o sorriso que revelava os dentes da frente, meio grandinhos, e como cada frase sempre terminava num bico.
― É aqui. O senhor espera um pouquinho? ― Lótus pediu quando estacionaram, tocando o homem no ombro com a intimidade de um velho amigo. ― Meu amigo chega já, já.
“tô te esperando, bichinho 🌸”, informou a Tomás.
Ainda estava chateado, mas se a alternativa era comemorar o aniversário naquela casa sufocante, preferia gastar seu tempo com alguém que lhe desse atenção, com ou sem mentiras.
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